Um consumo fortemente restrito durante a pandemia sugere duas possíveis respostas dos indivíduos: abraçar um comportamento vingativo que procura compensar os sentimentos e experiências reprimidos ou, ao contrário, valorizar a vida mais frugal, autossuficiente e menos materialista herdada do lockdown. A partir disso, livro traça quatro perfis que emergem da pandemia
A pandemia redefiniu nossos hábitos de trabalho, lazer e estudo, mudou radicalmente nossas noções de bem-estar, saúde e lar, e alterou a quantidade e objetivos de consumo, sociabilidade e tempo livre. Até que ponto e de que maneira essas mudanças repercutem nas perspectivas de um futuro mais sustentável?
Essas são as principais perguntas que norteiam o livro Sustainable Lifestyles after Covid, a ser lançado em 23 de abril pela Editora Routledge do grupo Taylor&Francis. Em suas 152 páginas, o trabalho escrito em conjunto por quatro experts em temas de consumo sustentável examina as tendências de longo prazo disparadas pelas políticas de combate ao Covid-19.
O otimismo inicial atrelado à queda das emissões, renascimento da vida selvagem, redução do consumo supérfluo e desaceleração da vida profissional em benefício de uma maior convivência familiar foi rapidamente contrabalanceado pelo alerta de uma fenomenal aceleração da pobreza, desigualdade econômica e de gênero, como também dos transtornos de comportamento.
Qual balanço em termos de estilos de vida sustentáveis podemos contabilizar um ano e meio após a descoberta do vírus? Voltaremos ao velho normal ou se abrirá passo um novo formato de trabalhar, estudar, se divertir, socializar, se mobilizar, viver nossos lares, usar o tempo livre e consumir?
Um dos pontos chaves do livro é a abordagem dessa tensão entre o retorno a uma habitualidade pré-Covid versus o surgimento de um “novo normal”, para o qual se apresentam quatro cenários ou modos de viver o futuro. Na medida em que o consumo e a sociabilidade foram as dimensões que mais mudaram radicalmente em volume, formato e até mesmo em seus objetivos, elas constituem a base para gerar cenários.
Um consumo fortemente restrito como ocorreu durante a pandemia sugere duas possíveis respostas dos indivíduos em um futuro pós-Covid: abraçar um comportamento vingativo que procura compensar os sentimentos e experiências reprimidos de consumo e a postergação da gratificação vivida ou, ao contrário, valorizar a vida mais frugal, autossuficiente e menos materialista herdada do lockdown. Privilégio daqueles que não perderam renda com a pandemia, a primeira reação é o retorno ao consumo conspícuo e à acumulação de bens – o “velho normal”.
As relações sociais também têm sido dramaticamente atravessadas pela escassez, tornando-se assim mais valiosas e desejáveis. Duas respostas são possíveis: a imersão do indivíduo em encontros sociais presenciais, buscando reverter a experiência de privação afetiva e pertencimento social sofrida durante as restrições ou, inversamente, a adoção da conexão remota, em que os benefícios de privacidade, segurança e conforto superam o custo da solidão. Essa adoção revela uma internalização da virtualidade. Seguir uma ou outra situação dependerá menos da classe social e mais do perfil geracional. Ao combinar essas quatro respostas possíveis, surgem os quatro cenários.
Velha normalidade
Aqueles que reagem com consumo vingativo e imersão social representam a “velha normalidade”. Eles serão regidos por incentivos materiais em suas relações com os outros, valorizando status e conveniência, associando bem-estar com o consumo de ostentação. Nesse cenário, o trabalho e a educação ocorrem em moldes convencionais, o lazer e a sociabilidade dependem de formatos comerciais (shopping centers, parques temáticos, resorts e espaços de consumo) e as condutas individuais de mobilidade, uso de recursos e consumo exibem uma pegada ambiental alta.
Materialistas virtuais
No entrecruzamento de consumo vingativo e virtualidade internalizada surge o cenário povoado pelos “materialistas virtuais”. Esse perfil reúne quem se tornou consumidor ávido de notícias e internet e ao mesmo tempo é altamente dependente das compras online e o delivery. Nesse cenário, a noção de bem-estar está desvinculada das práticas de saúde física e alimentar, enquanto se minimiza a mobilidade para trabalhar, aprender ou se divertir fora de casa. A conexão permanente antecipa um escasso equilíbrio entre vida familiar e profissional e uma forte adesão à modalidades de controle social, monitoramento tecnológico e supressão de direitos e liberdades em nome de outras prioridades como combater epidemias.
Simplificadores gregários
O terceiro cenário captura a superposição entre respostas de imersão social no âmbito da sociabilidade, e de frugalidade pós-material no âmbito do consumo. Chamamos esse cenário de “simplificadores gregários”. Eles tendem a rejeitar o teletrabalho e a educação online, enquanto vinculam o entretenimento e bem-estar ao contato com a natureza, a vida familiar e às formas off-line de interação e integração social. Rejeita-se a busca do status material em prol da auto-realização intelectual, sensorial ou social, sendo um dos gatilhos a participação em iniciativas voluntárias, solidárias e favorecedoras do comércio e interesses locais. É o cenário mais favorável à sustentação de mecanismos de consumo colaborativo e economia circular, no qual minimizar a pegada ambiental é um objetivo.
Rebeldes online
O último cenário é composto pelos “rebeldes online”, que assimilaram a vida social mediada por computadores ou aplicativos, mas a partir de uma postura frugal em seu papel de consumidores. Politicamente ativos nas redes, eles entendem a esfera online em termos de resistência e cooperação entre pares. A diversão, a educação e o trabalho ocorrem remotamente via internet favorecendo algumas velhas bandeiras sustentáveis como a renda básica universal, o encurtamento da semana de trabalho, o compartilhamento de bens e a ênfase na reputação por cima do status material e a desmaterialização das práticas de reprodução social.
Estes quatro cenários exemplificam os diferentes perfis que emergem com a pandemia. Cada um responde de modo diferente à pergunta sobre os efeitos do Covid-19 para moldar um futuro de estilos de vida sustentáveis no longo prazo. Na sua interação com os estímulos dos governos, compromissos corporativos, ativismo da sociedade civil organizada e as barreiras e oportunidades do contexto que o jogo poderá se definir rumo à sustentabilidade ou rumo ao velho passado de erros ambientais e desequilíbrios sociais que originaram a própria pandemia.
*Fabián Echegaray é diretor da Market Analysis, instituto de pesquisas especializado em sustentabilidade e estilos de vida. É doutor em Ciência Política pela University of Connecticut, codiretor do capítulo brasileiro da Sustainable Consumption Research Action and Initiative e vice-presidente do capítulo latinoamericano da World Association for Public Opinion Research.
[Foto: Abbey Road Crossing (Social Distancing Edition). Remix of the work by Photographer Iain Macmillan/ @visuals/ Unsplash]
Serviço:
Sustainable Lifestyles after Covid, 2021, por Echegaray, F., Brachya, V., Vergragt, P., Zhang, L., Routledge Focus – 152 páginas
Disponível nas versões digital e impressa, em inglês
Onde encontrar: Routledge (Taylor&Francis), Amazon, Barnes&Noble, WHSmith e outras plataformas de venda de livros