Repensar a relação do homem com a natureza é a solução para o retorno à vida em comunidade
A limitação à liberdade de ir e vir e socializar que a pandemia provocou nos trouxe uma oportunidade única de reflexão a sobre o modo como vivemos e da necessidade urgente de reduzir os impactos que provocamos ao meio ambiente. Tal alegação parece não ser novidade, mas foi preciso uma pandemia para que a levássemos a sério.
Considerando que o ser humano é um animal social por natureza e que a maior parte da população mundial vive em áreas urbanas, quão grande é o desafio de reestruturar nossa vida e nossa relação com o ecossistema em meio às novas demandas de distanciamento social?
Procurando entender os impactos e tendências pós-Covid-19 com foco em cidades, planejamento urbano e territorial, mobilidade, arquitetura e turismo, foi feita uma análise sobre como o convívio pós-quarentena está sendo planejado em alguns países, como Áustria, Alemanha, China, Dinamarca, Estados Unidos e Espanha, assim como dos debates conduzidos por meios nacionais e internacionais a respeito do tema.
Ao avaliar o que faremos quando voltarmos a sair de casa e como se dará o uso dos equipamentos e espaços públicos, identificou-se uma tendência à grande valorização dos espaços livres, tais como parques e praças e locais adequados ao pedestre. Os parques têm sido dos primeiros espaços liberados para uso em muitos países, seja pela nossa necessidade de se reconectar com a natureza, das crianças de brincar e correr, da prática de esporte pelos adultos, assim como pela possibilidade de convívio por conta do distanciamento social mais administrável que esses locais proporcionam.
Frequentar parques e áreas naturais vem sendo indicado por médicos para o auxílio do tratamento de algumas doenças, já que alguns estudos afirmam que a cada dólar investido em uma área verde urbana equivale a uma economia de 3 dólares em saúde. Desta forma, esses espaços se confirmam, assim, como nossos principais locais de lazer e também de suporte a atividades físicas e até escolares em alguns países.
Entretanto, nossas cidades não estão preparadas para atender a essa demanda. Ainda hoje, o principal parque frequentado por moradores de todas as regiões do município de São Paulo é o Ibirapuera, na Zona Sul da cidade, que se deslocam por quilômetros até lá. Agora como nunca, cada região da capital paulista precisará ter o seu Ibirapuera, ou seja, áreas verdes com qualidade e em quantidade adequadas.
Essa demanda reprimida por espaços livres é recorrente na maioria das cidades e há várias soluções possíveis, como a criação de mais parques equipados e Pocket Parks. Os primeiros são aqueles associados a equipamentos de interesse público, sejam eles escolas, mercados, bibliotecas ou outras instituições que possam estender suas atividades ao espaço livre, concentrando também investimentos públicos de forma integrada.
Já os Pocket, ou “parques de bolso”, podem ser espalhados de forma mais pulverizada nos vazios urbanos e também integrados a empreendimentos imobiliários. Não faz sentido que as áreas verdes que os empreendimentos devem reservar sejam totalmente fechadas às cidades e de uso exclusivo de condomínios. Essa é uma proposta para inclusão na revisão de nossos planos diretores, e que poderá tornar nossas cidades muito mais ativas e sustentáveis.
Importante ressaltar também a necessidade de que estes espaços livres conformem uma rede composta por eixos caminháveis e cicláveis, associados a parques e praças.
Apesar do momento trazer um alerta para uma tendência de manutenção da divisão modal atual, que possui um alto índice de deslocamentos individuais em veículos, mostra também uma probabilidade de diminuição dos deslocamentos, o que pode contribuir para redução nos índices de poluição. Nesse sentido, a mobilidade individual e ativa, bicicletas e o caminhar, devem ser adotadas sempre que possível.
Para tal, transformar parte de nossas ruas em espaços para a mobilidade ativa e de lazer para o pedestre, em todos os bairros, pode ser solução de implantação rápida e barata. Várias cidades já estão fazendo tais mudanças de forma temporária e outras, como Barcelona, planejando mudanças permanentes.
Fazer as pessoas voltarem à escala humana do pedestre pode fomentar cidades policêntricas, com menos deslocamentos. Isso também incentivará o desenvolvimento do comércio dos bairros e, consequentemente, gerará mais empregos próximos de onde vivemos, constituindo um ciclo virtuoso.
