Estar junto de corpo presente é lembrar que somos um povo para além dos mapas e infográficos sobre a pandemia na TV. É ser atravessado por um desejo de mobilizar a reapropriação e a reconstrução coletiva de um país, desde sua política e seu tecido social até os símbolos constrangidos, como a bandeira nacional
Início da tarde de sábado, 29 de maio. Uma chuva forte e rápida cai de repente em São Paulo, com gotas grossas, ventania e muita agitação das copas de árvores. Em menos de meia hora, o ar seco da estiagem na cidade se tornou úmido e respirável e as ruas foram ganhando o brilho dos raios de sol que surgiram em seguida. Como se o ambiente fizesse um convite para sair de casa. Havia um encontro marcado, mas uma dúvida sobre sua pertinência. Não só em São Paulo, mas por todo o País, um chamado iniciado por movimentos sociais e partidos políticos conclamava as pessoas a ocuparem o espaço público e mostrarem a indignação coletiva contra os descaminhos do governo que multiplicaram as mortes na pandemia da Covid-19, que retardaram o processo de vacinação no País, que aprofundaram as dificuldades econômicas do período e que intensificaram a atmosfera de ecocídio deflagrada há mais de dois anos no Brasil.
A dúvida que pairava no ar era se a indignação justificada poderia gerar uma ampliação do contágio – um dos elementos contra o qual o evento foi organizado – uma vez que as ruas fossem tomadas por uma aglomeração de corpos em protesto.
Essa pergunta silenciosa na mente de cada pessoa, se revelava na paisagem vista de cima. No ponto de encontro em frente ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), uma referência de cultura e ajuntamentos populares na cidade, havia um adensamento dos participantes e da cor vermelha.
Para além daquele miolo, o que se via era um espalhamento da manifestação, com agrupamentos entre conhecidos e espaço de circulação e respiro conectando essa coletividade que ia chegando aos poucos e continuamente, tateando e encontrando seu lugar. E todos, todos, de máscara, muitas pessoas com camada dupla, feita com o equipamento distribuído gratuitamente no evento.
Separados para combater o vírus, juntos para combater o verme. Essa frase em um dos cartazes dava o tom da manifestação, que tinha um propósito político, um sentimento de basta e um espírito de cuidado mútuo.
Para quem vinha de um regime de distanciamento social há cerca de 15 meses, a sensação de circular de novo na rua, junto de milhares de pessoas, causava num primeiro momento um certo frio na barriga. Um impulso de atenção e reconhecimento de como os outros corpos se apresentavam e se comportavam. Conforme a atmosfera de cuidado partilhado se revelava, as emoções começavam a aflorar.
Estar junto de corpo presente é lembrar que somos um povo para além dos mapas e infográficos sobre a pandemia na TV. É ser atravessado por um desejo de mobilizar a reapropriação e a reconstrução coletiva de um país, desde sua política e seu tecido social até os símbolos constrangidos, como a bandeira nacional. É deixar-se contagiar pelos gritos, as palmas, os batuques, as palavras de ordem, os cantos de contestação. É reencontrar uma potência de humanidade depauperada ao longo de meses, no intuito claro de que ela parecesse tão à míngua que não tivesse mais força de levantar, nem para um último suspiro.
O sábado, 29 de maio de 2021, foi histórico. Foi um reencontro com uma coragem necessária e uma brasilidade vital, que vai muito além do verde e amarelo. Quem estava ali sabia que estava de fato representando quem não pôde ir ou teve receio de se reunir. Ao contrário das Jornadas de 2013, marcadas por pautas difusas, havia no encontro um sentido de bem comum, nos modos de estar presente e no foco que norteava a multidão.
A partir do eixo central que pedia vacinação, fim do genocídio e um basta no governo, despontavam aqui e ali ramificações complementares, como atenção à saúde e educação, a reversão das políticas contra a vida em todas as suas formas, o respeito ativo aos grupos mais vulneráveis à pandemia.
Uma expiração forte do presente doído e uma inspiração profunda e cheia de esperança e vigor em direção ao porvir. Esta sincronia não poderia emergir de uma massa. O que pulsava ali era uma congregação em nome de resgatar o que se quer em termos de vida e de país. Um novo impulso para um novo capítulo. Continua…
*Ricardo Barretto é comunicólogo e educador. Pesquisa relações entre o corpo vivo, fluxos comunicativos e o ambiente. Diretor do ConeCsoma (www.ocorpoconecta.eco.br).