[Foto: Agricultura familiar / Divulgação /Codevasf]
Pequenos e médios produtores enfrentam uma série de dificuldades para cumprir as garantias exigidas pelo setor financeiro para viabilizar o crédito. Uma possível forma de melhorar as condições de acesso ao Programa ABC e ao Pronaf seria ampliar o papel do BNDES para além do repasse de recursos, de forma que atue também como garantidor. Isso contribuiria para a fixação do homem no campo, ampliaria a produção de alimentos com baixo impacto ambiental e promoveria o desenvolvimento econômico nas regiões rurais
Em plena pandemia, ficou ainda mais perceptível a importância da alimentação na vida das pessoas. Com as medidas de restrições de mobilidade, fechamento de lojas, bares, restaurantes, shopping centers e distanciamento social, além da permanência de boa parte da população em seus lares, o cuidado com o suprimento, preparo e consumo de alimentos passou a ser parte fundamental da rotina de todos nós.
A agricultura vem exercendo um papel-chave na oferta de alimentos, em particular os frescos. E, como setor essencial, tem garantido empregos e renda no campo e nas cidades para todos que fazem parte de sua cadeia de produção, distribuição e comercialização.
Fica evidente a relevância do setor e, em especial no atual contexto, a grande importância socioeconômica da agricultura familiar. Este segmento recebe, no mundo inteiro, o apoio de políticas públicas para dar conta de investir, avançar tecnologicamente e competir com médios e pequenos agricultores.
Diante da situação desafiadora da atual pandemia, a política pública torna-se ainda mais relevante para a sobrevivência, a geração de emprego e de renda e a contribuição dos agricultores familiares para a alimentação e para a saúde da população. Com isso, ganha destaque a questão do crédito e, em particular, de um sistema de garantias que permita o melhor e efetivo acesso a esse recurso por parte desses produtores.
As recentes medidas de emergência tomadas pelo governo para apoiar os mais afetados pela pandemia, seja empresas, seja pessoas físicas, evidenciaram a dificuldade de acesso efetivo ao crédito, prejudicando parcialmente os objetivos dessas próprias medidas. Essa situação também ajuda a compreender melhor um dos desafios da agricultura de pequeno porte, em que o acesso ao crédito ainda é um impeditivo para muitos.
Apesar desse cenário, o biênio 2019/2020 teve um desempenho melhor do que os anos anteriores em relação à contratação de crédito pela agricultura de pequeno porte. A Secretaria de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) anunciou em julho de 2020 que cerca de R$ 191,8 bilhões, dos R$ 225,59 bilhões do Plano Safra programados para 2019/2020, foram contratados entre julho do ano passado e junho deste ano.
Do total contratado, os valores destinados ao Programa ABC, linha de crédito do Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (Plano ABC), somam R$ 2,07 bilhões, o que corresponde a 99% do total disponibilizado de R$ 2,1 bilhões para essa finalidade.
Esse excelente desempenho, contudo, não foi observado nos anos anteriores. Somando os recursos das safras de 2010/2011 até 2018/2019, o total desembolsado pelo Programa – R$ 18,82 bilhões – correspondeu a apenas 68% do disponibilizado, de R$ 27,58 bilhões, segundo estudo do Observatório ABC.
O Plano ABC previa um volume total de R$ 183 bilhões de crédito rural para adoção de suas práticas no período de 2010 a 2020, sendo R$ 152 bilhões de recursos para médios e grandes produtores e R$ 31 bilhões destinados à agricultura familiar, via Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Neste último caso, os recursos para práticas da agricultura de baixo carbono podem ser obtidos via linhas como o Pronaf-Eco e o Pronaf-Florestas.
O histórico de contratação menor que o valor providenciado nos anos anteriores evidencia a necessidade de se aprimorar o Programa ABC. Ao mesmo tempo, é notória a dificuldade de disponibilizar recursos públicos para cumprir as metas do Plano ABC, uma vez que o montante acumulado de recursos disponibilizado é bem inferior ao previsto no desenho inicial do plano. Essas constatações se somam à percepção de que o acesso ao crédito rural como um todo, como também ao Programa ABC, ainda possui muitas barreiras.
A boa notícia é que o Plano Safra 2020/21, anunciado em abril – que contará com R$ 236,3 bilhões para apoiar a produção agropecuária nacional, um aumento de R$ 13,5 bilhões em relação ao plano anterior – apresentou um aumento de 20% dos recursos destinados ao Programa ABC. A redução da taxa de juros é outro indicativo de diferenciação desse Programa, que possui as menores taxas após o Pronaf. Além disso, o ABC Ambiental agora permite também financiar a aquisição de Cotas de Reserva Ambiental (CRA) para compensação de áreas de Reserva Legal.
Esses avanços, apesar de muito bem-vindos, ainda não são suficientes para solucionar a dificuldade que pequenos e médios produtores enfrentam em cumprir as garantias exigidas pelo setor financeiro para viabilizar o crédito.
Nesse sentido, uma possível forma de melhorar as condições de acesso ao Programa ABC e ao Pronaf seria ampliar o papel do BNDES para além do repasse de recursos, de forma que atue também como garantidor, complementando as garantias exigidas pelo agente financeiro para a concessão de crédito.
Como instituição de apoio e promoção de políticas públicas, o BNDES poderia encontrar formas de tomar o risco inicial junto aos agentes financeiros em suporte ao pequeno e médio produtor, assumindo toda ou parte da garantia exigida.
O BNDES já exerceu fortemente esse papel na viabilização de investimentos em infraestrutura, quando houve uma onda de privatizações, por exemplo, ao aceitar o contrato de concessão de obras públicas como garantia real, desatando o nó que impedia a estruturação financeira das parcerias público-privadas.
Para o agronegócio, em especial os pequenos e médios produtores, essa postura poderia culminar em acréscimo no volume de crédito tomado e dinamizaria a atividade. Com regras apropriadas, poderia ainda desenvolver algo específico como reforço para o Programa ABC.
Isso contribuiria para a fixação do homem no campo de maneira sustentada, ampliaria a produção de alimentos com baixo impacto ambiental e promoveria o desenvolvimento econômico nas regiões rurais. Permitiria, ainda, que o Programa ABC e o Pronaf fossem reforçados e ampliados na área da agricultura familiar, gerando emprego e renda.
*Ângelo Gurgel é professor da FGV e membro da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura
**Kalil Cury Filho é sócio-fundador da Partner Desenvolvimento de Negócios e um dos líderes do Fórum de Diálogo Políticas Públicas e Instrumentos Econômicos da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura