Clarice Lispector, Homem-Aranha e Galvão Bueno já pregavam: vamos assumir mais nossas responsabilidades
Outro dia vi o Homem-Aranha com meu filho. Me encantei com a história do menino que ganha poderes ao ser picado por uma aranha. Mas o tio dele, antes de morrer, alerta: “Grandes poderes trazem junto grandes responsabilidades”. O que me fez pensar que está cada vez mais difícil formar super-heróis.
Uma colega de trabalho levou um susto tempos atrás. Em sua primeira viagem a campo, em um lugar remoto do Brasil, começou a sentir dores nas pernas. Procurou o médico local, que especulou ser trombose. Mas ele não tinha equipamentos para confirmar o diagnóstico, e liberou a garota. Dois dias e muitas viagens de barco e avião depois, ela foi atendida e medicada. Mas a trombose poderia ter sido confirmada apenas pelo diagnóstico clínico – os sintomas e o histórico familiar eram ululantes. Se o médico a tivesse medicado e orientado ali mesmo, minha colega não teria corrido os riscos que correu, do alto de seus 23 anos.
Outra amiga foi ao ginecologista porque sentia um caroço no seio. O médico mal a olhou e imediatamente pediu exames. Lá foi ela, para os exames todos, por dias sendo perseguida pelo fantasma do câncer. Pois então resolveu ir em um tio médico, que olhou, apalpou o tal caroço, conversou com ela, olhou mais uma vez, grudou um bife em cima e voilà – o câncer saiu: era um berne, uma nojenta larva de mosca que cresce embaixo da nossa pele.
É cada vez mais raro encontrar médicos que apalpam a gente, conversam, especulam diagnósticos. Pra tudo é exigido um exame ou um equipamento que garantam que o que eles estão vendo é aquilo mesmo que estão vendo. Eles não querem mais arriscar. Não com os pacientes deles.
Essa aversão a riscos poderia ser “coisa de médico”, mas receio que não são só eles. A pediatra do meu filho contou que se sente acuada pelos pais, que se estão tornando incapazes de tomar decisões a respeito dos próprios filhos. Outro dia uma mãe telefonou desesperada, porque a filha acabara de cair e batera a cabeça. Para tentar avaliar a situação à distância, a médica perguntou em que região da cabeça tinha sido a pancada, e se estava formando um galo. A mãe não sabia, pois não tinha olhado a cabeça da filha ainda. A primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi correr para o celular e pedir ajuda “especializada”.
Pais medem a febre de cinco em cinco minutos, mas não conseguem dizer se a criança está prostrada ou animada. Uma conhecida listou quem atende o filho dela – um alopata, um homeopata, um dermatologista e um psicólogo. Não, ele não tem 50 anos, tem apenas 3. Ele é uma criança saudável e feliz, com algumas esquisitices iguais às do meu filho e iguais às das demais crianças do planeta – passe 24 horas com uma criança de 3 anos e você vai ver como eles são esquisitos! Mas ela não quer arriscar. Não com o filho dela.
Profissionais da saúde não assumem mais seus talentos únicos. Pais subcontratam o conhecimento e poder que eles, mais do que ninguém, têm sobre seus filhos. Nós mesmos, no aconchego de nossos rivotrils, não queremos entender por que mesmo estamos tristes.
De onde será que vem isso?
Talvez um pouco da resposta seja a influência de nossos vizinhos americanos. Por lá, um obeso ganha processos contra a rede de fast-food que o incita a comer mal. Pacientes são o vilão número 1 dos médicos. Se você escorrega no ketchup, a culpa não é da sua desatenção: é de quem colocou o ketchup ali, ou de quem produziu o ketchup, ou de quem inventou o ketchup.
Mas eu arriscaria dizer que um pouco também vem de uma insegurança mais profunda de nós com nós mesmos. A modernidade nos tirou a fé e nos trouxe os especialistas. E ficamos um pouco perdidos. Pedir ajuda aos universitários muitas vezes é necessário. Mas veja, até o Silvio Santos mostrou sapiência – eram apenas três as chances de chamar um desses ajudantes no Show do Milhão. O resto era com você. No show da vida real, a gente abusa do artifício. E, no caminho, abre mão da riqueza de nossas percepções, nossos olhares, nossos aprendizados, a sabedoria de cada um de nós. Nossos mais preciosos poderes. Me dói o coração imaginar que há médicos que não conhecem seus pacientes. Me dói ver que em vez de olharmos atenta, amorosa e calmamente para nossos filhos, recorremos a outros, desconhecidos deles, para nos dizerem qual é o “problema”. Me dói imaginar que eu mesma, em vez de escarafunchar minhas razões, posso optar pela saída fácil da felicidade medicamentosa.
Clarice Lispector foi taxativa: “Se houver um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige”. Ela falava da busca de cada um por seu nó vital. E, sem querer, dava a mesma receita do tio do Homem-Aranha e do (mala) Galvão Bueno. Vai que é tua!
* Pesquisadora do Gvces e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela London School of Economics and Political Science.