O vírus Covid-19 é democrático apenas na transmissão, pois, no tratamento e no número de óbitos, acabará escancarando a desigualdade social estrutural do Brasil. Os mais afetados serão os mais pobres
Uma das medidas mais eficazes de combate à Covid-19 é a higienização das mãos com água e sabão. Mas como podemos exigir isso de toda a população, sendo que grande parte dela não possui acesso ao saneamento básico? E mais, geralmente onde há problemas de saneamento há também trabalho precário, acesso restrito à água e dificuldades nos setores de saúde e moradia.
Esse é um problema mundial. Dados mais recentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) indicam que duas em cada cinco pessoas em todo o mundo não têm instalações básicas para nem sequer lavar as mãos, e 40% da população mundial não tem lavatório com água e sabão em casa.
No Brasil, de acordo com a Lei n° 11.445/07, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico, é definido como o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Além disso, o abastecimento regular de água potável, o tratamento de esgoto e o manejo de resíduos sólidos são direitos assegurados pela Constituição Federal.
Mesmo assim, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério do Desenvolvimento Regional, na média brasileira 83,5% da população possui rede de água e apenas 52,4% tem o esgoto coletado, do qual apenas 46% é tratado. De acordo com o Instituto Trata Brasil, a situação é pior na região Norte, onde apenas 10,24% da população tem acesso a rede de esgoto. No Nordeste são 26,87%; no Sudeste, 78,54%; no Sul, 43,93% e no Centro-Oeste, 53,88%.
Para piorar ainda mais esse cenário, um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) previu que quatro em cada dez litros de água são perdidos no Brasil antes de chegar à população. E quase 40% dos recursos hídricos se perdem por desvios e infraestrutura deteriorada.
Somada à falta de saneamento básico e água, estima-se que aproximadamente 13 milhões de pessoas vivam em favelas em todo o Brasil. Isso significa alta densidade populacional e casas muito próximas umas das outras.
Todos estes fatores facilitam a existência e a proliferação de diversos tipos de doenças, como a filariose, a esquistossomose, a hepatite infecciosa, a poliomielite, a febre amarela e também a dengue. E claro, a Covid-19. Ainda não sabemos o nível de impacto dessa pandemia nessa parcela significativa da população. Só sabemos que vai atingi-la de forma muito séria e quem sabe catastrófica, porque simplesmente as medidas mais básicas estão fora de alcance dessas pessoas.
O álcool em gel 70% poderia ser uma saída simples e eficiente para substituir a falta de água. Entretanto, não é acessível em termos financeiros para grande parte dessa população mais vulnerável e requer cuidado porque é inflamável.
Agora imagina o que significa você ter que decidir a quantidade de água para beber, tomar banho e cozinhar todos os dias e também ter que lavar a mão constantemente para evitar a contaminação pelo coronavírus? Ou ainda, pense como é ter que ficar em isolamento social em uma casa de um ou dois cômodos onde vivem mais de dez pessoas, com saneamento básico precário e quase sem nenhum equipamento de saúde na comunidade?
Diante desse cenário, acredito que o novo coronavírus seja democrático apenas na transmissão, porque no tratamento e no número de óbitos acabará escancarando a desigualdade social estrutural do Brasil. Sem acesso às medidas básicas de higienização, e tendo historicamente grupos que estão em desvantagem em relação à saúde pública quando comparados ao restante da população, em breve os mais afetados pela Covid-19 será a população de baixa renda.
Apesar de já ter sido solicitado para o Ministério da Saúde apresentar o planejamento para enfrentar a epidemia de coronavírus nas favelas e nas periferias, ainda não há ações voltadas especificamente para estas populações. O que existe até o momento são iniciativas das próprias comunidades. E isso será insuficiente diante do que está por vir.
O coronavírus é um problema complexo que exige ações em várias frentes para ser combatido. E uma delas é o saneamento básico. Este tema já está em pauta no Senado sob a proposta do Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, cujo principal objetivo é abrir o mercado para a iniciativa privada, de modo a garantir recursos para a universalização do abastecimento de água e da coleta e tratamento do esgoto.
Não sabemos se essa será a melhor solução para um problema histórico no Brasil como é o do saneamento básico. Mas, se há uma estratégia que poderia ser adotada desde já para tentar evitar uma tragédia maior, é o Poder Público assumir o protagonismo para ajudar as populações mais vulneráveis, distribuindo, por exemplo, galões de água mineral para a população e kits de higienização e limpeza, contendo álcool em gel 70% e sabonete.
*Deivison Pedroza, CEO do Grupo Verde Ghaia, é empreendedor, youtuber, escritor e palestrante.
[Foto: Rio de Janeiro. Imagem de NakNakNak por Pixabay]