Povos indígenas e Google, saber empírico e indústria. Nas relações entre tradição e inovação, o que está em jogo é a constante renovação
Por Ana Cristina D’Angelo
“Ali, no seu território mais amado, descobri que sua atitude diante daquilo que é chamado de ‘folclore’ é também uma aula de democracia cultural, onde as diferenças interagem para melhorar a vida, o pensamento e a arte de todo mundo. A relação de Siba com os brincantes de cavalo-marinho e maracatu rural, para citar dois estilos que conhece como poucos, não é demagógica nem paternalista, nem condescendente nem deslumbrada. Os dois lados da relação permanecem diferentes – e é porque são diferentes que têm algo de interessante para dizer um para o outro -, mas o contato é de igual para igual.”
O afetuoso texto do antropólogo Hermano Vianna sobre o disco Fuloresta do Samba (2002), gravado por Siba e músicos de Nazaré da Mata, 70 quilômetros ao norte do Recife, é um ponto de partida para tratar o conhecimento tradicional e seu aproveitamento ou apropriação pelo saber científico e tecnológico. Para Vianna, Siba compreende que o segredo da vitalidade da ‘cultura popular’ é a inovação dentro da tradição, a inovação que só é feita por quem respeita a tradição.
O conhecimento tradicional, segundo o dicionário, constituise de práticas, conhecimentos empíricos e costumes passados de pais para filhos, e crenças das comunidades tradicionais que vivem em contato direto com a natureza. Ou seja, é o resultado de um processo cumulativo, informal e de longo tempo de formação. A cerimônia de aproximação de Siba – naquele momento amplamente conhecido na indústria fonográfica – e os músicos de um samba sui generis, passado entre gerações do sertão pernambucano, pode ser transposta para situações recentes ou expor outras opções consumadas em que essa mistura gera transformações.
O gigante de tecnologia da informação na internet, o portal americano Google, recebeu, em 2007, um pedido um tanto inusitado. Almir Suruí, cacique da tribo Suruí, de Rondônia, queria uma parceria que pudesse contribuir para a localização- e preservação – do território de 247 mil hectares onde vive seu povo. Na verdade, os Suruí queriam fazer aparecer (e para valer) o desmatamento na região da aldeia, nada mais legítimo no mundo em que tanta gente tem uma janela digital.
Apesar de a aldeia não ter acesso à internet, a sede da Associação do Povo Suruí, a 35 quilômetros de distância, no município de Cacoal, orgulha-se de ter um terminal. Lá os Suruí-Paiter consultam o Google Earth e veem seu território, conhecem um pouco da história e o perfil do cacique. Almir foi à sede do Google, no Vale do Silício, na Califórnia. “Eu sou um fã de tecnologia, é importante trazer informações sobre a floresta para a população e esta é a melhor ferramenta de diálogo”, diz. Dessa forma, foi costurada a parceria entre o povo Suruí e o Google. Um encontro rico para as duas partes, segundo Almir, sem autoritarismo e com uma troca real. É a primeira vez que o Google é procurado por uma população indígena e isso pode se tornar experiência para outras aventuras, as novas brincadeiras que surgem dos encontros entre diferentes. “Nós somos um povo que não tem nada de tecnologia (da informação) e o Google conhece profundamente esse sistema. De outra maneira, todos dependem da Floresta Amazônica e precisam se envolver na preservação, é uma via de mão dupla.”
E foi para uma plateia de entendidos tecnológicos que Almir Suruí mostrou o plano de sustentabilidade da aldeia para os próximos 50 anos e como a união com a empresa americana se encaixava como uma luva nessa estratégia. Em plena Floresta Amazônica, o seu Dominguinhos é outro personagem do universo tradicional incensado e demandado pela ciência. Ele é dos últimos e poucos que conhecem plantas e árvores da floresta e cuida de um acervo criado pela Orsa Florestal, consultado por cientistas e interessados de todo o mundo.