Hoje, a título de exemplo, Cidade Tiradentes no extremo da Zona Leste de São Paulo, possui 246 vezes menos oportunidades de emprego do que o distrito da Barra Funda, localizado na Zona Oeste da cidade. É preciso reequilibrar essa distribuição.
Falando dos espaços de trabalho, a relação com os mesmos mudará permanentemente. O home office teve sua implantação acelerada e finalmente testada por muitos durante a pandemia, o que deve reduzir a demanda por espaços de trabalho. Estes tendem a se manter sobretudo pela necessidade de reuniões e socialização.
Portanto, o modelo laboral estacionamento-elevador-posto de trabalho deve ser revisto. Grandes complexos poderão dar novos usos aos espaços excedentes dessa demanda reduzida, convertendo-os em espaços mais colaborativos e complementares ao trabalho, com locais para reuniões, alimentação, academias de ginástica, que serão acessados de forma mais fácil e controlada, evitando novos deslocamentos.
Novos empreendimentos de escritórios ainda no papel podem até converter-se em empreendimentos mistos que atendam às necessidades de moradia e trabalho em um mesmo local, ou adquirir formatos mais abertos, flexíveis e integrados ao verde. Por outro lado, caso adotado adequadamente, o home office poderá possibilitar às empresas um crescimento das equipes de trabalho sem que a infraestrutura fixa cresça na mesma proporção, solução que pode ser adotada imediatamente mediante alternância de dias em casa ou no escritório.
Repensar o ecossistema que envolve o trabalho e que atualmente exige deslocamentos diários e alta demanda por transporte, viagens e espaços construídos, enquanto nossas casas ficam o dia vazias, pode reduzir de forma significativa nosso footprint sobre o planeta.
Por outro lado, a natureza social do ser humano evidencia o seu desejo de retomar a frequência de bares e restaurantes, que terão que repensar sua configuração espacial por um tempo. Já o comércio das necessidades diárias e menos relacionado à necessidade de convívio humano será mais impactado pelo online, o que pode provocar um repensar urgente do modelo de compras dos shopping centers, de grandes superfícies cobertas e fechadas em si.
É preciso introduzir um novo modelo de comércio mais associado ao espaço público e integrado ao entorno urbano, que preserve o verde e os elementos naturais, criando espaços mais fluidos e sustentáveis. A própria necessidade de consumo está sendo revista. Temos observado quanto lixo consumimos e aprendido como aproveitar melhor o que já possuímos.
As reflexões também valem para as viagens e o turismo, um dos setores mais afetados pela pandemia. A globalização tem provocado um modelo baseado no excursionismo em massa e uma concorrência sem limites por turistas em grande escala. Os próximos anos devem significar uma valorização do turismo regional e dos destinos de natureza, sejam parques nacionais, campo ou praia.
Os argumentos acima podem parecer supérfluos para os mais de 11 milhões de brasileiros que vivem em condições precárias, e, nesse momento, garantir habitação em condições de conforto, segurança e salubridade para todos adquire um caráter de emergência ainda maior. Corremos risco de passarmos por grandes tragédias sociais se não dermos moradia adequada à população sem teto e aos moradores de favelas e palafitas ainda tão presentes nas cidades brasileiras, além do impacto ambiental de ainda termos uma parcela da população relevante vivendo praticamente sobre cursos d´água e em áreas ambientalmente frágeis.
Voltando a uma visão geral do momento, as tendências pós-pandemia apontam para uma oportunidade de desacelerarmos os impactos do homem sobre o planeta, e indicam que já temos parte dessas soluções, mas nunca tivemos coragem de implantá-las de fato. Elas vão desde repensar nosso modelo de ocupação do território ao tipo de comida que colocamos em nossos pratos, lembrando que este último aspecto é apontado como provável causador do Covid-19 em seres humanos.
A pandemia é resultado do excesso de pressões que exercemos sobre o ecossistema, e se não mudarmos, outras virão com maior impacto. Repensar a relação do homem com a natureza é a solução para o retorno à vida em comunidade.
*Pedro Lira, arquiteto e urbanista, é sócio-fundador da Natureza Urbana, consultor para espaços públicos da United Nations Office for Planning Services (UNOPS) e representante do Brasil no Comitê de Cidades Emergentes World Urban Parks (WUP)
[Foto: Giang Tran/ Unsplash]