Neste dia em que o rompimento da Barragem de Fundão completa seis anos, uma paisagem do Rio Doce se manifesta
No dia em que nasci, eu já era, porque sempre existi, mas nasci de novo. Nasci no dia 5 de novembro de 2015, sou hoje o que se prevê para o amanhã. Sou o que será de mim, o que farão de mim, o que permitirei que façam, o que absorverei e o que conseguirei manter com meus próprios rios, árvores e solos, com minhas próprias pessoas.
Sou dinâmica, atemporal, permeável, perceptível. Sou cenário, pano de fundo, entrada e saída. Não sou uma imagem em um quadro, sou um quadro de vida em uma imagem, sou fruto da organização socioespacial e do sentido que quiseram e querem dar a um território.
Através de idas e vindas no território, a partir do olhar local, possibilito o entendimento de falas que relatam uma intimidade, um pertencimento, uma cultura, a história desse espaço. Falas sobre o que se sente, o que se deseja, o que contribuiu para a construção de um espaço e posteriormente para a significação desse espaço em território, e para o florescer de um desejo de transformá-lo em mim.
Prazer, sou uma paisagem do Rio Doce.
Em comum com todas as tentativas de me decifrar está a questão da herança. Geração após geração, os espaços são construídos/reconstruídos em uma sincronia (a)temporal que deixa/retira algo no/do território e, consequentemente, de mim. Sou composta por várias camadas de tempos e sentimentos, sou como um palimpsesto, onde vários momentos da história estão registrados, visíveis ou não mais (na memória).
Há quem diga que existo a partir do momento em que um território não está mais visível. Da nostalgia de um território surge o desejo. A paisagem antes de mim, que ainda está aqui, parte em mim, parte em você que me enxerga, foi atravessada por um forte impacto que rompeu modos de vida, cultura, uma sociedade. A saudade desse território que hoje já não existe mais, é a hora do meu nascimento, é a gênese de uma paisagem do rio Doce – eu.
De todas as categorias que as ciências já inventaram, sou uma das poucas, senão a única, capaz de abarcar em um lance de vista o território como um todo, com todas suas potencialidades e fraquezas, desafios e fragilidades, não sirvo para ser contemplada, ou não somente para isso, nasci para ser entrada. Uma entrada social em questões que ultrapassam essa delimitação.
Sou a realidade do espaço percebido e deformado pelos sentidos, minha evolução se repousa inteiramente sobre as mãos das pessoas.
Sendo assim, me usem, me cuidem, entrem em mim, entrem a partir de mim nesse território que demanda atenção. Entrem e saiam sem forçar novamente uma brusca mudança de minhas camadas, entrem por mim, e saiam por vocês que fazem parte de mim, que dependem de mim, que me enxergam.
Belo Horizonte, 5 de novembro de 2021
Assinado: Uma paisagem do Rio Doce
*Fernanda Rennó é Doutora em Planejamento Territorial – Meio Ambiente e Paisagem, pela Université de Toulouse/UFMG. Atualmente consultora do Instituto Arapyaú, onde é responsável pelos eixos de Educação e Cultura da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia.