ONGs e universidades se unem para buscar soluções inovadoras para o perfil energético nacional. O conhecimento é avançado, mas o diálogo com gestores públicos ainda é precário
Há mais controvérsia na ciência do que gostaria a nossa vã necessidade de segurança racional. No universo das ciências energéticas isso é especialmente verdade. O campo do conhecimento que nasceu de precisões físicas e matemáticas rapidamente se tornou base da civilização e herdou toda a sua complexidade. Economia, desenvolvimento, infraestrutura, meio ambiente e clima entraram na equação e, com eles, o maior complicador do caráter humano: escolha.
“Escolha” é a única variável capaz de explicar como três estudos que se valeram dos mesmos dados – cenários de conjuntura produzidos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia – apontam caminhos tão distintos para o perfil energético brasileiro futuro (veja abaixo em “Universos Paralelos”). O primeiro, o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE), do governo federal, serve à expansão irrestrita da oferta, principalmente pela via dos combustíveis fósseis ou grandes empreendimentos hidrelétricos, na perspectiva de que o crescimento econômico forçosamente deverá se encaixar nos limites dos sistemas naturais.Os outros dois, do WWF e do Greenpeace, apostam na revisão do consumo, na eficiência de produção e transporte energéticos e na audácia de expandir as chamadas energias renováveis modernas: eólica, fotovoltaica e biomassa.
Alguém, desavisado, poderia argumentar que o plano-base do desenvolvimento energético nacional é fruto do trabalho de profissionais gabaritados, não de militantes. Não é bem assim.Os produtores de conhecimento especializado estão pulverizados e, para equilibrar ainda mais o debate, ONGs e academia estão se fundindo estrategicamente. Não é um fenômeno novo, mas que se intensificou, na medida em que o tema de energia se consolidou na agenda dos movimentos ambientalistas.
O relatório Agenda Elétrica Sustentável 2020, lançado em 2006 pelo WWF, foi feito em coautoria com pesquisadores da Unicamp. A paternidade de [R]evolução Energética – O cenário brasileiro, do Greenpeace, é compartilhada com acadêmicos da Escola Politécnica da USP. Os dois estudos sintetizam a proposta das ONGs para o planejamento energético nacional, chancelada por especialistas das duas universidades que mais publicam e formam mestres e doutores no País.
Não representam, decerto, a posição institucional das escolas, mas consolidam uma parceria de mão dupla: a função social do conhecimento acadêmico na prática e a qualificação das críticas e propostas de organizações da sociedade. “Os movimentos sociais, particularmente o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), muitas vezes são desconsiderados ou até enganados, porque não detêm o conhecimento científico. Nós procuramos ajudar, porque este é um papel primordial da academia”, diz Celio Bermann, professor livre-docente do Instituto de Eletrotécnica e Energia, da Universidade de São Paulo.
Em busca da autonomia
Algumas organizações já contam com físicos e engenheiros no seu quadro interno, mas não são tantos quanto os especialistas em ciências biológicas, segundo Karen Suassuna, analista sênior do WWF e organizadora do Agenda Elétrica Sustentável: “Tenho a impressão de que o pessoal de agronomia, engenharia florestal, biologia, por serem profissões que lidam intrinsecamente com meio ambiente, já estão há mais tempo nesse movimento. O pessoal das ciências exatas está em número menor”.
Ao tempo da apuração desta reportagem, o WWF estava à procura de um especialista em energia e desenvolvimento hidrelétrico para integrar sua equipe. A vaga foi divulgada no site da entidade durante um mês, mas, nesse período, apenas um currículo foi enviado. “No mínimo, ficou claro que esses profissionais não acessam o nosso site”, diz Karen.
Gilberto Jannuzzi, professor livre-docente em sistemas energéticos da Unicamp, é um personagem que representa bem a mistura dos mundos. É presidente de uma ONG, a International Energy Initiative (IEI), que, por sua vez, foi fundada por três acadêmicos internacionais e um brasileiro: José Goldemberg, da USP. Jannuzzi, um dos coautores do trabalho do WWF, hoje é lead author de um relatório especial inédito do IPCC sobre energias renováveis e mitigação das mudanças climáticas.
