Neste texto, a jornalista Vânia Bueno propõe alianças estratégicas, inteligentes e solidárias entre o poder público, a iniciativa privada e a sociedade civil para combater a pandemia do Covid-19 e seus efeitos. Sugere ações e provoca questionamentos para cada um desses setores.
Fundadora da Anima Convivência Produtiva, Bueno atua como professora, facilitadora e mentora em comunicação e liderança. Integra o Conselho Editorial da Página22 e possui formação complementar em práticas de diálogo, transformação de conflitos, práticas colaborativas e Ética aplicada.
Segundo ela, esta crise aparece como uma crise de saúde pública, é discutida como crise econômica, mas, na verdade, é uma crise ética. “Deixo aqui uma humilde contribuição como ponto de partida, para se juntar a tantas outras iniciativas generosas que já acontecem”, escreve. Confira:
Acordei mais uma manhã e me dei conta de que o pesadelo ainda não passou. Pior, está apenas começando. Para mobilizar minha energia de reação coloco à minha frente o cenário mais catastrófico e previsto pelo cientista brasileiro Atila Iamarino: se mantidas apenas ações de mitigação – fechamento parcial dos negócios com manutenção do livre trânsito de pessoas – até o mês de agosto, teremos em torno de 1 milhão de brasileiros mortos pelo novo coronavírus. Deus permita que isso não aconteça.
Incluo aqui, além do sofrimento pelas perdas dos que amamos, como vemos nas tristes histórias relatadas por chineses, italianos e espanhóis, o preocupante contexto socioeconômico pelo qual o Brasil se distingue de todos esses países. Vale relembrar esta variável sombria e perigosa que alguns preferem ignorar, mas que não podemos negar.
As comunidades esquecidas e desamparadas nos morros e nas periferias sentirão na carne as piores consequências dessa pandemia. Enquanto uma minoria privilegiada, na qual me incluo, pode permanecer em casa contando com serviços de delivery, milhões de pessoas, gente da nossa gente, padecerá pela falta de condições mínimas de higiene, alimentação e cuidado. Meu coração aperta ao pensar no drama de famílias inteiras, em pequenos espaços, sem água ou suprimentos, enfrentando muitas vezes a rotina da violência doméstica e contando seus mortos insepultos.
Mas, se há uma lição que este vírus veio nos ensinar é que as fronteiras geográficas, ideológicas, sociais e intelectuais que erguemos para nos proteger, na verdade, não existem. A vida é sistêmica e ninguém ficará imune a essa tragédia. O noticiário chega informando a morte da faxineira, do médico e do presidente do banco. O colapso do sistema de saúde, provavelmente converterá a rede privada em pública, e cada um de nós – ou nossos pais, filhos e irmãos –, poderá ser apenas mais um na fila de espera por um leito de UTI no SUS.
Mesmo o 1% que detém as maiores riquezas do mundo e imagina como saída embarcar em seus aviões particulares para chegar ao paraíso, pode se deparar com a realidade de aeroportos fechados e perceber que o paraíso sumiu de seu mapa exclusivo. No extremo oposto, é preciso lembrar que da situação de abandono e carência surgiram facções criminosas organizadas e fortemente armadas que poderão reagir violentamente, transformando o combate a uma epidemia em um verdadeiro campo de guerra. Para dar mais realidade ao quadro, basta lembrar do caos criado pelo PCC em São Paulo anos atrás. Para os que se sentem protegidos, um alerta: seu serviço de entrega poderá nunca chegar.
Do pesadelo ao sonho
Só será possível transformar esta projeção de trevas, perigo e desalento se sairmos da paralisia do medo e lembrarmos que, para enfrentar um grande pesadelo, só mesmo um sonho maior ainda. Um sonho que precisa da fé, da energia e da boa vontade de todos e de cada um: uma Coalizão pela Vida que possibilite alianças estratégicas, inteligentes e solidárias entre o poder público, a iniciativa privada e a sociedade civil. É maravilhoso ver tantos movimentos altruístas acontecendo. Mas, para além da boa vontade, o resultado que precisamos requer muita inteligência, coordenação e velocidade.
Deixo aqui uma humilde contribuição como ponto de partida, para se juntar a tantas outras iniciativas generosas que já acontecem, esperando que possam ser sementes que floresçam com o saber, a experiência e a ação de muitos outros.
A única resposta que temos
Entre tantas dúvidas, a pandemia nos dá uma única certeza, talvez a mais importante e estratégica: existe uma forma de combatê-la, o isolamento social. Todas as ações alternativas, como a criação de mais leitos, compra de máscaras e respiradores são essenciais, porém paliativas. A única intervenção de grande e real efeito nesta guerra é criar condições para que o maior número de pessoas permaneça em isolamento por um período de no mínimo 15 dias. E por ser a conduta mais efetiva é preciso concentrar todos os esforços nesta direção.
Os impactos econômicos que uma paralisação dessas pode gerar são enormes e criam, para os que têm poder para decidir, dilemas humanos profundos: salvamos vidas agora ou depois? É melhor combater o vírus ou o desemprego e a fome? Guardo para mim ou compartilho com todos? Problemas inéditos exigem soluções desconhecidas, e o mais difícil será quebrar as barreiras de modelos mentais cristalizados que insistem em buscar nas referências do passado respostas que ainda não foram dadas.
É hora de substituir o “OU” que separa pelo “E” que inclui. Salvar vidas agora E depois. Cuidar das pessoas E da economia. Conectar o individual E o coletivo, curto prazo E longo prazo, lucro E responsabilidade social. Não é possível que interesses políticos e ideológicos continuem fraturando a relação entre os governos federal, estadual e municipal. Toda separação nos enfraquece. A Coalizão pela Vida é um antídoto para comportamentos negativos e indesejáveis. É também uma convocação para que a integração prevaleça.
Poder público – está à frente, não pode tudo e por isso não deve estar sozinho
A começar pelo mais importante: O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, mostra-se tecnicamente preparado, competente e engajado, mas em seu esforço de combate à epidemia enfrenta grandes entraves burocráticos e os vícios de uma política carcomida e esgarçada. É ele que a iniciativa privada e sociedade civil precisam ajudar. É fácil perceber que o poder público federal, estadual e municipal está sob forte pressão e demonstra sinais de exaustão em alguns casos, e de impulsividade inconsequente em outros.
A magnitude do problema e a complexidade geográfica, cultural e social do Brasil evidenciam que o poder público não será capaz de comandar sozinho nossa nave durante esta travessia turbulenta. Nem mesmo o fato de pagarmos uma das maiores taxas de impostos do mundo pode justificar a passividade ou a atitude de “já faço a minha parte”. A nossa parte, agora, está em toda parte. A opinião pública já pressiona para a melhor destinação de fundos como o partidário ou de orçamentos destinados a regalias políticas agora ainda mais inaceitáveis. Esperamos por respostas positivas e rápidas.
Por se tratar de uma crise global, também está mais do que na hora de convocar os grandes líderes mundiais a abrirem um diálogo, como fazem nas conferências da ONU ou fóruns econômicos como Davos e G-20, para acordarem uma política unificada de combate ao Covid-19, com troca efetiva de informações e recursos de toda a natureza. Se Angela Merkel já comparou a luta contra o Covid-19 à Segunda Guerra Mundial, quem serão os aliados de agora?
Perguntas: Fundos e reservas orçamentárias, verbas de gabinete e outros benefícios seletivos, podem ser imediatamente disponibilizados para esta causa? Pode o Governo Federal lançar bônus especiais para a arrecadação de recursos urgentes? O Ministério da Justiça e Segurança Pública já deu início a negociações com o PCC, Comando Vermelho outras facções que, queiramos ou não, são lideranças fortes nas maiores comunidades Brasil afora? A diplomacia brasileira tem condições de estimular um diálogo para uma política global integrada?
Iniciativa Privada – é hora de colocar a riqueza e a inteligência das corporações a serviço da vida
Antes de mais nada, é preciso reconhecer o grande esforço que a maioria das empresas já está fazendo ao garantir empregos, manter funcionários em quarentena ou em condições de trabalho em casa. Mas as organizações podem assumir um protagonismo muito maior. Compartilho algumas ideias nesta direção:
Logística e suprimento – Para enfrentar enormes desafios de produção, logística e distribuição de seus produtos e serviços, empresas nacionais e multinacionais desenvolveram um valioso patrimônio de experiências, conhecimento e tecnologia. É nas organizações que encontramos o maior número de profissionais preparados, bancos de dados valiosos e tecnologia de ponta para o abastecimento dos rincões mais distantes do nosso Brasil continental. É hora de disponibilizar toda esta inteligência em benefício da nação. Qualquer projeto de isolamento – radical ou parcial – exige uma logística sofisticada que garanta suprimento essencial para as comunidades, e a iniciativa privada, com seu capital humano, financeiro e tecnológico pode, e deve, contribuir para que isso seja possível. Um trabalho integrado e colaborativo entre as equipes qualificadas das melhores empresas do país será de enorme ajuda agora.
Patrocínio pela vida – Enquanto poucos de nós pode sustentar o próprio isolamento e proteção, milhões de brasileiros trabalham hoje para comer amanhã. A miséria é uma realidade sem escolhas e, para o bem de todos, será preciso mobilizar recursos para patrocinar também a vida dos que não têm qualquer autonomia. Enquanto o governo amplia a distribuição de programas como o Bolsa Família, e isso é essencial, é possível ir além. Do ponto de vista filantrópico, fundações e institutos de grandes organizações e fortunas podem abastecer um fundo financeiro – público-privado – para um apoio mais encorpado e amplo de patrocínio à vida.
É importante compreender também que chegou a hora de as empresas reconhecerem que os informais e ambulantes – públicos tão sensíveis neste momento – são elos preciosos suas cadeias de valor e prosperidade. Quantas cervejas da Ambev são vendidas por pessoas que carregam isopores em dias de jogos? As Donas Marias, que vendem bolos na frente das estações de trem, não contribuem para a riqueza das redes de supermercados e fabricantes dos insumos que utilizam? As faxineiras, sem vínculo empregatício, além de cuidar de nossas casas, não são também consumidoras de produtos e serviços que garantem lideranças de mercado? Pois então, garantir o bem-estar dessa rede informal é além de um ato humanitário, uma ação de responsabilidade empresarial. Se os líderes dessas grandes empresas temem pelos efeitos desta crise em seus negócios, é bom que reconheçam que, quanto mais cedo vencermos esta guerra, menores serão as perdas para todos.
É alentador registrar a louvável a iniciativa dos que passaram a fabricar e distribuir produtos como álcool gel, sabonetes e cestas básicas. Outros vão além financiando leitos de UTI e comprando respiradores. Viva! O mais importante, porém, é entender que todos esses movimentos serão mais eficientes quanto mais forem planejados e geridos de forma integrada para que possam ser utilizados no volume, na forma e no momento adequado, evitando que ocorram enganos e/ou desperdícios de qualquer natureza. A inteligência estratégica das organizações é essencial para isso.
Perguntas: CNI, Febraban, B3, Fiesp, IBGC, Abrasca e outras instituições: que tal perguntarem ao ministro da Saúde: Como podemos ajudar? É possível criar um fundo financeiro único para a manutenção de uma renda básica universal com distribuição rápida e sem burocracia, utilizando a rede bancária, sua capilaridade e relacionamento dados dos maiores bancos brasileiros? Empresas estariam dispostas a comprar bônus do Governo para gerar os recursos necessários? Organizações locais e setoriais estão prontas a contribuir para que ações isoladas sejam mais inteligentes e efetivas? Como as organizações imaginam relatar suas ações no próximo relatório anual: como prejuízo ou como investimento social e responsável?
Sociedade civil organizada – cada um deve fazer a sua parte
É maravilhoso ver o espírito solidário emergir. Pessoas cantando na janela, jovens amparando seus vizinhos, voluntários correndo risco de vida para ajudar nas frentes de atendimento. ONGs estão fazendo um trabalho espetacular nas comunidades levando informação e apoio aos mais vulneráveis e coordenando campanhas de arrecadação e suporte. É preciso que cada cidadão faça sua parte como indivíduo e como coletivo, mas só o espírito de coalizão, que leva a integrar pequenas ações a um projeto maior, inteligente e coordenado, pode impedir que alguns sejam beneficiados em excesso, enquanto outros padecem pelo desamparo.
O trabalho que já começou pode ser mais efetivo com a convocação dos profissionais da comunicação – gênios do jornalismo, da publicidade, das relações públicas e das artes em geral – para também constituírem frentes integradas e colaborativas no desenvolvimento de campanhas ainda mais criativas e engajadoras. O briefing é claro: levar informação, mobilizar consciência e gerar engajamento para que cada um faça o que é preciso. Fácil? Não, mas essencial e possível.
Para nos inspirar, basta ver o exemplo de maravilhosos médicos, profissionais de saúde, equipes de limpeza, coletores de lixo, policiais que abdicam da próprio conforto e segurança pelo compromisso com o todo.
Perguntas: Como as ONGs podem ser ouvidas e incluídas na tomada de decisões do poder público e iniciativa privada? Como garantir que as entidades que conhecem a realidade das comunidades exerçam sua liderança de forma mais positiva e efetiva?
Profissionais de planejamento e logística estão disponíveis para evitar que movimentos descoordenados provoquem ineficiência e desperdícios? Podem os meios de comunicação veicular solidariamente campanhas de conscientização e engajamento? Entidades como Aberje, Abracom, Abap, entre outras, podem provocar e tornar possível um trabalho de comunicação integrado?
Toda crise traz em si oportunidades – vamos prevenir ou remediar?
Seguramente poderemos ter grandes aprendizados nesta travessia. Do ponto vista racional e objetivo, há claramente um valor que pode ser criado nesta crise, talvez o único: reputação. Se empresas e governos são muitas vezes considerados vilões sociais, chegou o momento de reverter esta percepção.
Reverberam nas redes sociais cobranças de atitude das empresas e famílias bilionárias que atuam no Brasil. De fato, não é possível ignorar neste momento crítico a divulgação de seus ganhos e resultados ano após ano. Talvez o mais emblemático seja o lucro líquido recorde de R$ 81,5 bilhões que os quatro maiores bancos (Itaú, Bradesco, Banco do Brasil e Santander) se orgulharam de registrar apenas em 2019. Os que temem pela sobrevivência de milhões de brasileiros perguntam: com quanto irão contribuir agora? O que farão para compartilhar tamanha riqueza e prosperidade com a sociedade que tornam essa riqueza possível? Uma resposta efetiva representará seguramente um ganho intangível muito maior do que o investimento tangível que venham a fazer. Que não transformem o orgulho pelos resultados financeiros em mesquinhez.
Reputação é, atualmente, o bem de maior valor e isso pode ser facilmente compreendido se olharmos para um outro caso emblemático: o rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho. Gostaria de perguntar agora para os dirigentes da Vale, para as prefeituras e as comunidades: se soubessem e pudessem, o que prefeririam: viver o que estão vivendo nos últimos anos, ou investir todos os recursos da remediação para prevenir essas tristes tragédias? Qual seria a resposta? Pois bem, há agora uma grande barragem pronta para desabar sobre a nação brasileira e o poder público, a iniciativa privada e a sociedade civil têm a oportunidade de optar pela prevenção e pela preservação da vida agora. Os custos virão inexoravelmente, mas poderão figurar nos balanços fiscais como prejuízos indesejáveis ou como investimentos responsáveis. Esta escolha só pode ser feita agora.
O mesmo cientista que previu um milhão de mortes até agosto também afirma que, se optarmos por um isolamento radical e rápido, reduziremos esta previsão para alguns milhares de perdas. Então, o foco do momento só pode ser tornarmos esta intervenção possível. Hoje se fala também em isolamento vertical, isto é, apenas de públicos mais sensíveis à doença mas, em qualquer das alternativas, precisaremos de muito dinheiro, inteligência e logística. Os recursos existem, mas sua aplicação efetiva requer estratégia, integração e coordenação, como uma grande orquestra – e se este parece ser o desafio maior, ao mesmo tempo nunca tivemos tantas ferramentas digitais e de inteligência para fazer esse tipo de articulação.
Em minha vivência, tive o prazer de conhecer organizações, famílias empreendedoras, líderes, profissionais e pessoas genuinamente comprometidas com as melhores práticas ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês) e solidariedade. Muitos me falaram de seu desejo em deixar um legado. Pois bem, a oportunidade para isso chegou.
Eu sei que parece impossível, mas somente um grande sonho pode ser maior do que o pesadelo que se aproxima. É hora de atuarmos juntos, pois, como bem disse Martin Luther King: “Ou aprendemos a conviver como irmãos ou morreremos todos como idiotas.”
Esta crise aparece como uma crise de saúde pública, é discutida como crise econômica, mas, na verdade, é uma crise ética.
COALIZÃO PELA VIDA JÁ!
Vânia Bueno, cidadã e comunicadora que escolheu o desenvolvimento humano, de líderes e de organizações como trabalho e como causa
[Foto: Ján Jakub Naništa/ Unsplash]