Ainda que o custo para produção de energia a partir de fontes renováveis tenha caído de forma significativa na última década, a queda foi insuficiente para torná-las competitivas em relação aos combustíveis fósseis. Mas a crise abre a oportunidade de repensar valores e conceitos. Passado o pico da epidemia, temos uma escolha a fazer para retomar o crescimento econômico e sanar as perdas decorrentes da crise: quais serão as fontes de energia mais adequadas para a retomada?
Estudos preliminares indicam que a taxa de mortalidade por Covid-19 é maior nas cidades com níveis de poluição mais elevados. Esses indícios não surpreendem, uma vez que a poluição do ar é causadora ou agravante de inúmeras doenças respiratórias. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a poluição do ar vitimou mais de quatro milhões de pessoas em 2019.
Até recentemente, a poluição era vista como uma externalidade inevitável do crescimento econômico pós-revolução industrial, alicerçado em combustíveis fósseis. O desgaste ambiental era o preço a ser pago pelos inúmeros avanços sociais conquistados com o desenvolvimento, como a redução da mortalidade infantil e das pessoas em situação de miséria, o aumento da expectativa de vida e o maior acesso à educação, por exemplo. Mas hoje sabemos que a degradação da natureza tem altíssimo custo e pode colocar em cheque todos esses benefícios.
Além dos efeitos em curto prazo relacionados à poluição atmosférica e aos impactos imediatos na biodiversidade local, a matriz energética fóssil é um dos principais propulsores do aquecimento global. Eventos climáticos severos, com desdobramentos sociais dramáticos, como inundações e incêndios, são cada vez mais frequentes. A previsão dos cientistas é de uma aceleração desses fenômenos ao longo dos anos, causando impactos ainda mais significativos em termos de perdas de vidas e, no limite, colocando em risco o equilíbrio de todo o planeta Terra.
O aquecimento global é um desafio para a saúde pública. Além das doenças respiratórias associadas à poluição, os eventos extremos podem prejudicar a produção mundial de alimentos e o acesso de populações à água potável, intensificando a desnutrição e a desidratação. A ciência também vem relatando há alguns anos o aumento do risco de pandemias. Temperaturas mais elevadas favorecem a adaptação de micro-organismos, ampliam o raio de ação dos vetores de doenças existentes e alteram a distribuição geográfica das plantas e animais – muitas espécies se deslocam em direção a latitudes mais altas fugindo das ondas de calor e do desmatamento, ampliam sua rede de interações e criam oportunidades para que patógenos antes restritos a pequenas regiões encontrem novos hospedeiros e se disseminem.
A crise da Covid-19 desestabilizou a economia mundial, mas também deve reduzir substancialmente a emissão de gases de efeito estufa em 2020. A Agência Internacional de Energia estima índices de emissões quase 8% inferiores aos de 2019. Passado o pico da epidemia, temos uma escolha a fazer para retomar o crescimento econômico e sanar as perdas decorrentes da crise: quais serão as fontes de energia mais adequadas para a retomada?
Atualmente, temos diversos energéticos limpos disponíveis e escaláveis capazes de sustentar uma economia pujante e em equilíbrio com o meio ambiente, como é o caso da energia solar, eólica, biodiesel, etanol, biometano e tecnologias de geração de energia oriunda de resíduos (waste-to-energy). Ou seja, o trade-off entre desenvolvimento econômico e conservação ambiental não é mais verdadeiro. No entanto, segundo estudos científicos, a participação de mercado das tecnologias limpas cresce em ritmo menor que o necessário.
Ainda que o custo para produção de energia a partir de fontes renováveis tenha caído de forma significativa na última década, a queda foi insuficiente para torná-las competitivas em relação aos hidrocarbonetos em diversas aplicações. A falta de competitividade é atribuída a diversos fatores, entre eles a concorrência com uma indústria centenária com players capitalizados, cujo custo de capital é significativamente baixo; a infraestrutura de distribuição já estabelecida no mundo todo, produzindo um efeito de rede que reduz os custos operacionais; a existência de isenções de impostos e regimes especiais de tributação que beneficiam essa indústria em diversos países produtores – Brasil inclusive – e ainda o fato de que os efeitos colaterais na saúde, apontados anteriormente, conhecidos como externalidades, não compõem o custo direto dos combustíveis fósseis, tornando-os artificialmente baratos.
Atualmente, há incentivos para as fontes alternativas de energia elétrica e para os combustíveis limpos, mas eles valoram parcialmente os benefícios das fontes renováveis. Ao mesmo tempo, há um descrédito por parte da classe política em relação à ciência, movimento batizado de negacionismo científico, que faz com que em muitos casos nem mesmo seja reconhecida a existência das mencionadas externalidades, impedindo uma apreciação adequada dos impactos positivos das fontes renováveis. Esse cenário configura a concorrência desleal entre a energia fóssil e a renovável.
O cenário em médio prazo, influenciado pelos impactos da pandemia, torna-se ainda mais desafiador: a queda significativa do preço do petróleo e o consequente aumento da competitividade dos combustíveis fósseis em comparação com os renováveis podem desacelerar ainda mais o processo de transição para a bioeconomia. Em contrapartida, a Covid-19 nos trouxe outras reflexões importantes como sociedade.
Além de ressignificar as relações humanas, descobrimos que há formas de trabalhar e nos reunir sem sair de casa, evitando deslocamentos e emissões desnecessárias. Aprendemos que uma pequena redução de emissões, cerca de 32% nas primeiras três semanas da quarentena em São Paulo, foi suficiente para podermos notar as belezas da cidade despoluída. Tomamos consciência de que se trabalharmos unidos como sociedade, podemos preservar vidas. E que, depois de tantos alertas ignorados, resultando em alto custo econômico e, principalmente, de milhares de vidas, temos de confiar na ciência.
Diante desse cenário de falta de urgência para reestabelecer a justa competição entre os produtos fósseis e renováveis e dos aprendizados recentes com a epidemia de Covid-19, cabe a cada um de nós a tarefa de rever os paradigmas e tomar uma decisão. Continuaremos considerando os combustíveis fósseis como substitutos perfeitos dos limpos e renováveis? Será que aqueles que possuem um carro flex, ao abastecer, devem sacar suas calculadoras para saber se por alguns centavos é mais vantajoso substituir o etanol pela gasolina? Será que vale a pena gastar um pouco mais para substituir as frotas de caminhão e ônibus movidos a diesel por veículos elétricos ou movidos a biometano? Quanto cada um de nós está disposto a pagar para adquirir energia elétrica de fontes renováveis?
Estamos habituados a considerar apenas o preço da etiqueta dos produtos para tomarmos a decisão de compra e nos esquecemos de incluir na conta o valor de um ambiente mais limpo e, em especial, os custos para nossa saúde decorrentes da qualidade do ar e dos efeitos do aquecimento global. Quando o modelo econômico não precifica as externalidades ou as formas de mitigá-las, cabe à sociedade saber se está disposta a pagar para salvar mais de quatro milhões de vidas anualmente; avaliar quanto vale nossa saúde e a de nossos filhos.
Temos convicção de que com novas tecnologias e aumento da escala de produção dos combustíveis limpos, não será necessário pagar nada a mais no futuro para usufruirmos desses benefícios, mas para chegar lá precisamos de atitudes conscientes das pessoas e empresas hoje. A crise é uma boa oportunidade para repensarmos nossos conceitos e atitudes e construirmos um mundo melhor daqui por diante.
* Daniel Rossi é CEO da ZEG, empresa do Grupo Capitale dedicada a energias renováveis e neutralização de emissões de GEE
[Foto: Thiago Japyassu/ Unsplash]