A Covid-19 tem levado ao surgimento informal de diversas iniciativas sociais para atender a população mais vulnerável. Mas para que essas ações se mantenham após a pandemia – que terá efeitos danosos por um longo período –, uma estruturação jurídica é recomendável. Saiba aqui como constituir uma entidade do Terceiro Setor
Diversas iniciativas sociais estão surgindo informalmente para combater os efeitos da pandemia de Covid-19, demonstrando que há uma grande movimentação da sociedade para ajudar as pessoas em situação mais vulnerável. Sabe-se que as consequências da pandemia serão enormes, o que tornará tais ações ainda mais necessárias por um longo período.
Entretanto, sem estruturação jurídica, tais iniciativas sociais podem acabar após a pandemia. Assim, o objetivo deste artigo é trazer aos grupos informais, líderes de movimentos sociais, braços de responsabilidade social de empresas e outros interessados, orientações jurídicas preliminares sobre a constituição de uma entidade do Terceiro Setor (também denominada Organização da Sociedade Civil – OSC, nos termos da Lei n˚ 13.019/2014).
Há diversas vantagens em se constituir uma entidade do Terceiro Setor, que podem variar conforme o caso. De forma geral, destacamos como ganhos a composição de uma governança apropriada para a consecução do objeto social, a profissionalização das atividades, a garantia de maior transparência e credibilidade junto aos parceiros, doadores e sociedade em geral e a adequada canalização dos recursos financeiros. Também pode possibilitar o acesso a incentivos fiscais, imunidade e isenções tributárias, parcerias com o poder público, patrocínios de empresas e a participação em editais de fomento, ampliando sobremaneira as oportunidades para captação de recursos.
O primeiro passo para a constituição é a escolha da natureza jurídica da entidade. À luz do ordenamento jurídico brasileiro, as formas mais comuns de pessoas jurídicas sem fins lucrativos são as associações e as fundações. Serão abordados, a seguir, os principais traços distintivos entre elas, ao mesmo tempo em que serão apresentadas algumas orientações iniciais.
As associações têm como característica fundamental o elemento pessoal, consubstanciado por meio da reunião de pessoas (os “associados”) para fins distintos do lucro. As fundações também não possuem finalidade lucrativa, mas o elemento central é o patrimônio. Uma fundação é um acervo de bens livres que recebe da lei a capacidade jurídica para realizar as finalidades pretendidas pelo seu instituidor, em atenção ao seu estatuto.
A criação de uma associação independe de autorização do Poder Público [1], e sua existência inicia-se, no plano legal, com a inscrição de seus atos constitutivos (ata de constituição com a aprovação do Estatuto Social e eleição dos dirigentes) no Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas da sede da entidade. A constituição de uma fundação, por sua vez, é feita por escritura pública ou testamento, devendo o instrumento de constituição, após aprovado pelo Ministério Público, ser registrado no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, momento em que começará a existência legal da fundação.
Em relação aos objetivos, enquanto nas associações são definidos pelos próprios associados e podem sofrer alterações, nas fundações esses objetivos são determinados pelos instituidores e tem o condão de reger a fundação por toda a sua existência.
A união de pessoas sob a forma de associação presta-se aos mais diversos objetivos (por exemplo, educacionais, culturais e assistenciais). É certo, por outro lado, que algumas associações terão um caráter essencialmente social ou de interesse público, enquanto em outras prevalecerá primordialmente o interesse dos próprios associados.
Com relação às finalidades possíveis para a instituição de fundações, o artigo 62, parágrafo único do Código Civil, menciona as seguintes: (i) assistência social; (ii) cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; (iii) educação; (iv) saúde; (v) segurança alimentar e nutricional; (iv) defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; (vii) pesquisa científica, desenvolvimento de tecnologias alternativas, modernização de sistemas de gestão, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos; (viii) promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos; e (ix) atividades religiosas.
De toda maneira, parece claro que tal dispositivo não se presta a afixar um rol taxativo e nem limitativo acerca das atividades fundacionais, sendo cabível interpretação mais extensiva, desde que, por óbvio, a entidade seja sem fins lucrativos e atenda ao interesse coletivo, o que pode abarcar diversas outras atividades, entre elas o esporte, a moradia, a gestão de fundos patrimoniais, a promoção do voluntariado.
