A combinação de negócios rentáveis com transformação social tem gerado boas soluções, mas a parceria entre multinacionais e população de baixa renda ainda precisa mostrar a que veio
Como formador de opinião, David Beckham é um excelente atleta. A fama pela pouca habilidade intelectual do jogador levou o comediante inglês Steve Coogan a formular a seguinte piada: “Todos dizem: ‘Oh, Beckham não é muito inteligente’. Mas ninguém fala ‘Stephen Hawking: péssimo de futebol’”.
A revista The Economist aproveitou a tirada de Coogan para argumentar que as empresas são como o meio-campista do Los Angeles Galaxy. Moldadas e talentosas para uma coisa somente. No caso delas, os negócios.
Na coluna Schumpeter’s Notebook, a publicação sugere que os defensores da responsabilidade social corporativa frequentemente se esquecem desse ponto crucial e que as exigências socioambientais cada vez mais complexas podem sufocar negócios nos rincões do mundo, justamente onde são mais necessários.
A reação pode ser sintoma de uma verdadeira crise de identidade, já que empresas estão sendo cobradas para ser um pouco mais como as ONGs, da mesma forma que ONGs, no passado, foram chamadas a se espelhar nas empresas. Na igualmente prestigiada Harvard Business Review, Bill Drayton e Valeria Budinich apresentam perspectiva inversa à da revista The Economist.
“A colaboração entre corporações e CSOs (Citizen Sector Organizations) atingiu o ápice: está se tornando um procedimento operacional-padrão para empresas. De fato, nós acreditamos que, se você não está pensando nessa colaboração, então muito em breve será acusado de mau estrategista”, dizem os autores, ambos ligados à organização Ashoka, especializada em empreendedorismo social.
Drayton e Valeria recuperam a trajetória de aproximação entre esses dois universos, no artigo denominado A New Alliance For Global Change, de adversários históricos a encaixes de uma mesma equação. Desde a Revolução Industrial, os negócios introduziram inovação atrás de inovação, movidos pela competitividade e pelo foco em resultados concretos. Enquanto isso, as organizações sem fins lucrativos receberam pouco impulso para inovar, dependentes que estavam da tutela de governos e livres de críticas e pressões externas. Ficaram para trás em termos de desempenho, produtividade, empregabilidade e reputação.
A partir da década de 80, o abismo entre o setor social e o de negócios tornou-se tão intolerável que a balança começou a se equilibrar. Com um toque de organização empresarial, o terceiro setor passou a ser competitivo, atraiu talentos, deu origem a ONGs do tamanho de multinacionais e hoje cria empregos mais rapidamente que a iniciativa privada nos 33 países que integram a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Ambos os lados parecem capazes de gerar as soluções socioambientais necessárias para um mundo que se descobre interdependente. Para além da responsabilidade social, a proposta é misturar as duas forças ainda mais. A Ashoka chama isso de “cadeia híbrida de valor”, um dos muitos nomes abrigados sob o guarda-chuva do conceito de negócios sociais. Basicamente, trata-se de empreendimentos que geram lucro ao mesmo tempo em que atendem a uma necessidade social premente.
Numa ponta, a escala e o capital das corporações, combinados à expertise em gerenciamento de operações. Na outra, o conhecimento das organizações sociais sobre as realidades locais e sua capacidade de interlocução. Em maior ou menor escala, as tentativas de unir grandes corporações a ONGs e comunidades de baixa renda vêm colecionando sucessos e topadas e, como toda ideia de ruptura, muito estranhamento.
Olhar para a base
Se fosse possível resumir a visão do economista indiano C.K. Prahalad, seria algo como dizer que as demandas por equidade social e os interesses de mercado se alinharam no final do século XX como planetas em inusitada conjunção astral.
Na obra A Riqueza na Base da Pirâmide, Prahalad argumenta que o futuro do capitalismo não está na minoria rica acostumada a consumir, mas nos 4 bilhões de excluídos que ainda não tiveram as suas necessidades básicas atendidas. Enquanto no alto da escala social os mercados dão sinais de saturação, a base da pirâmide encerra um potencial inexplorado de US$ 5 trilhões. Individualmente pouco, coletivamente uma fortuna.
Ao desenvolver produtos e serviços para a população de baixa renda, seria possível também garantir acessos fundamentais, como à saúde e à alimentação, gerar empregos e aquecer economias locais. Mais do que isso, essa faixa da população global seria um verdadeiro laboratório para que inovações ganhem escala de baixo para cima, como explica Renato Kiyama, da ONG Artemísia, especializada em negócios sociais.
“Se você tentar vender uma placa solar de R$ 3 mil para uma pessoa de alta renda, ela possivelmente vai dizer que já tem essa necessidade (energia) atendida. Já uma pessoa que consome querosene e outras fontes ineficientes de energia quer comprar. Só precisa de mecanismos como microcrédito ou microconsignação.”
Uma placa fotovoltaica reduz os riscos à saúde de quem consome combustíveis fósseis e, depois de paga, elimina as despesas com eletricidade. De maneira quase subversiva, é possível inverter o sentido da inovação, que tradicionalmente começa no topo e escorre para a base quando os produtos já estão ultrapassados. Em tese, vender para pessoas que não têm quase nada abre caminho para desenvolver produtos e serviços inteiramente novos, de preferência associados ao baixo impacto ambiental.
Trata-se de um ensaio de resposta ao elefante verde na sala, ou seja, a impossibilidade de elevar os padrões de consumo da base da pirâmide ao patamar europeu ou americano, diante da escassez de recursos naturais. Estudo da Ashoka em parceria com a empresa de consultoria Hystra estima que há um mercado de US$ 553 bilhões para fontes alternativas de energia limpa entre os consumidores de baixa renda.
O exemplo mais famoso dessa combinação de benefícios envolve o ganhador do Nobel da Paz e pai do microcrédito, Muhammad Yunus. Apesar de ser um defensor do modelo de empresa social, em que a totalidade do lucro é reinvestida no próprio negócio, Yunus aceitou associar o seu Grameen Bank à multinacional Danone, para criar um iogurte barato e ultranutritivo.
O iogurte Grameen Danone é produzido em Bangladesh, onde quase 50% das crianças de zero a 5 anos sofrem de desnutrição. O negócio adaptou-se à realidade local com uma fábrica 100 vezes menor que a menor fábrica da Danone, onde também foi possível instalar biodigestores, energia solar e um sistema de reaproveitamento da água. Como a maioria da população vive em áreas rurais difíceis de serem mapeadas e atingidas, o negócio incorporou produtores e distribuidores locais.
Na Índia, o estabelecimento dos E Health Points também começa a levar serviços de saúde aos pontos mais remotos do país, por meio da telemedicina. Com consultas pela internet, as clínicas conseguem reduzir os custos ao mesmo tempo que evitam que a população tenha de viajar dias para encontrar um médico. As consultas custam US$ 1 e os exames, menos de US$ 4. O projeto é uma parceria entre a empresa Healthpoint Services India, o governo indiano e fundações locais.
Em ambos os casos, a estratégia que se impõe é conhecer o mercado profundamente, seja por pesquisas realizadas pelas próprias empresas, seja pela parceria com entidades do terceiro setor. É preciso contar com os recursos locais, materiais ou humanos.
No Base of The Pyramid Protocol (BoP), mapa do caminho para multinacionais elaborado por Prahalad e Stuart Hart, revela-se que, enquanto o topo da pirâmide tende a ser mais globalizado – não há grande diferença entre um adolescente de Cingapura e um de Nova York – a base costuma apresentar culturas e realidades muito específicas, inclusive em comunidades de um mesmo país ou da mesma cidade.
Essa percepção se alinha a outros conceitos, como o empathy-based design, que prega o desenvolvimento de produtos a partir das reais necessidades das pessoas, e a inovação reversa, que identifica soluções com potencial industrial desenvolvidas por indivíduos comuns nos lugares mais pobres do mundo, onde as agruras do cotidiano estimulam o engenho humano.
Controvérsias
No entanto, as primeiras experiências, no final dos anos 90 e começo dos anos 2000, limitaram-se a repaginar os mesmos produtos de sempre com embalagens mais acessíveis, os famigerados sachês. Falharam miseravelmente, tanto do ponto de vista social quanto do ponto de vista dos negócios.
“O Stuart Hart usa a analogia da criança com um martelo. Tudo vira prego. Ou seja, eu vejo um mercado disponível, vou até ele, sem me preocupar se as pessoas realmente precisam de xampu. Algumas populações viveram séculos sem xampu, por que precisariam disso agora? O perigo é o top-down”, afima Kiyama, da Artemísia.
Apesar das iniciativas pontuais de sucesso, ainda há muitas dúvidas sobre se o BoP é capaz de reduzir a pobreza em larga escala. A principal crítica refere-se à tese de inclusão apenas pelo consumo. Para José Carlos Barbieri, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas, o acirramento da competição global impôs a necessidade de entrar em mercados não convencionais. Por isso produtos, linguagem e justificativas são novos, mas a essência dos empreendimentos permaneceria a mesma.
“Isso é profundamente ideológico, porque uma empresa, por melhor que ela seja, não é distribuidora de renda. É concentradora. Cumprir função social é uma coisa, outra é resolver o problema da distribuição de renda e da equidade”, diz Barbieri.
Atentos às críticas, Stuart Hart e Erik Simanis – também professor de Cornell e diretor do Sustainable Global Enterprise – formularam uma versão 2.0 do BoP no final de 2008. A principal diferença é a proposta de cocriação, em que as pessoas da base da pirâmide participam de todas as etapas do empreendimento, da concepção à operação. Esse modelo reserva aos locais a autonomia para gerir o negócio e, às empresas, o papel de parceiras.
Mas, para atacar a desconfiança e aproximar ao máximo os diferentes, o BoP 2.0 propõe procedimentos bastante estranhos à cultura corporativa. Recomenda, por exemplo, que executivos morem e trabalhem com a base da pirâmide por um tempo e que não esperem resultados rápidos.
Para a jornalista e fundadora da rede social BoP Source, Jenara Nerenberg, essa abordagem descaracteriza as empresas, ao incorporar o que as organizações sociais têm de mais improdutivo. “Boa parte da ineficiência do mundo sem fins lucrativos se deve às pessoas para quem harmonia emocional e um tipo de cumbiah feelings são a coisa mais importante. Sem a abordagem mais racional de negócios, há problemas de gestão e disputas entre colegas. Seria uma pena que empresas com interesse no BoP se intimidassem com essa mudança tão drástica de prática corporativa”, escreveu Jenara em seu blog.
Em entrevista à Página22, por email, Erik Simanis diz que todo o arcabouço conceitual do BoP está passando por um momento de inflexão. “Muitas corporações se afastaram completamente da ideia e outras a estão perseguindo apenas como ações de responsabilidade, que eventualmente migram para a periferia da empresa. Por ora, os casos de sucesso são virtualmente inexistentes, com periódicas exceções.”
Segundo o professor, o conceito do BoP se transformou em uma estratégia de desenvolvimento baseada no mercado, e não em uma abordagem de negócios com impactos no desenvolvimento, a que se propunha originalmente. Assim, todo o espaço de atuação se volta novamente para as organizações sociais.
