Conectar ciência e tecnologia, produção comunitária dos territórios e infraestrutura industrial demanda inteligência em novos modelos de governança para que bionegócios ganhem escala e prosperem na floresta. São crescentes as iniciativas de biohubs, clusters e outras formas de agrupamento do setor, analisadas por estudo inédito do Idesam como subsídio a políticas e investimentos na Amazônia, sob as luzes da COP 30 do clima em Belém.
Por Segio Adeodato*
OEm cenário de emergência climática, destravar a bioeconomia é chave na busca de modelos de desenvolvimento compatíveis com a floresta em pé – um potencial global de US$ 7,7 trilhões até 2030, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Na Amazônia, a agenda tem atraído políticas e investimentos, mas a complexidade do desafio impõe uma nova fronteira de governança: a interação em rede. Uma maior convergência e cooperação entre bionegócios comunitários, instituições tecnológicas e indústrias se evidencia como premissa estratégica para romper barreiras, compartilhar soluções, acessar mercados e acelerar o uso sustentável da biodiversidade, com protagonismo das populações locais.
A atual expansão de biohubs, parques tecnológicos e outros conceitos de agrupamentos na Amazônia reflete essa tendência, que começa a ser mapeada e estudada como forma de subsidiar programas de governo, prioridades de financiamento e ações de empresas. “Faltam elos mais fortes de conexão entre academia, demanda de mercado, políticas públicas e populações tradicionais, de modo a catalisar resultados e otimizar investimentos”, afirma Carlos Koury, diretor de inovação em bioeconomia do Idesam – ONG voltada ao desenvolvimento sustentável da Amazônia que concluiu estudo para maior entendimento dos modelos de interação já presentes nos territórios amazônicos.
Cenário favorável
Financiado pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS), o trabalho inédito analisa conceitos e apresenta referências que inspiram inovações para uma governança mais interativa da bioeconomia amazônica. O tema é bola da vez da agenda, no contexto de novas regulações e políticas públicas, como o Plano Nacional da Sociobioeconomia, em construção pelo governo federal com apoio de diversas organizações. A iniciativa, que colocará em prática as diretrizes da Estratégia Nacional de Bioeconomia, anunciada em junho do ano passado, se soma a políticas estaduais, como a do Pará, sob as luzes da COP 30 do clima que acontecerá em novembro, em Belém. A cúpula deverá colocar a Amazônia no centro do debate global sobre a mitigação das emissões de carbono e o financiamento para manter o planeta em níveis seguros.
“A coprodução da inovação na forma de hubs ou clusters de bionegócios, por exemplo, tem como característica a inclusão produtiva, com soluções mais sustentáveis, justas e eficazes”, explica Koury, também à frente do Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio). A iniciativa, desenvolvida pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) e coordenada pelo Idesam, repassa investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) que as empresas são obrigadas a realizar como contrapartida dos incentivos fiscais. Foram mobilizados até hoje mais de R$ 146 milhões, com 40 empresas investidoras e 76 projetos já finalizados ou em execução no Amazonas, Amapá, Roraima, Rondônia e Acre.
Na chamada Elos da Amazônia 2024, lançada pelo Idesam, o objetivo é reconhecer empreendedores indígenas que desenvolvem tecnologias inovadoras e disruptivas a partir da biodiversidade amazônica, fomentando negócios competitivos, economicamente viáveis, ambientalmente equilibrados e socialmente inclusivos. Já a Amaz, maior aceleradora de negócios de impacto do norte do País, reúne portifólio de 17 empreendimentos e conta com fundo de financiamento híbrido de R$ 25 milhões, em linha com a visão de promover conexões para o desenvolvimento da bioeconomia.
Interações valorizam a diversidade
“Somente ações colaborativas e bem orquestradas são capazes de superar os incontáveis desafios amazônicos. E mobilizar múltiplos atores do ecossistema da bioeconomia, entre eles os bionegócios comunitários, para além de suas fronteiras organizacionais, exige novas estruturas e modelos de cooperação”, observa Yurik Ostroski, coautor do estudo “Formatos de Coprodução de Inovação Baseada na Integração de Conhecimento na Sociobioeconomia Amazônica”, ao lado da consultora Maria Carolina Balro.
A diversidade está expressa no código genético da região, mas também deve se exprimir na mistura de arranjos na bioeconomia. “São necessárias linhas de financiamento que incentivem essa integração multi-atores dos diferentes setores, do chão da floresta até a conexão com o mercado, com maior autonomia, fazendo a estratégia se sustentar no longo prazo”, aponta Ostroski.
Subsistemas que se conectam na bioeconomia
De acordo com o estudo, para além dos biohubs e polos tecnológicos, há diversas modalidades e termos que se disseminam para compartilhamento de soluções e demandas. Após análise teórica dos vários conceitos de agrupamentos colaborativos, foram identificados 140 atores como suporte ao entendimento de como essas categorias estão inseridas no ecossistema da bioeconomia na Amazônia.
Na análise dos modelos de integração vigentes e seus diferentes níveis de conexão, o estudo classificou três grandes subsistemas no contexto da bioeconomia amazônica: além do que abrange os bionegócios comunitários, destacam-se o da ciência, tecnologia, inovação e empreendedorismo; e o das bioindústrias/mercado (link para o infográfico). A partir deles foram mapeados cases de referência, como o Território Médio-Juruá (AM), o Ecocentro (PA) e o Centro de Bionegócios da Amazônia (AM).
Em paralelo, foram identificados exemplos que transcendem os territórios isoladamente. São as chamadas “metaorganizações”, no modelo de redes de redes, com conexão entre setores e seus diferentes papeis. É o caso do Redário, que agrupa coletivos de coletores de sementes para restauração de ecossistemas; a rede Origens Brasil, voltada ao comércio justo; e o CocoaAction – iniciativa público-privada que conecta atores da cadeia do cacau, dos produtores às indústrias, visando fomentar a sustentabilidade.
Fora da Amazônia, o levantamento considerou duas iniciativas como benchmarking. No Canadá, a FP Innovations (FPI) desenvolve a iniciativa BioHub Concept como solução para um melhor aproveitamento de resíduos da produção de madeira na silvicultura, em região com alta incidência de incêndios florestais. Com apoio da Província da Columbia Britânica, o objetivo principal é ter um pátio centralizado, visando reduzir os custos de processamento da madeira, aumentar a eficiência e adicionar valor a todos os componentes da árvore, junto a uma menor emissão de carbono.
No Brasil, a iniciativa Araucária+ promove a conservação e a valorização econômica da Floresta com Araucárias por meio de novos negócios que unem produtores, indústria, varejo e sociedade e uma rede sustentável de consumo e produção. Apoiado pela Fundação Grupo Boticário e Certi, o modelo se baseia na plataforma Ecossistema de Inovação para a Criação de Valor Compartilhado, em que os atores da cadeia produtiva da floresta deixam de atuar de forma isolada, mas em sinergia. A cadeia de inovação abrange a interação entre pesquisa e desenvolvimento, investimentos, políticas públicas e soluções tecnológicas e negócios, com geração de novos produtos.
Conclusões dão suporte a novos estudos e planos de governo
O estudo do Idesam sobre os agrupamentos de bioeconomia na Amazônia contribui com o entendimento sobre as interações entre os seus segmentos, com potencial sinérgico na busca por soluções e novos bionegócios no cenário das realidades da região. Entre as conclusões, o trabalho destaca que há oportunidade para infraestruturas compartilhadas que promovem ganhos de eficiência, com viabilidade produtiva nos territórios, mas é necessária uma diversidade mínima dessas estruturas que dê conta da pluralidade dos portfólios comunitários.
A busca por equilíbrio nessas relações deve ser um mantra. Além disso, segundo a análise, a integração de atores no nível nacional, regional e local é essencial para atrair recursos e coproduzir soluções para alavancar a bioeconomia amazônica, valorizando a complementaridade – e não a sobreposição – de esforços.
O trabalho enfatiza que a maioria das colaborações mult-iatores que buscam gerar impacto coletivo obtém relativo sucesso de definição de objetivos, mas ocorre grande dificuldade de execução. Há assimetria de poder entre os diferentes atores em iniciativas de coprodução, questão que pode ser atenuada por mecanismos de transparência e gestão compartilhada.
Nas várias Amazônias e suas diversas cadeias produtivas com diferentes realidades conforme o território, não é possível replicar soluções prontas: tudo precisa ser customizado. Na produção industrial para negócios comunitários, diz o estudo, o compartilhamento de recursos enfrenta barreiras como alto custo de customização diante das especificidades de cada setor (alimentos, fármacos, cosméticos etc), junto a dificuldades na governança local e no alinhamento de interesses e relações de confiança.
É necessário somar novas tecnologias ao conhecimento tradicional. E os governos têm papel fundamental nas interações da bioeconomia, em especial no financiamento e fomento para infraestrutura básica, como energia, conectividade, transporte, educação e assistência técnica, por exemplo. O sucesso de uma governança para o setor como um todo depende da governança local, territorial, mais fortalecida para que as inovações aconteçam na prática.
Em recente análise, a ex-secretária executiva da Secretaria de Economia, Desenvolvimento, Inovação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Tatiana Schor, atualmente chefe da Unidade Amazônia do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), destaca que “dada a complexidade da bioeconomia e seus mercados imperfeitos, é mais adequado pensar em redes de conhecimento produtivo do que em cadeias produtivas propriamente ditas – e, dessa forma, entender o estado da arte das estruturas de mercado da bioeconomia e construir mecanismos colaborativos que a fortaleçam”.
Oportunidades de interação na Amazônia
Há grande potencial para avanços nas interações da bioeconomia, a contar pela infraestrutura envolvendo tanto o ambiente de bionegócios comunitários, como nos subsistemas bioindustrial e de CT&I, na Amazônia Legal.
No primeiro caso, mapeamento da Conexsus com objetivo de promover cadeias produtivas mais justas e sustentáveis identificou pelo menos 449 negócios comunitários na região.
No subsistema bioindustrial, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e o PNUD lançaram oMapeamento de Negócios da Bioeconomia na Amazônia, ponto de partida para a compreensão das potencialidades de novos empreendimentos industriais na região amazônica baseados na bioeconomia. O plano é contribuir para aproximar governo, academia e setor produtivo, transformando pesquisas científicas em geração de emprego e renda junto à preservação da maior floresta tropical do mundo.
No subsistema da C&TI, em ambiente de maior diálogo, a expectativa é de mudanças de patamar em políticas e investimentos públicos na Amazônia. “No ano passado houve uma retomada do debate, com anúncio de planos nacionais em várias agendas, e agora em 2025 será o momento da implementação”, prevê Henrique Pereira, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Em 2024, a instituição captou 2,5 vezes mais recursos extraorçamentários do que no ano anterior, cerca de R$ 100 milhões, no esteio da nova política de regionalização do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). A tendência é de expansão, com a criação do Centro Franco-Brasileiro de Biodiversidade da Amazônia e da Rede Amazônica de Biodiversidade – iniciativa que integra pela primeira vez os principais centros de pesquisa dos países amazônicos, via recursos do BID. O objetivo é desenvolver oito processos biotecnológicos e transferir para 400 agentes econômicos na região (empresas, cooperativas e governos locais), nos próximos dois anos.
“As crises [do clima e biodiversidade] precisam de respostas imediatas e o Brasil é um grande laboratório de práticas que inspiram soluções globais”, aponta Pereira. “Ao contrário do que muitos imaginam, a Amazônia brasileira não representa um vazio científico, e o fomento ao desenvolvimento tecnológico deve considerar a estrutura de instituições já existente na região”.
Há potencial para avanços nas conexões entre bionegócios e instituições de CT&I na Amazônia. Levantamento da Rede Rhisa, coordenado pelo pesquisador Pedro H. Mariosa, identifica na região 56 estruturas de incubadoras, aceleradoras, hubs e polos tecnológicos, com grande concentração no Amazonas (19) e Pará (12). Há, ainda, 405 estruturas relacionadas a CT&I, incluindo instituições de ensino superior, fundações de apoio, ambientes de inovação e outros espaços de desenvolvimento de pesquisas e tecnologia. “O problema é que estão isolados; falta integração para complementariedades e sinergias nos projetos”, reconhece Pereira.
De acordo com análise do Instituto Arapyaú e Agni, “enfrentar o desafio das mudanças climáticas na Amazônia sem considerar as estruturas, conhecimentos e iniciativas locais seria um erro. Nesse sentido, uma estratégia para o desenvolvimento de CT&I na região deve considerar o capital humano local, os saberes tradicionais e as aptidões existentes como elementos-chave na sustentação da bioeconomia amazônica.”
Bioeconomia: potencial de mercado e lacunas nas conexões
Relatório liderado pelo WRI Brasil revela que a bioeconomia já gera um PIB de R$ 12 bilhões na Amazônia. Com investimentos adicionais, será possível atingir pelo menos R$ 38,6 bilhões em 2050, gerando 833 mil novos empregos, que substituiriam ocupações hoje ligadas à destruição da floresta. “Há uma grande lacuna na relação entre indústrias e demais setores da bioeconomia, como a ciência e tecnologia, e essa interação pode ser tanto positiva quanto destrutiva”, aponta Danilo Fernandes, pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), coautor do estudo Nova Economia da Amazônia.
Segundo Fernandes, “falta melhorar as articulações e pensar em projetos estratégicos, desafio que tem os governos como divisor de águas, com a formulação de políticas públicas”. Na visão do pesquisador, o foco da bioeconomia deve estar na biodiversidade, e não apenas na mudança climática, tema mais associado à transição energética por meio de monoculturas agrícolas como fonte de baixo carbono. Na lógica industrial, há riscos de conflitos entre a grande escala de demanda e a conservação do bioma.O desafio está em promover pequenos negócios que conseguem aproveitar a diversidade da floresta. “A atual expansão dos sistemas agroflorestais na Amazônia reflete essa tendência”, completa o economista, ao destacar a oportunidade da COP 30 em Belém como vitrine dos produtos da sociobiodiversidade para mercados de consumo especiais de alto valor agregado e para a expansão do consumo na própria região amazônica.