Quanto ao elemento patrimonial, não existe obrigatoriedade de dotação inicial para constituição das associações. Já para as fundações, o patrimônio é condição indispensável e deve ser suficiente para o cumprimento das finalidades institucionais inscritas no estatuto da entidade. Poderão lhes ser dotados quaisquer tipos de bens, o que inclui tanto imóveis quanto bens móveis, desde que “livres” [2]. Ou seja, desde não estejam gravados com qualquer tipo de ônus e cuja alienação não prejudique terceiros.
A fiscalização nas associações é feita pelos próprios associados, enquanto nas fundações existe o velamento do Ministério Público, ao qual as fundações prestam contas.
Quanto à administração, enquanto nas associações predomina a vontade dos associados, nas fundações a forma de gestão é estabelecida pelos instituidores, cabendo aos órgãos deliberativos e administrativos, de acordo com as competências previamente estabelecidas nos estatutos, buscar satisfazê-la.
Ainda com relação à governança, normalmente os órgãos estabelecidos nos estatutos são: assembleia geral para associações ou conselho curador para fundações, diretoria e conselho fiscal. É possível, ainda, a existência de outros órgãos, como conselhos técnicos e consultivos.
Com relação à elaboração do estatuto, em todos os casos, recomenda-se que seja claro, preciso e completo, especialmente quanto à construção do objeto e das regras de funcionamento, sendo aconselhável a previsão expressa, dentre outros, dos seguintes pontos: (i) denominação, fins, sede e tempo de duração; (ii) fontes de recursos para sua manutenção; (iii) condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução ou extinção da entidade; (iv) forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas; (v) representação da entidade em juízo e fora dele; (vi) as responsabilidades dos dirigentes e membros.
Além dos pontos acima, os estatutos das associações também devem dispor sobre os requisitos para a admissão, demissão e exclusão de associados, seus direitos e deveres, sobre as categorias dos associados, entre outros.
No caso das fundações, também é comum que tratem do patrimônio com o qual o instituidor irá dotar a fundação e da fiscalização pelo Ministério Público. A elaboração do estatuto requer cautela, pois eventual reforma das disposições estatutárias implica a deliberação de, no mínimo, dois terços dos competentes para gerir e representar a fundação, sendo necessária aprovação do Ministério Público. Além do que, não são admitidas alterações que contrariem ou desvirtuem a finalidade inicial da fundação [3].
A definição de determinados pontos no estatuto também é condição determinante para que a entidade possa pleitear títulos, fazer jus a incentivos ou benefícios fiscais ou, ainda, para que seja possível a celebração de parcerias com o poder público.
É altamente recomendável que o texto estatutário atenda aos preceitos da Lei nº 13.019/2014 (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil – MROSC), incluindo previsões relativas à transparência, destinação de recursos, não vinculação a campanhas político-partidárias, dentre outras. Com isso, a entidade terá o enquadramento na definição de OSC [4] e poderá gozar dos benefícios específicos da lei, como a fruição do incentivo fiscal de que trata seu artigo 84-B, que permite receber doações dedutíveis até o limite de 2% do lucro operacional da pessoa jurídica doadora (tributada pelo lucro real).
Como se vê, há diversos requisitos a serem cumpridos, bem como aspectos particulares de cada iniciativa social a serem considerados, para a adequada constituição de uma pessoa jurídica sem fins lucrativos. Entretanto, superado este momento inicial de criação da associação ou fundação, certamente a estruturação jurídica contribuirá fortemente para a continuidade, o fortalecimento e a viabilidade econômica de projetos sociais surgidos em virtude da pandemia.
*Erika Spalding e Camila Corazza Borenstein são sócias na área de Terceiro Setor do escritório Spalding Sertori Advogados, especializadas em assessoria jurídica para entidades sem fins lucrativos
[1] Art. 5º, XVIII da Constituição Federal.
[2] Art. 62 do Código Civil.
[3] Art. 67 do Código Civil.
[4] Art. 2º, inciso I, da Lei nº 13.019/2014. Destacamos a definição constante na alínea “a” de referido inciso: “entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva”.
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