[Foto: momento em que ABC News alerta para afirmações falsas de Donald Trump]
Governantes utilizam a comunicação como meio de manipulação, forçando a constituição de mitos poderosos, mas falsos. Para isso, criam um processo contínuo de hipnose coletiva a partir da repetição de informações e ângulos de perspectiva completamente sem base. Mas a comunicação pode ser praticada de maneira construtiva, de modo a abrir a consciência do indivíduo. O primeiro passo é o auto confronto com as sombras pessoais e com as coletivas
O episódio histórico de cinco redes de televisão americanas interromperem a transmissão ao vivo da coletiva de imprensa de Donald Trump em 5 de novembro, em que alegava fraude na contagem de votos da eleição presidencial, é emblemático de uma movimentação espontânea transformadora que cresce nos meios jornalísticos, simbolizando simultaneamente a urgente mudança de perspectiva necessária em todos os setores da sociedade, sob pressão das múltiplas crises existenciais que assolam a civilização contemporânea.
As cadeias ABC, CBS, CNBC, MSNBC e NBC justificaram o corte da transmissão de bate-pronto, com seus âncoras afirmando que as alegações do presidente eram falsas. Ou mesmo simplesmente desonestas, como afirmou o repórter Daniel Dale, da CNN, que não interrompeu a fala de Trump, mas inseriu o comentário desse profissional, conhecido pelo rigoroso trabalho de conferência de fatos dos discursos do mandatário.
O dramático desenrolar da eleição, em meio ao tsunami da piora exponencial da pandemia nos Estados Unidos, da explosão de casos de violações dos direitos civis e de racismo, da divisão socialmente trágica do país entre os partidários da extrema direita xenófoba e do polo contrário, trouxe à tona a grande oportunidade de o povo americano deparar-se com suas próprias sombras.
O caso singular do governo Trump, porém, nos oferece uma matriz de entendimento que, extraídas as particularidades americanas, em essência serve para uma leitura significativa do que acontece também no Brasil, estando no Poder Executivo federal um governante de traços algo parecidos e de um estilo de governança bastante afim com o belicoso modelo trumpista.
Se quisermos oferecer ao público uma comunicação que faça sentido e traga elementos consistentes para ajudar o receptor da mensagem a ampliar sua visão do mundo, subindo o nível do seu discernimento, temos que sair da caixa preta convencional da leitura restrita às polaridades ideológicas. Só vamos trazer compreensão e ressignificação se ampliamos nossa base de entendimento para uma plataforma da complexidade, e não mais da simplicidade maniqueísta que nos impõem.
Iniciativas de comunicação que seguem essa linha inovadora entendem que vivemos mergulhados em caixas forjadas de realidade. O que consideramos como realidade é fruto de um jogo complexo que forma os mitos – narrativas que fazem algum sentido, pelo menos aparentemente, constituindo os modelos de realidade que guiam e direcionam nossas vidas – coletivos, sociais, assim como os pessoais.
Somos frutos das histórias que nos contam e introjetamos, vindas da cultura, dos meios de comunicação, da educação, da influência social, das nossas experiências externas e internas, do nosso passado, do nosso condicionamento psicológico, a partir do efeito intelectual, emocional, biológico e psíquico que a nossa vivência provoca com essa multiplicidade de experiências. Como nos comportamos e reagimos depende do grau de consciência que conquistemos sobre nós mesmos e o mundo à nossa volta.
O problema é que, na maioria das vezes, atribuímos poder aos outros para nos dizer o que é real, abandonando o fundamental processo de autoconhecimento que precisa caminhar em sintonia com o olhar externo, se quisermos crescer como seres conscientes e nos transformar, em resposta à pressão evolutiva que os desafios dessas crises gigantescas disparam sobre os indivíduos e os povos.
Nessa busca de compreensão transformadora e libertadora dos elos que nos escravizam numa matrix – a caixa de realidade reduzida em que a maior parte da sociedade vive –, o primeiro passo decisivo em direção à luz é o confronto com as nossas sombras.
Essa é a grande oportunidade iluminadora que o caso Trump trouxe à sociedade americana. Por extensão comparada, é o que pode nos trazer no Brasil, por alguns traços parecidos do governante atual e seu governo por aqui. E pelo pano de fundo comum do que representa, como impulso à necessária transformação de consciência que a tragédia da pandemia mobiliza.
Como os governantes utilizam a comunicação como meio de manipulação, forçando a constituição de mitos poderosos, mas falsos? Criando um processo contínuo de hipnose coletiva a partir da repetição de informações e ângulos de perspectiva absolutamente sem base. A repetição contínua de mentiras apresentadas como verdades pode finalmente se instalar na psique do indivíduo. Essas mentiras normalmente apontam as causas dos problemas como sendo externas ao indivíduo. É sempre o outro o culpado pelos nossos infortúnios.
Foi assim que Trump virou o jogo a seu favor, na Flórida, conquistando boa parte da comunidade latina de colombianos, venezuelanos, nicaraguenses e outras etnias, vendendo-lhes a narrativa de que Joe Biden representaria o socialismo. Claro, muitos desses grupos de imigrantes têm incrustado em suas almas o trauma de governos como o de Hugo Chávez e o de Nicolás Maduro. Aprisionados pelo medo do passado, não conseguiram ver o xenofobismo branco de Trump, nem colocar na balança sua radical política anti-imigratória, escandalosamente simbolizada pela construção do muro com o México.
É por aí que se pode entender a lógica estratégica do negacionismo – lá e aqui – quanto à Covid-19. A comunicação que dá ouvidos a essa estratégia, sem questionar, como fizeram as tevês americanas por muito tempo nas entrevistas coletivas presidenciais, está voluntária ou involuntariamente a serviço de manutenção da consciência coletiva nesse patamar limitado de entendimento de interesse da matrix governante.
Felizmente, porém, a comunicação pode ser praticada de maneira construtiva, de modo a abrir a consciência para uma elevação de nível que pode impulsionar o indivíduo para fora da caixa. O primeiro passo é sempre o auto confronto individual com as sombras pessoais e com as coletivas, pois é daí que nascem os primeiros elementos das narrativas que governam nossas vidas.
No caso Trump, veículos digitais que praticam comunicação construtiva, como Up Worthy, deram voz à análise da psicóloga Elizabeth Mika sobre o narcisismo maligno do presidente americano. Uma condição que a pesquisadora identifica como associando psicopatia (“falta de consciência”) e narcisismo (“fragilidade do ego que se manifesta em sua insaciável necessidade de adulação”).
Essa deficiência de caráter do líder narcisista encontra eco nos seguidores que apresentam as mesmas necessidades patológicas. Pessoas feridas psicologicamente, de egos frágeis, inseguras, resistentes a encarar suas sombras, projetando nos outros as causas dos seus males e na glória falsa do seu ídolo seu próprio sonho de grandeza. O outro lá fora, o inimigo forjado, o diferente, torna-se o alvo de descarga do seu ódio interno por si mesmo. Daí pode-se compreender a cultura do ódio alimentada estrategicamente, como método de governança, pelos Trumps e Bolsonaros do mundo.
A questão maior que envelopa tudo isso, mais tragicamente ainda, é que o negacionismo da pandemia – lá e aqui –, o desprezo pela crise climática, a rejeição da diversidade humana e das diferenças sociais, a supervalorização cega da economia em detrimento da saúde formam um conjunto de posturas amantes da morte.
Neste momento crucial de transformação global em que tudo pressiona a humanidade a uma tomada de atitude em favor da vida, da solidariedade e do entendimento que estamos todos interconectados e fazemos parte de um só todo – pessoas, povos, natureza, o planeta Terra, o cosmos –, a comunicação cega que contribui para a manutenção da inconsciência precisa, ela própria, se transformar.
Felizmente, já temos a consciência construtiva despontando no horizonte, trazendo sua contribuição nesta hora crítica em que todos temos de nos dar as mãos. Sua contribuição é nos apontar, para além das sombras, as luzes que aguardam nossa resposta ao desafio da existência para evoluirmos em direção ao nosso potencial mais precioso. Seres e sociedades conscientes.
*Edvaldo Pereira Lima é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Educação pela Universidade de Toronto. Story coach, professor universitário e autor de diversos livros, dois dos quais programados para lançamento este ano, produzidos em sintonia com o conceito de Comunicação Construtiva. É idealizador da Rede de Comunicação Construtiva, que fará seu primeiro evento digital público, em parceria com o Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP e com a Página22, no dia 26 de novembro.