Vista de longe, Belo Monte é uma das obras que querem acenar para um país moderno. Mas basta se aproximar para reviver o roteiro que se repete há 50 anos
Entre o fim dos anos 1960 e início dos 1990, notícias que corriam boca a boca sobre novas obras e aberturas de garimpo corriam feito rastilho de pólvora entre as pessoas em busca de qualquer oportunidade de trabalho e de renda. A corrida levou o caos a muitos municípios do Norte do País, que pareciam dobrar de tamanho da noite para o dia. Surtos de malária e violência aterrorizavam a população; o dinheiro parecia estranhamente abundante e ao mesmo tempo volátil; os já tímidos esforços de planejamento urbano e econômico viravam pó.
O mesmo filme se repetiu cidade após cidade. O velho roteiro, em uso há mais de 50 anos, ganhou alguns retoques, mas segue produzindo longas-metragens incrivelmente polêmicos. Que o diga Altamira, no Centro-Sudoeste do Pará, principal município na área de influência da mega-hidrelétrica de Belo Monte. (mais na reportagem “Caravana Sem Fim”, da edição 39)
A migração de trabalhadores em busca de oportunidades intensificou-se desde que Belo Monte ganhou sua licença prévia, em março de 2009 (a licença de instalação foi obtida em junho passado). Não há um número oficial, mas os sintomas do aumento abrupto da população já são sentidos no trânsito, na saúde, na educação, na cesta básica e na segurança pública de Altamira.
Pelas contas da coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre , Antônia Melo, o crescimento da população foi de cerca de 20% nesse período. “Todos os dias chega ônibus cheio de gente. Não existe emprego para ninguém na cidade e ainda chega mais gente.”
Todos os relatos ouvidos por nossa reportagem apontam para os mesmos sintomas. Ocorrem mais acidentes de trânsito, pois a malha urbana não estava estruturada para a maior circulação de veículos e, somente agora, a cidade recebeu seus primeiros semáforos. O sistema público de saúde, que já era precário, está sobrecarregado. Há crianças fora da escola por falta de vagas. Os Aluguéis dispararam e os hotéis estão constantemente lotados. O comércio local não está preparado para atender o crescimento da demanda e os preços da cesta básica subiram.
A violência e a prostituição também aumentaram e o presídio regional está superlotado. “Tem dias que a polícia não atende chamados porque não tem gasolina para as viaturas”, relata Antônia Melo. “É pior que a febre do ouro, porque naquela época não tinha controle algum, não tinha governo. Esse projeto de Belo Monte tem um dono, é do governo, que com todo seu aparato não consegue controlar o que está acontecendo.”
A prefeita Odileia Maria de Souza (PSDB), em seu segundo mandato, confirma a sobrecarga nos serviços de saúde e educação e culpa o governo federal. “Nós pensamos que o governo fosse preparar o município para receber um empreendimento desses, mas, até agora, isso não aconteceu.” Segundo a prefeita, foi firmado em novembro um acordo emergencial com a Norte Energia S.A. (Nesa), consórcio responsável pelo empreendimento, para a construção de quatro postos de saúde, mas apenas recentemente se deu o início das obras de um deles. O município demanda a ampliação de dez escolas e a construção de sete novas. Destas, duas começaram a ser construídas.
Com 85% de seus quase 100 mil habitantes vivendo na área urbana, Altamira não possui coleta de esgoto e deposita todos os seus resíduos em um lixão a céu aberto.
A prefeitura começou a projetar um aterro sanitário em 2005. Há pouco concluiu o processo de licenciamento para sua construção, que também consta do acordo emergencial com a Nesa, mas, até o fechamento desta reportagem, o aterro ainda não havia saído do papel.
Planejamento deficiente
Construir escolas, postos de saúde e aterro está longe de resolver o problema de sobrecarga nos serviços básicos, já que, para fazer essas novas estruturas funcionarem, o município precisará de mais servidores. A prefeita, Odileia Maria de Souza, diz que recursos humanos para preencher esses postos de trabalho não faltam em Altamira, o que falta é dinheiro para ampliar a folha de pagamento.
Se a usina for construída, os onze municípios afetados diretamente por Belo Monte deverão receber ao todo uma compensação financeira anual de R$ 88 milhões por parte da Nesa. Mas, enquanto se espera pelo desfecho dessa história, os problemas vão-se agravando.
Daniela Gomes Pinto, pesquisadora do Programa de Desenvolvimento Local do Gvces, lembra que os impactos sociais são de médio e longo prazo e difíceis de medir, mas que não precisamos esperar para saber o que vai acontecer. A história das grandes obras é recheada de exemplos dos mais diversos tipos de problemas que elas detonam, muitos deles extremamente desafiadores.
A construção de instalações e o volume de arrecadação são componentes importantes para enfrentar a sobrecarga nos serviços públicos, mas a contratação de novos servidores pode esbarrar na falta de recursos humanos locais capacitados.
Em geral, os municípios hospedeiros não têm um preparo prévio diante da perspectiva de enfrentar as mudanças profundas que essas obras representarão em suas dinâmicas ambientais, sociais e econômicas.
O aumento da receita tributária e as compensações financeiras não chegam aos cofres públicos a tempo de dar conta das carências imediatas de saúde, saneamento e assistência social. “Estamos falando de desafios como mudar o processo de licenciamento, a forma como são feitas as compensações financeiras. Isso é muito complexo. Mas tem muitas coisas simples que também podem ser feitas.”
Ao longo de sua experiência com indicadores de sustentabilidade e impactos socioeconômicos de grandes empreendimentos, Daniela identifica algumas medidas que, se tomadas já no início da discussão dos empreendimentos, contribuem para reduzir o drama social que se instala junto com os canteiros de obras.
Um exemplo é o preparo dos pequenos negócios para dimensionar adequadamente seus investimentos. Os comerciantes locais se entusiasmam com a chegada de grandes obras, fazem empréstimos, abrem novos restaurantes, ampliam seus estabelecimentos para suprir a demanda dos canteiros de obras.
“Mas, muitas vezes, o empreendedor esquece de combinar sua política de responsabilidade com o departamento de compras, que é o responsável por efetuar as compras e ignora o mercado local”, aponta Daniela. O resultado é frustração e endividamento, que poderiam ser bem menores com investimentos em apoio às associações comerciais.
Outro controle importante é a construção da infraestrutura a tempo de atender a demanda. “Muitas vezes o que acontece é que a escola, o hospital, o posto policial, tudo isso é inaugurado depois de a obra estar pronta, quando o boom de pessoas já passou, sobrando uma infraestrutura inchada para o poder público local gerir.”
“Se benfeito, o estudo de impacto ambiental prevê minimamente quais mudanças acontecerão, daí já se deveria começar um planejamento regional, preparo de todos os envolvidos e intervenções no local”, reflete.“Isso tudo tem que vir antes de a obra começar.”
A concessão da licença de instalação de Belo Monte adicionou mais uma reviravolta ao desgastado roteiro de mais de 30 anos. O projeto de construção da hidrelétrica existe desde a conclusão do inventário do aproveitamento elétrico do Rio Xingu, em 1980. Seu primeiro estudo de viabilidade foi concluído em 1989, e entrou em hibernação até meados dos anos 1990, quando foi retomado pelo programa Avança Brasil, do governo Fernando Henrique Cardoso.
A polêmica sobre a inundação de áreas indígenas congelou novamente os planos, mas que foram retomados com força poucos anos depois, dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo Lula.
Até a concessão das duas primeiras licenças, diversas entidades socioambientais e indigenistas se reuniam sob a bandeira única da luta contra a barragem. Com as licenças e os primeiros funcionários contratados já morando em Altamira, os ânimos se dividiram. A coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre não acredita no argumento do fato consumado e diz que o movimento vai seguir lutando para evitar a construção da hidrelétrica.
O pesquisador da Universidade Federal do Pará Rofolfo Salm vê mais problemas à frente. “Há anos, tem gente que diz que a construção de Belo Monte é inevitável, mas até agora ela não saiu. Uma coisa é conseguir as licenças, outra é realmente construir as barragens. Vai haver resistência”, avalia Salm. Para ele, não há mitigação possível para os impactos do projeto. “A construção será uma tragédia. Não há como amenizar o fato fundamental de transformar o rio em um lago.”
Acompanhar de perto
Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental, entende que as licenças mostram a força de vontade do governo de construir a usina. Para Belo Monte não sair, o governo teria que mudar sua visão de que o custo do desenvolvimento implica abrir mão de certas questões sociais e ambientais, tais como as que estão em jogo nesse empreendimento. Por isso, a organização resolveu participar do comitê de acompanhamento da obra, um observatório de implementação das condicionantes – as garantias mínimas de que a obra vai trazer algum desenvolvimento para a região.
