Por que o mercado voluntário se mantém aquecido mesmo em um ano historicamente ruim para a economia global?
A mudança do clima é um tópico discutido anualmente pelos países integrantes da Nações Unidas há pelo menos 28 anos, desde a Rio 92. Hoje há quase uma unanimidade, seja na ciência, seja no posicionamento dos estados, que vivemos uma crise climática. As exceções têm caído em descrédito uma a uma, sendo atreladas a interesses comerciais ou políticos populistas, todas elas regadas a fartas doses de notícias falsas ou fora de contexto.
Na esteira dessa discussão, o papel dos mercados apareceu cedo, mais especificamente em 1997 com a assinatura do Protocolo de Kyoto, que visava reduzir em 5% as emissões globais em relação aos níveis de 1990 até 2012. Entre as formas de implementação desse compromisso, estava o saudoso Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), um caso clássico de busca de flexibilização e eficiência do comando e controle com o uso do poder e agilidade do mercado. Seu legado em termos de redução de emissões foi pífio, mas a governança do tema, a priorização da agenda das nações, o nível de conhecimento acadêmico e técnico, todos evoluíram exponencialmente.
Entre marés baixas, como a conferência de Copenhague, e altas, como a de Paris, a proposta de um novo mercado global vagou solta, sem dono, sem força, nem ambição. Mas enquanto as nações brincavam de empurrar o problema com a barriga e discutiam quem pagaria a conta, um movimento de baixo para cima ganhava força, inicialmente capitaneado pela sociedade civil organizada e, posteriormente, abraçado pela iniciativa privada – os mercados voluntários de créditos de carbono. Estes são movidos por todos os outros vetores de engajamento que não a regulação: reputação, acesso a mercados, análise de riscos, instinto de sobrevivência, licença social para operar, entre outros.
Até que chegamos em 2020, com o mundo mais desigual do que nunca, com baixo crescimento econômico, dividido entre nações pró e contra imigração, entre pró e contra globalização, com notícias falsas ganhando eleições e líderes populistas movendo uma cruzada contra a ciência. Em um cenário já adverso veio a pandemia e, com ela, a receita perfeita para os estados e também empresas colocarem de vez uma pá de cal sobre qualquer acordo climático global. O que estava evoluindo lentamente na agenda climática seria pausado, o que já estava pausado sofreria retrocessos e, com sorte, voltaríamos no assunto daqui a cinco anos, com a rota de aquecimento para além dos dois graus já consolidada.
Neste cenário, nem o mais otimista apostaria na sobrevivência do mercado, em especial daquele que não se apoia em leis nacionais ou regionais como vemos em alguns países ou províncias. Mas apesar disso, há sinais de um novo impulso no mercado de carbono voluntário, puxado por uma maior demanda por créditos de carbono relacionados a Soluções Baseadas na Natureza para atender a metas de emissões líquidas zero de grandes empresas.
Segundo destacou o Ecosystem Marketplace, em relatório lançado em setembro durante a Semana do Clima em Nova York, o Google, por exemplo, divulgou em setembro que dará um passo para além da neutralidade para tornar suas operações carbono negativas, de modo que capturem mais emissões do que emitem. Até conseguir esse feito, a empresa de tecnologia continuará compensando as emissões que não conseguir eliminar. A organização anunciou que já compensou o suficiente para neutralizar suas emissões desde a sua fundação em 1998.
Ainda segundo o Ecosystem Marketplace, o volume de créditos para compensações (offset) tem sido surpreendentemente alto em 2020. Apesar da pandemia de Covid-19, as entrevistas conduzidas pela organização com profissionais do mercado apontam que o volume de transações no mercado voluntário em 2020 pode até exceder o de 2019.
O volume de créditos comercializados no mercado voluntário atingiu seu maior pico em 2019, com um valor de US$ 320 milhões. Segundo o Ecosystem Marketplace, o mercado voluntário de carbono movimentou US$ 5,5 bilhões nos últimos 20 anos.
Outra publicação referência, o States and Trends of Carbon Pricing, lançado em maio de 2020 pelo Banco Mundial, reforça essa tendência de crescimento do mercado de carbono voluntário. Com mais empresas comprometendo-se com metas de emissões líquidas zero ou buscando desenvolver soluções climáticas positivas, a publicação também aponta para uma tendência de aumento na busca por compensações por parte do setor empresarial, especialmente nos casos em que incluam o escopo 3 (emissões indiretas e/ou ao longo da cadeia de valor) nos seus compromissos.
O levantamento da IETA Climate Challenges Market Solutions e da PwC, outra referência no assunto, revela uma expectativa de baixa nos preços dos créditos de carbono nos mercados regulados por causa da Covid-19. Contudo, aponta sinais mais positivos no mercado voluntário devido a uma maior adoção de compromissos empresariais mais ambiciosos, como metas absolutas de reduções de carbono. Eles também observam um ressurgimento do interesse dos clientes por compensações para mitigar os impactos ambientais dos produtos e serviços que escolhem. Essa tendência deverá sustentar a fixação de preços para créditos voluntários de carbono no médio prazo, segundo estimativas da organização.
A IETA destaca ainda como principais impulsionadores do mercado de carbono voluntário a ciência e o reconhecimento do senso de urgência quanto à necessidade de uma transformação dos negócios; a liderança do setor privado; e a delimitação das fronteiras entre ação voluntária e compliance.
Aos poucos, o cenário pós-pandêmico apresenta-se sobre a agenda climática de forma mais positiva do que poderia se imaginar, provocando uma reflexão sobre os vetores de engajamento. Quais seriam as razões para não só a sobrevivência, mas o fortalecimento dessa agenda a nível global?
- Teria a pandemia despertado a importância do reequilíbrio ambiental para a qualidade de vida e desenvolvimento econômico?
- Talvez o retiro forçado pelo confinamento e a redução da agenda social tenham permitido tempo para uma reflexão sobre o que, de fato, deve ser a prioridade no âmbito pessoal e profissional?
- Quem sabe o desmatamento e as queimadas, em especial na Amazônia, tiveram poder de engajamento e sensibilização global, a ponto de sustentar os compromissos voluntários de grandes corporações e direcionar investimentos para créditos florestais e do setor agrícola?
- Teriam os pontos acima ajudado a acelerar um processo já em curso de engajamento do indivíduo como indutor de mudanças, ou no papel de consumidor, investidor, regulador ou comunidade, aumentando a pressão por mudanças substanciais na agenda climática?
Com certeza cada um desses fatores teve sua contribuição, mas o resultado dessa movimentação positiva só saberemos, de fato, em novembro de 2021, quando se realiza a Conferência das Partes da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança Climática (COP 26), em Glasgow. Lá, veremos se há vontade política para implementar de fato uma economia regenerativa através dos mercados, ou se o engajamento verificado é apenas um soluço na rota de uma crise climática maior.
*Roberto Strumpf, diretor executivo da Pangea Capital, é graduado em Biologia pela Universidade de São Paulo (2004) com foco em Ecologia Humana. É mestre em Ciências Ambientais pela University of Sydney (2008), com foco em energia e mudança climática.
[Foto: Canvas_Stephane Bidouze]