Simanis está em Gana trabalhando com mais uma multinacional em mais um projeto local, mas, desta vez, sem protocolos preconcebidos. Diz que está simplesmente aplicando aprendizados essenciais aos desafios específicos do novo negócio. Como diz Hannah Jones em entrevista nesta edição, o erro é um componente essencial da inovação. Ao que tudo indica, os mundos do lucro e do não lucro ainda devem atravessar muita desconstrução criativa até que se encontre a simbiose perfeita.[:en]A combinação de negócios rentáveis com transformação social tem gerado boas soluções, mas a parceria entre multinacionais e população de baixa renda ainda precisa mostrar a que veio
Como formador de opinião, David Beckham é um excelente atleta. A fama pela pouca habilidade intelectual do jogador levou o comediante inglês Steve Coogan a formular a seguinte piada: “Todos dizem: ‘Oh, Beckham não é muito inteligente’. Mas ninguém fala ‘Stephen Hawking: péssimo de futebol’”.
A revista The Economist aproveitou a tirada de Coogan para argumentar que as empresas são como o meio-campista do Los Angeles Galaxy. Moldadas e talentosas para uma coisa somente. No caso delas, os negócios.
Na coluna Schumpeter’s Notebook, a publicação sugere que os defensores da responsabilidade social corporativa frequentemente se esquecem desse ponto crucial e que as exigências socioambientais cada vez mais complexas podem sufocar negócios nos rincões do mundo, justamente onde são mais necessários.
A reação pode ser sintoma de uma verdadeira crise de identidade, já que empresas estão sendo cobradas para ser um pouco mais como as ONGs, da mesma forma que ONGs, no passado, foram chamadas a se espelhar nas empresas. Na igualmente prestigiada Harvard Business Review, Bill Drayton e Valeria Budinich apresentam perspectiva inversa à da revista The Economist.
“A colaboração entre corporações e CSOs (Citizen Sector Organizations) atingiu o ápice: está se tornando um procedimento operacional-padrão para empresas. De fato, nós acreditamos que, se você não está pensando nessa colaboração, então muito em breve será acusado de mau estrategista”, dizem os autores, ambos ligados à organização Ashoka, especializada em empreendedorismo social.
Drayton e Valeria recuperam a trajetória de aproximação entre esses dois universos, no artigo denominado A New Alliance For Global Change, de adversários históricos a encaixes de uma mesma equação. Desde a Revolução Industrial, os negócios introduziram inovação atrás de inovação, movidos pela competitividade e pelo foco em resultados concretos. Enquanto isso, as organizações sem fins lucrativos receberam pouco impulso para inovar, dependentes que estavam da tutela de governos e livres de críticas e pressões externas. Ficaram para trás em termos de desempenho, produtividade, empregabilidade e reputação.
A partir da década de 80, o abismo entre o setor social e o de negócios tornou-se tão intolerável que a balança começou a se equilibrar. Com um toque de organização empresarial, o terceiro setor passou a ser competitivo, atraiu talentos, deu origem a ONGs do tamanho de multinacionais e hoje cria empregos mais rapidamente que a iniciativa privada nos 33 países que integram a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Ambos os lados parecem capazes de gerar as soluções socioambientais necessárias para um mundo que se descobre interdependente. Para além da responsabilidade social, a proposta é misturar as duas forças ainda mais. A Ashoka chama isso de “cadeia híbrida de valor”, um dos muitos nomes abrigados sob o guarda-chuva do conceito de negócios sociais. Basicamente, trata-se de empreendimentos que geram lucro ao mesmo tempo em que atendem a uma necessidade social premente.
Numa ponta, a escala e o capital das corporações, combinados à expertise em gerenciamento de operações. Na outra, o conhecimento das organizações sociais sobre as realidades locais e sua capacidade de interlocução. Em maior ou menor escala, as tentativas de unir grandes corporações a ONGs e comunidades de baixa renda vêm colecionando sucessos e topadas e, como toda ideia de ruptura, muito estranhamento.
Olhar para a base
Se fosse possível resumir a visão do economista indiano C.K. Prahalad, seria algo como dizer que as demandas por equidade social e os interesses de mercado se alinharam no final do século XX como planetas em inusitada conjunção astral.
Na obra A Riqueza na Base da Pirâmide, Prahalad argumenta que o futuro do capitalismo não está na minoria rica acostumada a consumir, mas nos 4 bilhões de excluídos que ainda não tiveram as suas necessidades básicas atendidas. Enquanto no alto da escala social os mercados dão sinais de saturação, a base da pirâmide encerra um potencial inexplorado de US$ 5 trilhões. Individualmente pouco, coletivamente uma fortuna.
Ao desenvolver produtos e serviços para a população de baixa renda, seria possível também garantir acessos fundamentais, como à saúde e à alimentação, gerar empregos e aquecer economias locais. Mais do que isso, essa faixa da população global seria um verdadeiro laboratório para que inovações ganhem escala de baixo para cima, como explica Renato Kiyama, da ONG Artemísia, especializada em negócios sociais.
“Se você tentar vender uma placa solar de R$ 3 mil para uma pessoa de alta renda, ela possivelmente vai dizer que já tem essa necessidade (energia) atendida. Já uma pessoa que consome querosene e outras fontes ineficientes de energia quer comprar. Só precisa de mecanismos como microcrédito ou microconsignação.”
Uma placa fotovoltaica reduz os riscos à saúde de quem consome combustíveis fósseis e, depois de paga, elimina as despesas com eletricidade. De maneira quase subversiva, é possível inverter o sentido da inovação, que tradicionalmente começa no topo e escorre para a base quando os produtos já estão ultrapassados. Em tese, vender para pessoas que não têm quase nada abre caminho para desenvolver produtos e serviços inteiramente novos, de preferência associados ao baixo impacto ambiental.
Trata-se de um ensaio de resposta ao elefante verde na sala, ou seja, a impossibilidade de elevar os padrões de consumo da base da pirâmide ao patamar europeu ou americano, diante da escassez de recursos naturais. Estudo da Ashoka em parceria com a empresa de consultoria Hystra estima que há um mercado de US$ 553 bilhões para fontes alternativas de energia limpa entre os consumidores de baixa renda.
O exemplo mais famoso dessa combinação de benefícios envolve o ganhador do Nobel da Paz e pai do microcrédito, Muhammad Yunus. Apesar de ser um defensor do modelo de empresa social, em que a totalidade do lucro é reinvestida no próprio negócio, Yunus aceitou associar o seu Grameen Bank à multinacional Danone, para criar um iogurte barato e ultranutritivo.
O iogurte Grameen Danone é produzido em Bangladesh, onde quase 50% das crianças de zero a 5 anos sofrem de desnutrição. O negócio adaptou-se à realidade local com uma fábrica 100 vezes menor que a menor fábrica da Danone, onde também foi possível instalar biodigestores, energia solar e um sistema de reaproveitamento da água. Como a maioria da população vive em áreas rurais difíceis de serem mapeadas e atingidas, o negócio incorporou produtores e distribuidores locais.
Na Índia, o estabelecimento dos E Health Points também começa a levar serviços de saúde aos pontos mais remotos do país, por meio da telemedicina. Com consultas pela internet, as clínicas conseguem reduzir os custos ao mesmo tempo que evitam que a população tenha de viajar dias para encontrar um médico. As consultas custam US$ 1 e os exames, menos de US$ 4. O projeto é uma parceria entre a empresa Healthpoint Services India, o governo indiano e fundações locais.
Em ambos os casos, a estratégia que se impõe é conhecer o mercado profundamente, seja por pesquisas realizadas pelas próprias empresas, seja pela parceria com entidades do terceiro setor. É preciso contar com os recursos locais, materiais ou humanos.
No Base of The Pyramid Protocol (BoP), mapa do caminho para multinacionais elaborado por Prahalad e Stuart Hart, revela-se que, enquanto o topo da pirâmide tende a ser mais globalizado – não há grande diferença entre um adolescente de Cingapura e um de Nova York – a base costuma apresentar culturas e realidades muito específicas, inclusive em comunidades de um mesmo país ou da mesma cidade.
Essa percepção se alinha a outros conceitos, como o empathy-based design, que prega o desenvolvimento de produtos a partir das reais necessidades das pessoas, e a inovação reversa, que identifica soluções com potencial industrial desenvolvidas por indivíduos comuns nos lugares mais pobres do mundo, onde as agruras do cotidiano estimulam o engenho humano.
Controvérsias
No entanto, as primeiras experiências, no final dos anos 90 e começo dos anos 2000, limitaram-se a repaginar os mesmos produtos de sempre com embalagens mais acessíveis, os famigerados sachês. Falharam miseravelmente, tanto do ponto de vista social quanto do ponto de vista dos negócios.
“O Stuart Hart usa a analogia da criança com um martelo. Tudo vira prego. Ou seja, eu vejo um mercado disponível, vou até ele, sem me preocupar se as pessoas realmente precisam de xampu. Algumas populações viveram séculos sem xampu, por que precisariam disso agora? O perigo é o top-down”, afima Kiyama, da Artemísia.
Apesar das iniciativas pontuais de sucesso, ainda há muitas dúvidas sobre se o BoP é capaz de reduzir a pobreza em larga escala. A principal crítica refere-se à tese de inclusão apenas pelo consumo. Para José Carlos Barbieri, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas, o acirramento da competição global impôs a necessidade de entrar em mercados não convencionais. Por isso produtos, linguagem e justificativas são novos, mas a essência dos empreendimentos permaneceria a mesma.
“Isso é profundamente ideológico, porque uma empresa, por melhor que ela seja, não é distribuidora de renda. É concentradora. Cumprir função social é uma coisa, outra é resolver o problema da distribuição de renda e da equidade”, diz Barbieri.
Atentos às críticas, Stuart Hart e Erik Simanis – também professor de Cornell e diretor do Sustainable Global Enterprise – formularam uma versão 2.0 do BoP no final de 2008. A principal diferença é a proposta de cocriação, em que as pessoas da base da pirâmide participam de todas as etapas do empreendimento, da concepção à operação. Esse modelo reserva aos locais a autonomia para gerir o negócio e, às empresas, o papel de parceiras.
Mas, para atacar a desconfiança e aproximar ao máximo os diferentes, o BoP 2.0 propõe procedimentos bastante estranhos à cultura corporativa. Recomenda, por exemplo, que executivos morem e trabalhem com a base da pirâmide por um tempo e que não esperem resultados rápidos.
Para a jornalista e fundadora da rede social BoP Source, Jenara Nerenberg, essa abordagem descaracteriza as empresas, ao incorporar o que as organizações sociais têm de mais improdutivo. “Boa parte da ineficiência do mundo sem fins lucrativos se deve às pessoas para quem harmonia emocional e um tipo de cumbiah feelings são a coisa mais importante. Sem a abordagem mais racional de negócios, há problemas de gestão e disputas entre colegas. Seria uma pena que empresas com interesse no BoP se intimidassem com essa mudança tão drástica de prática corporativa”, escreveu Jenara em seu blog.
Em entrevista à Página22, por email, Erik Simanis diz que todo o arcabouço conceitual do BoP está passando por um momento de inflexão. “Muitas corporações se afastaram completamente da ideia e outras a estão perseguindo apenas como ações de responsabilidade, que eventualmente migram para a periferia da empresa. Por ora, os casos de sucesso são virtualmente inexistentes, com periódicas exceções.”
Segundo o professor, o conceito do BoP se transformou em uma estratégia de desenvolvimento baseada no mercado, e não em uma abordagem de negócios com impactos no desenvolvimento, a que se propunha originalmente. Assim, todo o espaço de atuação se volta novamente para as organizações sociais.
Simanis está em Gana trabalhando com mais uma multinacional em mais um projeto local, mas, desta vez, sem protocolos preconcebidos. Diz que está simplesmente aplicando aprendizados essenciais aos desafios específicos do novo negócio. Como diz Hannah Jones em entrevista nesta edição, o erro é um componente essencial da inovação. Ao que tudo indica, os mundos do lucro e do não lucro ainda devem atravessar muita desconstrução criativa até que se encontre a simbiose perfeita.