[Imagem: Apagão em Macapá. Protestos no bairro de Santa Rita em 7 de novembro de 2020. Foto: Rudja Santos/Amazônia Real]
Como uma região de grande potencial hidrelétrico, solar e de biomassa pode sofrer com a falta de energia? Independente dos responsabilidade pelo incidente no Amapá, o certo é que se o Brasil estivesse mais avançado no modelo de geração distribuída, o ensolarado estado não teria ficado na escuridão
As notícias do estado do Amapá, com a população sofrendo mais de três semanas de problemas no abastecimento energia elétrica, causaram indignação. Como se sabe, a crise começou no primeiro apagão no dia 3 de novembro com um incêndio em uma subestação que abastece todo o estado. A energia voltou a ser estabelecida, na forma de rodízio, só no dia 8.
Ou seja, nos intermináveis cinco dias em que o mundo reclamava da demora do resultado das eleições americanas, o estado do Amapá viveu irrecuperáveis prejuízos na forma de perda de alimentos (sem refrigeradores), na saúde (sem água encanada), em trabalhos e oportunidades (sem computadores), no lazer (sem televisão), e assim por diante.
Quando a eletricidade voltou, limitada, na forma de rodízio, ainda causou enormes danos, como incêndios por conta da instabilidade elétrica. Outro apagão total ocorreu duas semanas depois, no dia 17, por um desligamento e interrupção, aparentemente em virtude do desligamento automático do transformador da subestação de Macapá e de uma das usinas.
Os dramas da população amapaense mostram o quanto se tornou essencial a energia elétrica na vida moderna. O curioso é que o Estado possui grande potencial de geração energética. Para se ter uma ideia, só considerando a principal fonte elétrica brasileira, a hidreletricidade, o estado possui três grandes usinas: Coaracy Nunes (298MW), Cachoeira Caldeirão (219 MW), Ferreira Gomes (100 MW), além de uma na divisa do Pará, Santo Antônio do Jirau (167 MW). Considerando que o primeiro blackout foi uma falha que causou uma redução de carga de 250 MW e o segundo de 183 MW, fica difícil entender o estado tão vulnerável.
Mais do que isso, lá passa a Linha do Equador e, portanto, o estado está em uma posição privilegiada para receber a principal fonte de energia do planeta: o Sol. Sem a irradiação solar, por exemplo não teríamos a própria energia hidrelétrica (resultado da evaporação da água e precipitação em áreas mais altas); a energia eólica (depende do calor gerado pela ação da irradiação solar sobre os gases atmosféricos); a biomassa (lenha e carvão vegetal – resultado da fotossíntese que aproveita a energia solar para gerar matéria orgânica); e até a própria força animal (a nossa energia) advinda da cadeia alimentar originada na fotossíntese. Mesmo as fontes fósseis decorrem da fotossíntese de outras eras. Ou seja, excetuando a energia nuclear, o que conhecemos por energia tem origem no Sol.
Como, então, essa região com grande potencial hidrelétrico, solar e de biomassa, pode ter falta de energia? Uns culpam a privatização, outros lembram da agência reguladora, outros o governo. Independentemente da responsabilização do incidente, o fato é que tal crise evidencia uma grande deficiência do modelo elétrico nacional, em que um estado inteiro depende do funcionamento de uma única subestação e seus transformadores. Apesar do gargalo imprudente, deve-se considerar que tal modelo ainda é a realidade mundial, mas que está se transformando rapidamente.
Quando a eletricidade mostrou o seu potencial (já tinha sido descoberta no início do século XVIII), com a descoberta da lâmpada elétrica, no fim do século XIX, existiam dois modelos de desenvolvimento da cadeia de eletricidade: uma que utilizava a corrente direta, defendida por Thomas Edison, o inventor da lâmpada elétrica; e outra que defendia a corrente alternada, defendida pelo cientista Nikolas Tesla e pelo empresário George Westinghouse.
A grande vantagem da corrente alternada era justamente a facilidade para a transmissão e distribuição com menores infraestruturas e custos. Tal modelo era adequado para grandes geradores e distribuidores separados por significativas distâncias. A corrente direta de Edison se viabilizava apenas em curtas distâncias entre a fonte geradora e os equipamentos dos consumidores. Como era então inviável ter fontes geradoras próximas dos centros consumidores para atender a demanda, ao longo do século XX, o modelo Tesla/Westinghouse, vingou e se tornou o paradigma do mercado elétrico mundial: centrais geradoras centralizadas, linhas de transmissão e de distribuição para o usuário final. Paradigma vigente até hoje. Essa realidade, entretanto, está se alterando.
A grande competitividade da energia solar, que é modular e não precisa de escala para ganhos de eficiência, passou a viabilizar o que hoje se chama de geração distribuída, ou seja, a geração bem próxima do consumo que pode reduzir significativamente a dependência da infraestrutura da rede. Tal modelo traz vantagens como a redução das emissões (inicialmente, a geração centralizada se desenvolveu a partir de usinas de carvão mineral), mas também para reduzir perdas e aumentar a resiliência, aspecto essencial não só para os amapaenses de hoje, mas para gente que sofreu os diversos “apagões” que se acumularam em todo País ao longo dos últimos anos.
Apesar disso, como mostra o caso do estado do extremo Norte brasileiro, no Brasil esse conceito ainda é considerado irrelevante. Pior, enfrenta obstruções. No fim do ano passado, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) alegando a necessidade de “modicidade” tarifária (já que as medidas causavam impacto na conta do consumidor comum), propôs a Resolução Normativa nº 482/2012, que revisava alguns benefícios para geração distribuída no País. Agora, vale perguntar para a Aneel qual o impacto dos custos de geradores e combustíveis, implantação (transporte e instalação) da subestação substituta, além das (justas) isenções para o consumidor amapaense no preço da energia elétrica.
Ou seja, a prioridade brasileira é cortar os custos de investimentos essenciais para a construção de um futuro mais resiliente. Mesmo no modelo vigente, a redundância necessária para abastecimento do Amapá deve ter sido questionada em nome do barateamento das tarifas. O resultado é que deixamos de financiar a atualização de modelos e tecnologias – que evitariam permanentemente desastres como esses – para sempre correr atrás (e pagamos caro por isso) para remediá-los. O certo é que, se estivéssemos mais avançados no modelo de geração distribuída, o ensolarado Amapá não teria ficado na escuridão.
*Marco Tsuyama Cardoso é especialista em Regulação, doutor em Energia pela Universidade de São Paulo com intercâmbio na Universidade de Lund (Suécia) e autor do livro Procurando o Petróleo Sueco: Onde a Suécia Colocou seu Lixo.