Seu Dominguinhos nasceu em Breves, no Pará, em 1937, e desde cedo seu interesse era andar pela mata, descobrir nomes e tipos de plantas. “Conhecer uma planta é como conhecer uma pessoa, exige tempo e profundidade, porque a botânica muda muito”, afirma ele, em uma conferência por telefone da sede da Orsa Florestal, em Monte Dourado, distrito da cidade de Almeirim, norte do estado, para a capital paulista. A ideia original era falar com este mateiro por uma videoconferência. A despeito do aparato tecnológico de que é dotada a empresa para quem seu Dominguinhos presta serviço, uma circunstância tão simples, como a falta de energia elétrica naquela cidadezinha, impede os planos. Então é preciso se contentar com a voz.
Na linguagem da ciência, Domingos Sanches Pena é “parataxonomista”, e reconhecido como um dos melhores identificadores florestais na Região Amazônica. Acompanha projetos de pesquisa para a Orsa Florestal, participou da elaboração de livros como Árvores da Amazônia, foi figura fundamental para duas teses de mestrado e doutorado, relacionadas ao assunto, e é o responsável pela xiloteca mantida pela Orsa, com coleções de amostras de madeiras e botânicas e um herbário com 3.800 exemplares.
“O meu professor era um índio, um dos maiores conhecedores da Amazônia, Nilo Tomás da Silva. Ele obteve os conhecimentos de botânica com um cientista estrangeiro que veio para a Amazônia. Esse estrangeiro soube que havia um índio rejeitado pela família, ficou com pena e o levou junto para ensinar sobre as plantas. Levou ele também para estudar em Belém, onde fez até o segundo grau. Mas ele queria mesmo era ir para o mato, estudar e trabalhar as plantas medicinais”, conta seu Dominguinhos.
A fábrica chegou e então precisava de alguém que entendesse de madeira. “Ninguém conseguia absorver todo o conhecimento do Nilo e eu comecei a andar com ele, a decorar a sabedoria dele, e anotava algumas coisas.” Ainda assim, Dominguinhos diz que não se conhece uma vírgula de toda diversidade da floresta. “Eu chego no mato e tem um metro quadrado de plantas, às vezes conheço todas, muitas vezes nenhuma.”
Tecnologia? Seu Dominguinhos gosta, sim, mas pede aos filhos. “Hoje os meninos querem ficar em escritório.” Ele tinha expectativa de que um dos seis filhos tivesse interesse em seguir seu ofício, mas tomaram outros caminhos. Então, seu Dominguinhos pensa em escrever um livro, sabendo que boa parte do que sabe pode ficar sem rumo quando ele morrer. “Estou escrevendo um livro sobre a teoria da evolução, mas ainda está a lápis, preciso passar a limpo, quero um livro grande, pequeno não serve.”
A despeito de um contato profundo com a natureza ao seu redor, seu Dominguinhos diz que seu remédio é o trabalho. Gosta das plantas medicinais mas não usa, ou melhor, não precisa usar. “Quando chega uma idade avançada, tem que continuar trabalhando, já sou aposentado, mas continuo trabalhando. Depois quero me dedicar a um sítio que eu tenho, não vou parar.”
Garrafadas industrializadas
Que o brasileiro é chegado ao consumo de garrafadas e ervas milagrosas ninguém duvida. Mas o hábito do fitoterápico com o crivo da indústria é assunto recente e vai muito, muito além das ervas e garrafadas expostas em mercados como o Ver-o-Peso, em Belém. Nos últimos quatro anos, a busca por remédios ou cosméticos elaborados com extrato de plantas ganhou fôlego. E a indústria começou a investir para que o que é considerado natural seja oferecido sem o risco de uma poção feita sem indicações ou componentes mais claros e exatos. “É uma maneira de valorizar nossa diversidade natural e também de incentivar a pequena agricultura e o conhecimento tradicional”, diz Peter Andersen, um dos sócios do grupo Centroflora, que produz extratos de plantas para as indústrias cosmética, farmacêutica e veterinária.
Andersen hoje cuida, por exemplo, do cultivo da planta, da extração do óleo essencial e da padronização do extrato que vaicompor uma das descobertas mais bem-sucedidas de fitoterápicos, o Acheflan, um antibiótico de uso tópico natural, feito à base da erva baleeira, encontrada na Mata Atlântica. Também está a cargo do Centroflora a produção em escala dos ativos do Naturetti, um laxante natural, feito de plantas medicinais brasileiras.
No que se refere ao interesse particular dessa ponte pretendida do conhecimento mais primitivo para a massa e a escala, interessa muito o tipo de parceria estabelecido pelo Centroflora. Hoje a empresa conta com uma rede de fornecedores em praticamente todo o Brasil e a escolha estratégica é pela agricultura familiar.
O Centroflora tem uma rede de 80 projetos de cultivo agrícola e manejo de plantas no mapa brasileiro, parceiros essenciais para o cultivo da planta medicinalou matéria-prima para um cosmético. “A opção dos sócios da empresa é pela sustentabilidade do pequeno agricultor, queremos premiar a renda no campo. Mais barato seria contratar um agricultor capitalista que assumiria o risco no desenvolvimento de determinado cultivo”, afirma Andersen, mas a escolha permite que os agricultores permaneçam no campo, dentro de sua ocupação e ainda trabalhem com o suporte do conhecimento científico-tecnológico.
Além do cultivo convencional agrícola nas regiões de plantas nativas, o Centroflora faz o manejo florestal de algumas espécies, treinam e capacitam o agricultor, levando o know-how da planta medicinal para o agricultor.
Outra iniciativa do grupo que merece ser citada é a Ybios, uma empresa criada em parceria com a Natura, para a gestão do desenvolvimento de fitoterápicos no Brasil. “Nosso objetivo é pegar a ideia que está na prateleira da universidade e transformála em realidade”, conta.
Pontes como a da Ybios se fazem essenciais em um país onde a legislação que rege a descoberta científica é assunto polêmico entre as empresas e o detentor do conhecimento tradicional. Uma das maiores empresas brasileiras no investimento em pesquisa e desenvolvimento na área cosmética, a Natura que o diga. O diretor de pesquisa e tecnologia da marca, Daniel Gonzaga, explica que o simples fato de fazer uma pesquisa exploratória de alguma planta pode implicar a repartição dos benefícios futuros entre todos os envolvidos. Uma regra que encarece ou inibe uma parceria mais efetiva com quem está no campo, lembrando que empresas visam lucro, ainda que optem por agir de maneira sustentável.
“Hoje preferimos contribuir para a sustentabilidade das comunidades que fazem negócio com a Natura, mas a relação é muito mais de fornecedor e cliente do que de desenvolvimento tecnológico”, diz Gonzaga. Ou seja, a Natura faz uma opção pela biodiversidade brasileira ao desenvolver produtos com o que é natural daqui, mas recorre à ciência para a descoberta de ingredientes para seus cosméticos e cria unidades de negócio com agricultores que possam cultivar a matéria-prima necessária.
No ano passado, a empresa investiu cerca de R$ 100 milhões em pesquisas com um grupo de 200 colaboradores. Na outra ponta, definidas as demandas, mais de 19 comunidades tradicionais, quase a metade na Região Amazônica, cuidam da produção das plantas e extratos utilizados nos cosméticos.
Um grupo foi formado para a relação com essas comunidades, que, em troca, são instruídas no manejo agrícola e na certificação dos ingredientes. “Esse é um critério para ser fornecedor da empresa, mas também um benefício”, explica Gonzaga.
A empresa não estimula o fornecimento exclusivo para a marca, onde entra, mais uma vez, a ideia de que a troca se nutre da renovação e da novidade. “Os pequenos agricultores devem se diversificar; é o mesmo que nós buscamos.”
Voltando à lucidez de Hermano Vianna para os experimentos musicais da Fuloresta do Samba, a brincadeira de um ano nunca deve ser igual à brincadeira do ano que passou – se for imutável, desaparece, perde a graça para quem brinca. O novo vem de dentro e de fora da comunidade brincante.