Para ele, a cooperação das universidades não pode substituir a autonomia técnica dos movimentos socioambientais. Uma parceria tem prazo para acabar e a finalização do estudo é apenas o primeiro passo de um processo de negociação e convencimento que só pode ser encaminhado por organizações bem preparadas. Ele diz que as ONGs brasileiras ainda têm muito espaço para cavar: “Trabalhar no WWF no exterior é algo que enriquece o currículo, mesmo de uma pessoa técnica, porque tem departamentos especializados. Mas, no Brasil, participar de ONG talvez não confira, do ponto de vista acadêmico, certo grau de status, ou até de credibilidade, infelizmente.”
Preconceito é algo de que as ONGs se queixam e, em última análise, pode ser um dos fatores que levam a tamanha discrepância entre suas propostas e o ápice das políticas públicas nacionais. Sérgio Leitão, diretor de campanhas do Greenpeace, defende que a função primordial dessas entidades é produzir conhecimento que seja acessível para a “tia Zulmira”, codinome utilizado internamente para designar o brasileiro médio. Karen, do WWF, ecoa: “Nós não trabalhamos produzindo ciência, mas fazendo os links entre a ciência e a formulação de políticas públicas”.
Mesmo assim, pelo menos em alguns círculos, o conhecimento gerado pelas organizações socioambientais ganha status. Bermann diz que se vale desses estudos como bibliografia e estimula seus alunos a fazerem o mesmo “sem nenhum constrangimento”. Isso sem prejuízo das divergências, que, de fato, existem. O professor questiona, por exemplo, a ideia de que é possível substituir toda a geração de energia elétrica originada de fontes fósseis pelas energias renováveis. É algo muito próximo do cenário apresentado no relatório [R]evolução Energética, do Greenpeace, para 2050. Nele, o único combustível fóssil que permanece na matriz elétrica é o gás natural, responsável por apenas 12% da geração total.
“O problema é que 81% da energia consumida no mundo provém de fontes fósseis. No Brasil, essa marca é de 55%. Não é possível dar conta dessa escala só com fontes alternativas, que são intermitentes”, considera. Para o professor, entretanto, o estado da arte em estratégia de desenvolvimento energético, tanto nas ONGs quanto nas Academias, aponta princípios consensuais: redução agressiva do desperdício na geração e na distribuição de energia, revisão do perfil da demanda, especialmente entre as indústrias eletrointensivas, e redirecionamento dos subsídios que hoje sustentam as fontes sujas (é o caso do óleo diesel para geradores nos sistemas isolados, sobretudo na Região Amazônica) para as fontes alternativas, de modo a incentivar o desenvolvimento das novas tecnologias. Desse modo, se não é possível banir por completo a energia elétrica intensiva em carbono a médio prazo, seria pelo menos viável evitar futuras termelétricas e gigantes hidrelétricas.
Se as políticas federais seguem o caminho diametralmente oposto, o nó é o relacionamento com os gestores públicos, segundo os especialistas consultados pela reportagem. Jannuzzi diz que os estudos da EPE, que fundamentam os planos do ministério, são obscuros até para ele. Faltaria transparência e uma cultura de diálogo, sem a qual quaisquer propostas destoantes dos business as usual são imediatamente desacreditadas. Seria como a alegoria do menino que é “dono da bola”: se alguém discorda, acaba o jogo. Ou a conversa.
A reportagem solicitou uma entrevista com o presidente da EPE, Mauricio Tolmasquim, que chegou a ser agendada, mas não aconteceu. Em 2006, quando houve o lançamento do estudo do WWF, Tolmasquim esteve presente no evento e comentou: “É necessário, sim, expandir a oferta de energia. Acreditar que é possível crescer sem construir novas usinas é uma utopia que levará o País ao não desenvolvimento.Estudos como este, que arrogam que é possível crescer só com economia de energia, células fotovoltaicas e eólica, são perigosos para o País”. A proposta do WWF projetava uma participação de 20% das energias renováveis modernas na matriz elétrica nacional.
“O que se quer é começar um debate, entender melhor o que está sendo proposto e contribuir. Não é assumir uma tarefa que não é da sociedade. Nós nunca vamos ter todos os instrumentos na mão”, diz Jannuzzi. Há outra a função que não pode ser suprida por ninguém além do governo e, nela, planejamento e tecnologia se encontram na mesma estratégia.
Direcionar o mercado
Não se pode negar que a aplicação das energias solar e eólica esbarram numa limitação tecnológica. São novas e mais caras que as tradicionais, o que levou o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) a impor um teto de investimento, a modicidade tarifária, para controlar o preço final ao consumidor. Mas essa história é conhecida. Computadores, telefones celulares, televisores e tantas outras tecnologias cotidianas nasceram caras demais e se popularizaram, na medida em que ganharam escala e um ambiente de concorrência.
Nos países desenvolvidos, o grande potencial de inovação em tecnologia energética vem do setor privado. Ao contrário do Brasil, as empresas avançam mais que as universidades, porque têm Agilidade e centram-se na viabilidade financeira e industrial. Mas, como aponta o físico Délcio Rodrigues, da ONG Vitae Civilis, é preciso considerar o tipo de sinalização que o governo envia ao mercado quando limita o investimento no Proinfa e anuncia a intenção de dobrar o parque termoelétrico nacional, triplicando as emissões de gases de efeito estufa. Não há uma única empresa brasileira fabricante de turbinas eólicas ou painéis fotovoltaicos.
“Um empresário, por definição, só vai investir se tiver perspectiva de retorno”, diz Ernesto Moeri, presidente do Grupo Ecogeo, um dos exemplos nacionais de investimento em pesquisa energética. Por ora, o foco de Moeri está na biomassa. Em parceria com a Universidade Federal de São Carlos, o grupo pesquisa o potencial de microalgas para geração de energia e comercializa tecnologia suíça de plantas modulares para fabricação de biodiesel, à base de resíduos vegetais e animais.
Uma das razões da escolha comercial do Ecogeo é que um biodigestor se paga em menos de três anos, já que a matériaprima residual é gratuita, por exemplo, para um frigorífico. “Energia solar é uma alternativa que acompanhamos com interesse. Mas não dá para investir ainda. Tem que haver uma ajuda do governo no começo, como foicom o álcool”, diz Moeri.
Quando ninguém arrisca, não há concorrência, e nem barateamento. Délcio Rodrigues conta que, em Salvador, foi o prenúncio de uma competição que trouxe fôlego ao comércio de aquecedores solares. A Coelba, distribuidora local de energia, passou a enfrentar a concorrência de uma empresa de gás natural. Para combater a perda de mercado, passou a oferecer também a alternativa solar híbrida, mais barata. A experiência mostra que o monopólio de distribuidoras de energia nos estados também é passível de questionamento.
Se esta narrativa parece desoladora, Leitão, do Greenpeace, diz que é uma questão de ponto de vista: “Você tem de sair juntando os cacos. Há coisas novas brotando, só que elas ainda não aparecem no cume, mas nas bordas”. O anúncio do primeiro leilão de energia eólica, marcado pelo governo federal para novembro deste ano, foicomemorado pelos movimentos socioambientais como o primeiro passo na direção da sonhada complementaridade da matriz elétrica com fontes alternativas.
Segundo Leitão, os governadores do Nordeste tiveram um papel crucial nesse processo. É também nos municípios que nascem os primeiros incentivos para o uso de aquecedores solares, com alterações dos Códigos de Obras para novas edificações. Segundo a Vitae Civilis, há hoje 27 cidades brasileiras com leis aprovadas nesse sentido e outras 125 com projetos em tramitação. Seja qual for o ponto de partida, é certo que, quanto mais atores, entre ONGs, empresas e universidades, estiverem capacitados para participar desse debate, melhor.
Universos Paralelos
Plano Decenal de Energia – EPE: Cenário Para 2017
Participação de energia renováveis alternativas* na matriz elétrica: 4,5%
Ganho em eficiência energética: Nada consta. Ao contrário, o PDE prevê um aumento de 61% no consumo de energia
Economia em relação ao cenário tendencial: O plano prevê custos de R$ 767 bilhões
Agenda Elétrica Sustentável- WWF: cenário para 2020
Participação de energia renováveis alternativas* na matriz elétrica: 20%
Ganho em eficiência energética: 38% da oferta necessária viriam do combate ao desperdício
Economia em relação ao cenário tendencial: R$ 33 bilhões
[R]evolução Energética – Greenpeace: cenário para 2050
Participação de energia renováveis alternativas* na matriz elétrica: 88%
Ganho em eficiência energética: 29% da oferta viriam do combate ao desperdício
Economia em relação ao cenário tendencial: R$117 bilhões
* eólica, fotovoltaica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas