O alcance dos objetivos até 2030 tem sido questionado e as principais preocupações dizem respeito às interdependências e interconexões entre os ODS. Muitas vezes o progresso em um dos 17 objetivos pode “ferir” a evolução de um dos outros 16
A Organização das Nações Unidas lançou em 2015 a Agenda para o Desenvolvimento Sustentável 2030, tendo como principais componentes 17 objetivos que se configuram como uma chamada de emergência para todos os países – desenvolvidos ou não, em uma parceria global. De lá pra cá, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) popularizaram-se e os famosos quadrinhos coloridos que compõem a identidade visual da iniciativa foram incorporados às rotinas dos profissionais de sustentabilidade.
A efetividade quanto ao alcance dos objetivos até 2030 vem sendo questionada por acadêmicos e cientistas, e as principais preocupações dizem respeito aos desafios impostos pelas interdependências e interconexões dos ODS. Em outras palavras, muitas vezes o progresso em um dos 17 objetivos pode “ferir” a evolução de um dos outros 16. Assim, evidências começam a surgir sobre quais objetivos têm maior sinergia e quais apresentam maior trade-off. A ideia é que cada país e organização tenha um entendimento mais profundo sobre os impactos dessas interdependências e interconexões, para que sejam evitados ou mitigados. Ainda assim, esse entendimento robusto e detalhado continua inexistente.
Acadêmicos vêm denominando essa dificuldade como o “desafio da integração e das interdependências dos ODS”. Por um lado, a popularização dos ODS ajuda no engajamento e na mobilização de mais pessoas, para se familiarizarem e conscientizarem sobre o assunto.
Mas, ao mesmo tempo, a agenda dos ODS é muito ampla e complexa. É necessário que esse engajamento seja seguido por um conhecimento profundo e dedicado sobre as metas e os indicadores por trás de cada objetivo. Caso contrário, a conexão “rasa” entre iniciativas e os ODS pode se dar quase de forma automática, correndo o risco do que foi definido pelo acadêmico Wayne Visser, da Universidade de Cambridge, como rainbow washing, em clara associação entre greenwashing e socialwashing e os quadrados coloridos que popularizaram os ODS.
Ir além dos tópicos que compõem os 17 ODS significa também entender o componente de localização, ou o contexto em que cada objetivo será avaliado. As realidades são contexto-dependentes e devem ser encaradas dessa forma. A ONU, inclusive, incentiva a territorialização, de modo que as organizações sejam livres para focar nos objetivos que elas julgam mais relevantes aos seus contextos locais.
Para monitorar e acompanhar o progresso da União Europeia em alcançar os ODS, por exemplo, o SDG Watch Europe trabalha em quatro frentes interligadas a fim de garantir a coerência em todas elas: advocacy integrada e coordenação de políticas, monitoramento, transparência e verificação, engajamento com organizações da sociedade civil e cidadãos, reflexões e inovação.
Desde 2017, a organização percebeu a necessidade de entender como a sociedade civil de cada país se organiza com relação aos ODS. Para isso, há um apoio para que organizações nacionais se juntem e colaborem de forma mais efetiva nos processos de monitoramento sobre a efetividade da implementação dos ODS. Assim, essas organizações atuam fortemente em informar públicos mais amplos sobre os desafios e oportunidades tangentes ao desenvolvimento sustentável.
O Relatório de Desenvolvimento Sustentável da Europa, publicado em dezembro do ano passado pelo Sustainable Development Solutions Network (SDSN) e o Institute for European Environmental Policy (IEEP) mostra o progresso da União Europeia e seus países membros com relação aos ODS. O documento afirma que a região deve fazer de 2021 um “super ano” para alcançar as metas de desenvolvimento sustentável, já que a pandemia de Covid-19 é vista como uma ameaça para a viabilidade dos ODS.
O relatório chama a um compromisso político comum entre as instituições de governança da UE e ressalta que a Europa precisa aprender com a pandemia sobre reforçar a preparação, prevenção e resiliência dos sistemas de saúde para atingir o objetivo de saúde e bem-estar (ODS3). Isso está diretamente ligado com a necessidade de preparar a Europa para outras ameaças de saúde pública e ambientais, tais como riscos climáticos.
O documento continua dizendo que, com relação as respostas à pandemia nos países da região pacifico-asiática, a Europa foi bem menos efetiva em controlar e abafar a pandemia, o que teve como consequência medidas de confinamento que impactaram muitas atividades econômicas. A Noruega e Finlândia foram os países que mais bem gerenciaram as medidas para mitigar impactos na saúde e economia, enquanto Bélgica, Espanha e Reino Unido foram alvos de impactos mais severos nos mesmos aspectos. Países que optaram por uma retórica mais liberal na gestão da pandemia, como Suécia e Estados Unidos, não só não tiveram um desempenho econômico favorável, mas também estão entre os que tiveram as taxas de mortalidade mais altas até agora.
Nas organizações, o walk the talk como desafio
No setor privado, a pressão por contribuir para o alcance dos ODS poderia ser maior do que o desejo de ser parte do processo e colher frutos na reputação, no branding, na conquista de corações e mentes dos consumidores. Os setores que apresentam maior demanda por recursos naturais em seus processos produtivos, no geral, mostram-se mais atentos aos desafios propostos pelos ODS – no discurso e em boa parte das práticas. Não é para menos: a sobrevivência de muitos negócios está seriamente ameaçada se os ODS não se realizarem.
Mas, 2030 é amanhã e o planeta clama por mais cuidado. Já se passaram seis anos desde a implantação dos ODS, restando apenas nove pela frente. Antes que a ampulheta mostre todo o tempo esgotado, há muito por fazer. Para desafios tão complexos de se resolver, parece ser mesmo uma corrida contra o tempo contando com muita força contrária. A primeira delas, o atraso na resposta à formação de lideranças empresariais aptas a contribuir no processo – o que, aliás, desde sempre é um desafio para as equipes de sustentabilidade.
Os profissionais que lideram as atividades centrais nas organizações, ao enfrentar as pressões de produção e custos, muito facilmente abandonam as perspectivas ambientais e sociais por entendê-las como entraves produtivos. Uma miopia forjada por anos e anos de aprendizado em família, na escola, na universidade, no exemplo de outras lideranças setoriais. Quando novas gerações ocuparem a liderança destas organizações, é provável que já tenhamos mudado a pauta, com problemas bem mais complexos pelo efeito cumulativo de anos no modo slow motion.
E os desafios não param de chegar por meio de crises globais ou locais que pressionam metas e forçam à tomada de decisão muitas vezes incoerente com a proposta dos ODS. A pandemia do novo coronavírus é mais uma vez um bom ponto de análise. No seu período inicial, a sensibilização social por compreender a interdependência entre tudo e todos era aspecto central.
No Brasil, os investimentos sociais saltaram para números nunca experimentados. Pouco tempo depois, o círculo vicioso da desaceleração econômica que provoca desemprego que acentua o impacto na economia empurrou organizações e governos a definir acordos, flexibilizar medidas sanitárias, abrir as portas da economia, tirar as pessoas de casa para trabalhar e ter seu prato de comida, acelerando índices de contaminação e morte. Além disso, engajar a base na mudança de hábitos, na revisão de posturas em benefício da coletividade, tanto na pandemia quanto na realidade das organizações que se propõem a vivenciar os ODS, é outro ponto de estrangulamento no processo.
A pandemia mostra-se, portanto, como um bom treino global para a vivência prática do que representa o necessário equilíbrio entre os ODS, envolvendo todos os atores sociais. Está posto o chamamento para abandonarmos a ilusão de que os ODS podem ser mera peça de marketing institucional. Está claro que, situadas entre as duas pontas (Primeiro e Terceiro setores), cabe às empresas calibrar a força do mercado, gerenciar riscos e conservar recursos, abrindo oportunidades sociais, sem abandonar seu papel – hoje ainda ilusório, de trabalhar com o consumidor por escolhas mais sustentáveis e condizentes com o tamanho dos desafios presentes.
Agenda 2030 nas universidades: oportunidade para praticar o que se prega
O envolvimento das universidades com o desenvolvimento sustentável não é algo novo. Desde a década de 1990, pautas de educação para sustentabilidade e campus sustentável são disseminadas como forma de aumentar a consciência da relevância do tema por um lado e, de outro, levantar iniciativas e políticas para melhor gestão de resíduos e bem-estar no campus. O que vem mudando de forma consistente, é o investimento das universidades no tema, principalmente no que diz respeito a pessoal exclusivamente dedicado, comitês, iniciativas e projetos específicos, e esforços de alinhamento com padrões e certificações nacionais ou globais.
Conversei com Renzo Mori Junior, advisor sênior em questões de desenvolvimento sustentável na Royal Melbourne Institute of Technology(RMIT), Austrália. A universidade, que investe em sustentabilidade e políticas ambientais há mais de 30 anos, recentemente vem adotando uma postura estruturada e alinhada com os ODS. Esse ano foi agraciada como a terceira melhor instituição de ensino no mundo em termos de impactos sociais, ambientais e econômicos pelo Times Higher Education University Impact Rankings.
Renzo reporta para o Comitê de Sustentabilidade do RMIT o andamento de seu principal objetivo como advisor: implementar os ODS na universidade inteira. São quatro áreas-chave que englobam esse objetivo: pesquisa, currículo de cursos oferecidos, governança e liderança. “A área de pesquisa engloba todo o tipo de estudo feito na universidade que pode ser alinhado aos ODS, desde gênero a impactos ambientais. Além disso, também as colaborações que temos com universidades em países em desenvolvimento se encaixam nessa área“, explica Renzo.
Os currículos de cursos oferecidos que têm alinhamento com ODS são considerados focados em educação para sustentabilidade e há um esforço para que mais ofertas sejam feitas. A área de governança checa se a universidade está mesmo fazendo o que prega (walk the talk). Fazem parte dessa área times de sustentabilidade, gerenciamento de resíduos, neutralidade de carbono, energia renovável, e equipes da área social, como bem-estar, equidade de gênero, diversidade e inclusão para empregados e estudantes. A área de liderança trata de entender a forma com que o RMIT vem motivando seus stakeholders a serem mais sustentáveis e promovendo transformações na sua área de influência.
Renzo explica que a ideia de usar os ODS na universidade é tê-los como uma ferramenta de apoio para sustentabilidade, por serem uma agenda global com credibilidade. O RMIT assinou um compromisso público e se tornou signatário dos ODS. Atualmente se encontra no nível dois de engajamento com os Objetivos. “O primeiro nível de engajamento consiste em conectar com os ODS as atividades que já existem. É um mapeamento que maximiza impactos positivos e minimiza impactos negativos. Tenho orgulho de dizer que nós agora estamos no nível dois, onde verificamos como podemos usar os ODS para irmos além do business as usual. Assim, explica, a Universidade está “desenvolvendo ferramentas internas de avaliação de impacto e transformação, tendo como base princípios dos ODS, como a circularidade e a ideia de que ninguém pode ser deixado para trás”, completa.
*Mariana Galvão Lyra é pesquisadora Escola de Negócios da Universidade de Tecnologia de Lappeenranta (LBM)
**Liliane Lana é diretora da Bridge Comunicação
[Foto: Clark Van Der Beken/ Unsplash]