Povos indígenas e Google, saber empírico e indústria. Nas relações entre tradição e inovação, o que está em jogo é a constante renovação
“Ali, no seu território mais amado, descobri que sua atitude diante daquilo que é chamado de ‘folclore’ é também uma aula de democracia cultural, onde as diferenças interagem para melhorar a vida, o pensamento e a arte de todo mundo. A relação de Siba com os brincantes de cavalo-marinho e maracatu rural, para citar dois estilos que conhece como poucos, não é demagógica nem paternalista, nem condescendente nem deslumbrada. Os dois lados da relação permanecem diferentes – e é porque são diferentes que têm algo de interessante para dizer um para o outro -, mas o contato é de igual para igual.”
O afetuoso texto do antropólogo Hermano Vianna sobre o disco Fuloresta do Samba (2002), gravado por Siba e músicos de Nazaré da Mata, 70 quilômetros ao norte do Recife, é um ponto de partida para tratar o conhecimento tradicional e seu aproveitamento ou apropriação pelo saber científico e tecnológico. Para Vianna, Siba compreende que o segredo da vitalidade da ‘cultura popular’ é a inovação dentro da tradição, a inovação que só é feita por quem respeita a tradição.
O conhecimento tradicional, segundo o dicionário, constituise de práticas, conhecimentos empíricos e costumes passados de pais para filhos, e crenças das comunidades tradicionais que vivem em contato direto com a natureza. Ou seja, é o resultado de um processo cumulativo, informal e de longo tempo de formação. A cerimônia de aproximação de Siba – naquele momento amplamente conhecido na indústria fonográfica – e os músicos de um samba sui generis, passado entre gerações do sertão pernambucano, pode ser transposta para situações recentes ou expor outras opções consumadas em que essa mistura gera transformações.
O gigante de tecnologia da informação na internet, o portal americano Google, recebeu, em 2007, um pedido um tanto inusitado. Almir Suruí, cacique da tribo Suruí, de Rondônia, queria uma parceria que pudesse contribuir para a localização- e preservação – do território de 247 mil hectares onde vive seu povo. Na verdade, os Suruí queriam fazer aparecer (e para valer) o desmatamento na região da aldeia, nada mais legítimo no mundo em que tanta gente tem uma janela digital.
Apesar de a aldeia não ter acesso à internet, a sede da Associação do Povo Suruí, a 35 quilômetros de distância, no município de Cacoal, orgulha-se de ter um terminal. Lá os Suruí-Paiter consultam o Google Earth e veem seu território, conhecem um pouco da história e o perfil do cacique. Almir foi à sede do Google, no Vale do Silício, na Califórnia. “Eu sou um fã de tecnologia, é importante trazer informações sobre a floresta para a população e esta é a melhor ferramenta de diálogo”, diz. Dessa forma, foi costurada a parceria entre o povo Suruí e o Google. Um encontro rico para as duas partes, segundo Almir, sem autoritarismo e com uma troca real. É a primeira vez que o Google é procurado por uma população indígena e isso pode se tornar experiência para outras aventuras, as novas brincadeiras que surgem dos encontros entre diferentes.
“Nós somos um povo que não tem nada de tecnologia (da informação) e o Google conhece profundamente esse sistema. De outra maneira, todos dependem da Floresta Amazônica e precisam se envolver na preservação, é uma via de mão dupla.”
E foi para uma plateia de entendidos tecnológicos que Almir Suruí mostrou o plano de sustentabilidade da aldeia para os próximos 50 anos e como a união com a empresa americana se encaixava como uma luva nessa estratégia. Em plena Floresta Amazônica, o seu Dominguinhos é outro personagem do universo tradicional incensado e demandado pela ciência. Ele é dos últimos e poucos que conhecem plantas e árvores da floresta e cuida de um acervo criado pela Orsa Florestal, consultado por cientistas e interessados de todo o mundo.
Seu Dominguinhos nasceu em Breves, no Pará, em 1937, e desde cedo seu interesse era andar pela mata, descobrir nomes e tipos de plantas. “Conhecer uma planta é como conhecer uma pessoa, exige tempo e profundidade, porque a botânica muda muito”, afirma ele, em uma conferência por telefone da sede da Orsa Florestal, em Monte Dourado, distrito da cidade de Almeirim, norte do estado, para a capital paulista. A ideia original era falar com este mateiro por uma videoconferência. A despeito do aparato tecnológico de que é dotada a empresa para quem seu Dominguinhos presta serviço, uma circunstância tão simples, como a falta de energia elétrica naquela cidadezinha, impede os planos. Então é preciso se contentar com a voz.
Na linguagem da ciência, Domingos Sanches Pena é “parataxonomista”, e reconhecido como um dos melhores identificadores florestais na Região Amazônica. Acompanha projetos de pesquisa para a Orsa Florestal, participou da elaboração de livros como Árvores da Amazônia, foi figura fundamental para duas teses de mestrado e doutorado, relacionadas ao assunto, e é o responsável pela xiloteca mantida pela Orsa, com coleções de amostras de madeiras e botânicas e um herbário com 3.800 exemplares.
“O meu professor era um índio, um dos maiores conhecedores da Amazônia, Nilo Tomás da Silva. Ele obteve os conhecimentos de botânica com um cientista estrangeiro que veio para a Amazônia. Esse estrangeiro soube que havia um índio rejeitado pela família, ficou com pena e o levou junto para ensinar sobre as plantas. Levou ele também para estudar em Belém, onde fez até o segundo grau. Mas ele queria mesmo era ir para o mato, estudar e trabalhar as plantas medicinais”, conta seu Dominguinhos.
A fábrica chegou e então precisava de alguém que entendesse de madeira. “Ninguém conseguia absorver todo o conhecimento do Nilo e eu comecei a andar com ele, a decorar a sabedoria dele, e anotava algumas coisas.” Ainda assim, Dominguinhos diz que não se conhece uma vírgula de toda diversidade da floresta. “Eu chego no mato e tem um metro quadrado de plantas, às vezes conheço todas, muitas vezes nenhuma.”
Tecnologia? Seu Dominguinhos gosta, sim, mas pede aos filhos. “Hoje os meninos querem ficar em escritório.” Ele tinha expectativa de que um dos seis filhos tivesse interesse em seguir seu ofício, mas tomaram outros caminhos. Então, seu Dominguinhos pensa em escrever um livro, sabendo que boa parte do que sabe pode ficar sem rumo quando ele morrer. “Estou escrevendo um livro sobre a teoria da evolução, mas ainda está a lápis, preciso passar a limpo, quero um livro grande, pequeno não serve.”
A despeito de um contato profundo com a natureza ao seu redor, seu Dominguinhos diz que seu remédio é o trabalho. Gosta das plantas medicinais mas não usa, ou melhor, não precisa usar. “Quando chega uma idade avançada, tem que continuar trabalhando, já sou aposentado, mas continuo trabalhando. Depois quero me dedicar a um sítio que eu tenho, não vou parar.”
Garrafadas industrializadas
Que o brasileiro é chegado ao consumo de garrafadas e ervas milagrosas ninguém duvida. Mas o hábito do fitoterápico com o crivo da indústria é assunto recente e vai muito, muito além das ervas e garrafadas expostas em mercados como o Ver-o-Peso, em Belém. Nos últimos quatro anos, a busca por remédios ou cosméticos elaborados com extrato de plantas ganhou fôlego. E a indústria começou a investir para que o que é considerado natural seja oferecido sem o risco de uma poção feita sem indicações ou componentes mais claros e exatos. “É uma maneira de valorizar nossa diversidade natural e também de incentivar a pequena agricultura e o conhecimento tradicional”, diz Peter Andersen, um dos sócios do grupo Centroflora, que produz extratos de plantas para as indústrias cosmética, farmacêutica e veterinária.
Andersen hoje cuida, por exemplo, do cultivo da planta, da extração do óleo essencial e da padronização do extrato que vaicompor uma das descobertas mais bem-sucedidas de fitoterápicos, o Acheflan, um antibiótico de uso tópico natural, feito à base da erva baleeira, encontrada na Mata Atlântica. Também está a cargo do Centroflora a produção em escala dos ativos do Naturetti, um laxante natural, feito de plantas medicinais brasileiras.
No que se refere ao interesse particular dessa ponte pretendida do conhecimento mais primitivo para a massa e a escala, interessa muito o tipo de parceria estabelecido pelo Centroflora. Hoje a empresa conta com uma rede de fornecedores em praticamente todo o Brasil e a escolha estratégica é pela agricultura familiar.
O Centroflora tem uma rede de 80 projetos de cultivo agrícola e manejo de plantas no mapa brasileiro, parceiros essenciais para o cultivo da planta medicinalou matéria-prima para um cosmético. “A opção dos sócios da empresa é pela sustentabilidade do pequeno agricultor, queremos premiar a renda no campo. Mais barato seria contratar um agricultor capitalista que assumiria o risco no desenvolvimento de determinado cultivo”, afirma Andersen, mas a escolha permite que os agricultores permaneçam no campo, dentro de sua ocupação e ainda trabalhem com o suporte do conhecimento científico-tecnológico.
Além do cultivo convencional agrícola nas regiões de plantas nativas, o Centroflora faz o manejo florestal de algumas espécies, treinam e capacitam o agricultor, levando o know-how da planta medicinal para o agricultor.
Outra iniciativa do grupo que merece ser citada é a Ybios, uma empresa criada em parceria com a Natura, para a gestão do desenvolvimento de fitoterápicos no Brasil. “Nosso objetivo é pegar a ideia que está na prateleira da universidade e transformála em realidade”, conta.
Pontes como a da Ybios se fazem essenciais em um país onde a legislação que rege a descoberta científica é assunto polêmico entre as empresas e o detentor do conhecimento tradicional. Uma das maiores empresas brasileiras no investimento em pesquisa e desenvolvimento na área cosmética, a Natura que o diga. O diretor de pesquisa e tecnologia da marca, Daniel Gonzaga, explica que o simples fato de fazer uma pesquisa exploratória de alguma planta pode implicar a repartição dos benefícios futuros entre todos os envolvidos. Uma regra que encarece ou inibe uma parceria mais efetiva com quem está no campo, lembrando que empresas visam lucro, ainda que optem por agir de maneira sustentável.
“Hoje preferimos contribuir para a sustentabilidade das comunidades que fazem negócio com a Natura, mas a relação é muito mais de fornecedor e cliente do que de desenvolvimento tecnológico”, diz Gonzaga. Ou seja, a Natura faz uma opção pela biodiversidade brasileira ao desenvolver produtos com o que é natural daqui, mas recorre à ciência para a descoberta de ingredientes para seus cosméticos e cria unidades de negócio com agricultores que possam cultivar a matéria-prima necessária.
No ano passado, a empresa investiu cerca de R$ 100 milhões em pesquisas com um grupo de 200 colaboradores. Na outra ponta, definidas as demandas, mais de 19 comunidades tradicionais, quase a metade na Região Amazônica, cuidam da produção das plantas e extratos utilizados nos cosméticos.
Um grupo foi formado para a relação com essas comunidades, que, em troca, são instruídas no manejo agrícola e na certificação dos ingredientes. “Esse é um critério para ser fornecedor da empresa, mas também um benefício”, explica Gonzaga.
A empresa não estimula o fornecimento exclusivo para a marca, onde entra, mais uma vez, a ideia de que a troca se nutre da renovação e da novidade. “Os pequenos agricultores devem se diversificar; é o mesmo que nós buscamos.”
Voltando à lucidez de Hermano Vianna para os experimentos musicais da Fuloresta do Samba, a brincadeira de um ano nunca deve ser igual à brincadeira do ano que passou – se for imutável, desaparece, perde a graça para quem brinca. O novo vem de dentro e de fora da comunidade brincante.
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