Chama a atenção como a introdução da tecnologia 5G é recebida na sociedade com uma tranquilidade ora silenciosa, ora festiva. Não é desejável congelar a dimensão digital da experiência humana, mas não se pode desenvolver e adotar novas tecnologias sem o devido questionamento de seu impacto emocional e sobre o tecido social – em especial neste momento de pandemia
Por Ricardo Barretto*
Acessar o mundo à nossa volta acontece primeiramente pelos sentidos do corpo. A partir das informações que chegam como imagem, som, toque, cheiro, gosto e tudo mais à flor da pele, impulsos elétricos emanam pelas células nervosas e geram ativações no cérebro e toda uma série de reações em diferentes tecidos, químicas e fluxos internos. Tudo isso, misturado às emoções, conhecimentos e memórias já armazenados no corpo a partir do que vivemos e pensamos.
Eis que essa mistura de estímulos novos a repertórios encarnados e aos arranjos cognitivos resultam nos jeitos de agir e reagir de cada um, nas ideias que formulamos, na interpretação do mundo. Daí, tudo que parece ter um caminho lógico a seguir dá lugar a um leque de possibilidades que muitas vezes causam estranhamento e incredulidade. A pandemia se tornou o experimento in vivo mais emblemático sobre a capacidade do ser humano de ignorar sinais e agir a partir de interpretações muito particulares dos fatos.
Mas nós mesmos que olhamos com assombro para as festas e aglomerações muitas vezes incorremos no mesmo mecanismo em outros aspectos da vida.
Por exemplo, chama a atenção como a introdução da tecnologia 5G é recebida na sociedade com uma tranquilidade ora silenciosa, ora festiva. Fora o debate sobre adotar ou não a infraestrutura chinesa, o 5G é noticiado como um caminho natural da história do desenvolvimento da sociedade contemporânea, com o aumento do desempenho de serviços baseados no digital e da velocidade da informação – como se não estivéssemos vivendo uma crise global de saúde mental e afrouxamento dos laços sociais fortemente associada à nossa relação com a tecnologia.
Não só pelo uso das redes virtuais que geram ansiedade a partir da comparação injusta entre a vida como ela é e a vida como se apresenta na tela. Mas também porque nossa expressão cognitiva está se alterando e tornando-se incompatível com os tempos da vida presencial.
Especialmente desafiadora é a perda da noção de processo. Um corpo acostumado a ter seus questionamentos e impulsos respondidos pela velocidade do digital fica cada vez menos apto a lidar com o tempo necessário para a construção de conhecimento, de laços sociais, de mudanças históricas, de maturação emocional, de reconfiguração das mentalidades. Passa a ser um sistema vivo que precisa sempre de respostas imediatas, que nem sempre dialogam com a complexidade da vida ou com a profundidade dos dilemas da sociedade. E se esse corpo teve deficiências de nutrição, afeto ou estímulo a aprendizagem, maior ainda sua dificuldade.
Prato cheio para quem oferece esse imediatismo de bandeja na política, no consumo, na amizade virtualizada. E gatilho para a falta de paciência e disponibilidade para o que demanda tempo de construção e observação das camadas além da superfície. Indicadores desse processo têm se multiplicado: a geração Z é apontada como a primeira a ter um QI inferior ao da geração anterior; a habilidade de leitura está em queda; a incapacidade de discernimento e ponderação multiplica as fake news; os casos de depressão como desdobramento da vida virtual crescem continuamente…
Surge então um dilema. De um lado não é possível nem desejável congelar a dimensão tecnológica digital da experiência humana, que faz parte da própria constituição do Homo sapiens technologicus, assim definido pelo filósofo Michel Puech. De outro, continuar a desenvolver e adotar novas tecnologias sem o devido questionamento de seu impacto emocional e sobre o tecido social é algo tão inadmissível quanto aumentar emissões de carbono em um mundo de emergência climática.
De certo modo, pandemia, mudança climática e perturbação digital são crises de intensidades parecidas – afetam a humanidade em uma escala global a partir da desconexão entre os desejos humanos e sua condição de pertencimento a um sistema vivo maior – ainda que em durações e especificidades diferentes. E todas elas apresentam um grau de ameaça e complexidade de solução que geram exasperação só de se imaginar a magnitude dos problemas.
Mas, para além dos devaneios segregacionistas de escapar para outros planetas, enfrentar esses desafios é algo que demanda lidar não só com aspectos técnicos, mas com os elementos mais humanos da equação. O sentido de pertencimento, a capacidade de aprender e transformar, a habilidade de estabelecer laços emocionais, a potência de criação, a virtude de associar destinos individuais ao coletivo. Todos esses elementos que há séculos são negligenciados pelos modelos educacionais e pelas dinâmicas do sistema econômico.
Nenhuma das grandes crises que nos assombram tem origem meramente técnica ou funcional, assim como suas soluções também não passam apenas por políticas e engenharias.
É preciso assimilar que vivemos uma perda da potência humana. A razão formal não resolve nem compensa as mazelas do sensível esgarçado. Da vida em família, à educação, ao cotidiano do trabalho, ao funcionamento da economia é preciso encontrar como a existência humana mantém viva a chama do que lhe dá sentido de preenchimento e coletividade. É preciso redescobrir e estimular a escuta, o ceder, o respiro, a pausa, a contemplação, o toque, o afeto, a troca, a partilha. Essas trivialidades que parecem banais frente ao vigor da economia, da política, da ciência. Mas que são capazes de semear o impulso de preservação mútua que as grandes esferas do conhecimento parecem ter deixado de lado.
*Ricardo Barretto é comunicólogo e educador somático. Pesquisa relações entre o corpo vivo, fluxos comunicativos e o ambiente. Diretor do ConeCsoma (www.conecsoma.com.br)
[Foto: Uriel Soberanes/ Unsplash]