Cercada por água doce, a cidade de São Paulo pode ter em um anel fluvial uma saída para seu trânsito e melhor qualidade de vida
Existe em São Paulo um caminho por onde pode passar boa parte das cargas, do lixo urbano, dos produtos e até dos passageiros e turistas. Sem semáforo, o caminho ainda inexplorado está localizado no curso dos rios e represas no entorno da cidade.
Em março, o grupo de pesquisa Metrópole Fluvial, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, finalizou a articulação arquitetônica e urbanística do Hidroanel Metropolitano de São Paulo. O projeto redesenha 170 quilômetros de vias navegáveis formadas pelos rios Pinheiros e Tietê, pelas represas Billings e Taiaçupeba, mais um canal e um túnel que fazem a ligação entre as duas represas. Baseada no conceito de uso múltiplo das águas, estabelecido na Política Nacional de Recursos Hídricos, a iniciativa começou em 2009, quando o Governo do Estado de São Paulo, por meio do Departamento Hidroviário da Secretaria Estadual de Logística e Transportes, licitou o estudo de pré-viabilidade técnica, econômica e ambiental do hidroanel.
Um dos objetivos da iniciativa é repensar as águas da região metropolitana e encontrar nelas uma alternativa de percurso, como era no começo do século XX. Antes de o Brasil investir nas rodovias – sinônimo de desenvolvimento nos anos 60 –, as embarcações e trens eram os principais meios de escoamento. Como sabemos, depois que o modelo de urbanismo rodoviário prevaleceu, desmantelaram-se os modais ferroviário e hidroviário. Alexandre Delijaicov, professor da FAU e coordenador do Grupo Metrópole Fluvial, lembra que, na década de 20, cerca de 3 mil embarcações eram licenciadas por ano para navegar pelos rios de São Paulo.
Ao longo da história paulistana, os rios urbanos foram confinados em canais estreitos, rasos e restringidos entre barragens que impedem a navegação continuada. A densa urbanização nas várzeas hoje resulta em alagamentos, problemas de locomoção e congestionamento. Na superfície de concreto, muitas galerias subterrâneas estão escondidas ou são desconhecidas dos habitantes da cidade. (Leia sobre a redescoberta dos rios em “Enterrados, mas vivos”, na edição 58).
Como não é possível voltar atrás e refazer todo o projeto urbanístico da cidade, Delijaicov acredita que a saída seja “construir a partir do construído” e tornar a malha de transporte “multimodal” e interligada. “Uma cidade precisa ter todos os modais de transporte, da bicicleta ao avião”, diz.
Segundo o pesquisador, uma das funções do hidroanel é melhorar o congestionamento que atualmente assola a Região Metropolitana de São Paulo. A previsão é que cada embarcação tenha capacidade de 400 toneladas, equivalente ao que carregam 50 caminhões. Isso reduzirá em até 30% as 400 mil viagens/dia feitas por caminhões hoje.
Dividido em etapas, o projeto do anel fluvial deve escoar primeiramente os resíduos sólidos urbanos, também chamados de carga pública, e, com o passar do tempo, movimentar outras mercadorias, como alimentos.
Para receber lixo urbano, a primeira fase do projeto, elaborada de acordo com as diretrizes do Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), estabelece a implantação de 60 “ecoportos” no percurso, além de triportos [1] para o processamento dos resíduos. Os barcos estarão integrados ao sistema de coleta seletiva dos 15 municípios banhados pelos rios. Se hoje um caminhão faz um percurso de 50 quilômetros entre as residências e os lixões, com o hidroanel precisarão percorrer apenas de 5 a 10 quilômetros.
[1] Parte da rede de serviços hidroviários, os triportos fazem a triagem, reciclagem, processamento, reutilização, e em última instância a incineração dos resíduos urbanos
E, como não é possível navegar nem oferecer às pessoas transporte em águas tão poluídas – como estão hoje –, barcos de limpeza vão contribuir com a revitalização dos rios e canais. Movidos a diesel ou modelos híbridos (biogás e motor elétrico), diminuindo consideravelmente as emissões de gases de efeito estufa e a poluição, essa embarcações filtrarão a sujeira e colaborarão com o sonho dos paulistanos de ver os rios e represas limpos novamente, melhorando a qualidade de vida dos habitantes da cidade.
“São Paulo nunca teve um padrão de urbanização que valoriza a qualidade ambiental e o hidroanel muda isso”, diz Delijaicov, referindo-se ao plano de revitalizar as orlas, que serão rearborizadas e transformadas em espaços públicos de lazer. Para o especialista, ao incentivar a cultura de convivência com os rios, eles deixam de ser entendidos como um transtorno em caso de enchentes e voltam a ter importância funcional e lúdica para a população urbana.
Delijaicov alerta, contudo, que o maior desafio para a implementação do hidroanel é convencer as autoridades públicas a abraçar um projeto de longo prazo – a previsão é que leve 30 anos, ou oito gestões. “O estudo foi encomendado pelo governo do estado, o que mostra que, pela primeira vez, há interesse. O hidroanel é um sonho do grupo de estudos da FAU e meu. São Paulo precisa dele”, diz