Para a ativista do ISA, o governo já está muito comprometido com a realização da obra, independentemente até mesmo de seus impactos políticos. Tanto que ignorou a solicitação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) para suspender o processo de licenciamento da usina. “Belo Monte põe em risco a própria política externa brasileira, comprometendo a imagem do país que, ao mesmo tempo que solicita uma vaga no Conselho de Segurança da ONU, passa por cima de direitos humanos e dos povos indígenas”, avalia Adriana.
E esse constrangimento internacional está prestes a se agravar. No início de junho, as entidades Conectas, Justiça Global e Sociedade Paraense de Direitos Humanos levaram o caso à 17ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça. A esperança é de que a pressão internacional force o governo a rever sua posição sobre a usina. Depois da licença de instalação que permite a construção do canteiro de obras, resta saber se este filme conseguirá fugir ao previsível roteiro do fato consumado.
O roteiro das megaobras se repete
1970-1973 – Transamazônica (BR-230)
Uma das obras faraônicas do governo militar na década de 1970, a estrada planejava ligar a costa atlântica ao Peru e, no caminho, favorecer a colonização da Amazônia com o modelo de agrovilas, um dos mais estrondosos fracassos da política desenvolvimentista da época. Abandonada sem a conclusão do asfalto, hoje possui trechos intransponíveis durante até seis meses, por causa das chuvas. Em vez de desenvolvimento, foi vetor de desmatamento e conflitos por terra. O trecho final, até o Peru, nunca foi aberto.
1974-1984 – Tucuruí
A construção começou em 1974, no centro do Pará, e até hoje é fonte de controvérsia. Seus críticos afirmam que a maioria dos benefícios da energia vai para empresas de alumínio, que geram pouco emprego localmente. Provocou desaparecimento da pesca artesanal e reassentou apenas parte da população afetada. Surtos de malária e outros mosquitos infernizam até hoje a população mais próxima ao lago. Inundou partes de três Terras Indígenas e suas linhas de transmissão cortaram outras quatro.
1980-1988 – Balbina
Construída no Rio Uatumã para fornecer energia elétrica a Manaus. A capacidade instalada de suas cinco turbinas é de 250 MW, mas a vazão média do rio no local do barramento dá conta de menos da metade Disso. A obra mudou o traçado de parte do rio, a área alagada provocou deslocamento dos índios Waimiri-Atroari e a decomposição da floresta submersa comprometeu a qualidade da água de afluentes, acabando com a pesca. Entrou em operação parcial em 1988. É considerada um dos maiores desastres ambientais do País.
1999-2005 – Barra Grande
Construída na Bacia do Rio Pelotas, em Santa Catarina, é um ícone das falhas nos processos de licenciamento, cujo Relatório de Impacto Ambiental caracterizou mais de 2 mil hectares de floresta primária de araucárias como capoeira. A batalha jurídica das entidades ambientalistas contra a hidrelétrica teve muitos capítulos ao longo da construção da obra e, no fim, venceu a lógica do fato consumado. Barra Grande recebeu a licença de operação em 2005.
2010 – Jirau
Parte do Complexo do Rio Madeira, em Porto Velho, Jirau deu recentemente uma mostra de conflitos com trabalhadores que um grande empreendimento pode ter. Incêndios e depredação no canteiro de obras expuseram os dramas humanos vividos por trabalhadores que migram em busca de trabalho.
Rodovia Porto Velho-Manaus (BR-319)
Foi construída entre 1971 e 1973 ligando as Duas capitais, com a justificativa de escoar a produção da Zona Franca de Manaus. Nunca teve muito tráfego de cargas, pois o transporte é mais barato por meio de navios. Abandonada e retomada pela floresta, teve sua reconstrução incluída no PAC e causou alvoroço, pois seu traçado facilita o acesso a áreas conservadas. O Estudo de Impacto Ambiental da obra ainda está sob análise pelo Ibama.
Ferrovia Transcontinental
Ligaria o litoral fluminense ao Peru, passando pelo Parque Nacional Serra do Divisor, no extremo oeste do Acre, uma área de altíssima concentração de biodiversidade. Tem sido considerada pelo governador do Acre como a melhor alternativa à construção de estradas para escoamento da produção do estado.
PCHs no Pantanal
Atualmente existem 29 barragens implantadas na região, e a previsão é de que o número aumente para 116. Sua construção é um dos principais vetores de desmatamento do bioma e, em conjunto, poderão alterar drasticamente os pulsos de inundação que fazem do pantanalo que é. Como os licenciamentos são individuais, não se tem uma visão do conjunto do impacto das barragens sobre o bioma.