Após as discussões sobre os desafios globais na Rio+20, é hora de empoderar o cidadão como protagonista de mudanças no seu entorno
Depois de um sobrevoo pelo planeta, que permitiu uma visão global dos desafios para o desenvolvimento sustentável em pauta na Rio+20, chegou a hora de voltar pra casa, reintegrar-se à rotina, reajustar o olhar no derredor e praticar o que alguns autores apelidaram de “glocalismo”, ou seja, voltar-se para o local, enquanto a dinâmica transformadora global segue seu curso. Afinal, como disse o economista chileno Sergio Boisier, durante sua passagem pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), órgão da ONU, desenvolvimento é um fenômeno dependente de uma trajetória e historicamente evolutivo, que se inicia sempre em um lugar ou em vários, mas nunca em todos.
Na prática, o desenvolvimento sustentável local depende fundamentalmente da construção de uma rede de participações. Será que o Brasil está conseguindo fazer essa lição de casa? Os desafios são muitos e começam pela necessidade de fortalecer e disseminar pelo País o conceito de “empoderamento”, segundo o qual o cidadão deixa de ser apenas um contribuinte demandante do poder público e se torna um protagonista de iniciativas capazes de mudar não só a sua própria história, mas a do seu entorno.
O território é um cenário importante nesse exercício do “empoderamento”, pois, além de servir como suporte para as atividades econômicas, deve ser ocupado também para provocar transformações. Um singelo exemplo é a surpreendente interação de moradores da região central de São Paulo com o Elevado Costa e Silva, o “Minhocão”, uma abominável estrutura viária erguida cerca de 40 anos atrás, que nos fins de semana é transformada em uma festiva área de lazer.
As cidades estão repletas de talentos individuais facilitadores de ações comunitárias que, quando encontram outros talentos complementares, podem transformar realidades, sem necessariamente esperar por iniciativas de prefeituras ou dos estados, embora a participação do agente público também seja importante no encadeamento das redes sociais.
Segundo Cecília Ferraz, coordenadora do programa de Desenvolvimento Local do GVces, deve-se cobrar e buscar, sempre, a efetiva presença do poder público. “Não tenho dúvida de que cidadãos agindo em conjunto transformam realidades. Mas, para alcançarmos mudança de realidade e novos patamares de desenvolvimento, precisamos das políticas e iniciativas dos agentes públicos”, afirma.
São Paulo, assim como várias outras cidades brasileiras, possui uma infinidade de iniciativas comunitárias emblemáticas, que se adiantaram à prefeitura, como as dos bairros Jardim Ângela, Jardim Maria Sampaio e Morro do Querosene, que, entre tantas outras, dão uma ideia das conquistas possíveis. (leia mais na reportagem “Em plena São Paulo S.A.)
Muitas das histórias de sucesso, entretanto, por falta de articulação com instâncias que poderiam replicá-las, acabam fechadas em si mesmas. Há exceções – caso da Rede Nossa São Paulo, que já levou o programa Cidades Sustentáveis para as cinco regiões do País –, mas não em quantidade suficiente para formar uma rede nacional de desenvolvimento local. Mesmo porque a soma pura e simples de projetos locais não faz uma estratégia nacional, como ensina Ignacy Sachs, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris.
PANO DE FUNDO
Um bom retrato de como deve processar-se o desenvolvimento sustentável local é o de uma “colcha de retalhos costurada com unidade e consistência”, conforme sugere a geógrafa Denise Kronenberger, da Universidade Federal Fluminense, no livro Desenvolvimento Local Sustentável – Uma abordagem prática. Cada projeto local posto em prática é representado por um pedaço de tecido, cujas cores e padronagem revelam sua identidade e seu diferencial de competitividade. Um mesmo retalho/projeto pode ser harmoniosamente replicado em um ou em vários outros locais, mas sempre com respeito às culturas locais e regionais.
A chave para que o desenvolvimento local ganhe robustez está na “costura” que une os vários projetos, formando uma forte e ampla rede social, que pode ter dimensões sub-regionais, estaduais, ou chegar ainda mais longe. “O desenvolvimento local não exclui nem impede conexão com as redes regionais e mundiais. Ao contrário, o objetivo é a criação de redes ampliadas, mas sempre a partir da perspectiva das potencialidades e necessidades locais”, explica a geógrafa.
A articulação entre os locais pode ser facilitada por um sistema de governança que proponha a criação tanto de novas formas de gestão mais flexíveis como de novas instituições responsáveis por gestões intermunicipais voltadas para o desenvolvimento regional. O economista e professor da PUC-SP Ladislau Dowbor cita alguns modelos de organizações intermediárias entre o Estado, o mercado e a sociedade que podem cumprir esse papel de instrumentalizar as estratégias de desenvolvimento local: consórcios de municípios, comitês de bacia hidrográfica, pactos, conselhos e agências regionais.
O agrônomo Paulo Cesar Arns, membro do Instituto de Assessoria para o Desenvolvimento Humano (IADH), com sede no Recife, lembra que, para fortalecer a governança em torno de projetos comuns, que contribuam com o desenvolvimento local, é necessário apoiar também o fortalecimento do capital humano e social. Voltando à analogia da colcha de retalhos, isso significa a capacitação das “costureiras” para que escolham a linha e o ponto mais adequados ao tipo de tecido com o qual se está trabalhando.
RECURSOS E TECNOLOGIA
Para manter essa rede de articulação bem robusta, são necessários alguns instrumentos econômico-financeiros. Nos últimos anos, surgiram várias propostas alternativas ao sistema financeiro usual para alavancar pequenas atividades locais. Uma das mais populares e eficazes é o microcrédito, que consiste em empréstimos de baixo valor destinados exclusivamente à produção: investimentos e capital de giro. Essa modalidade é um dos principais caminhos apontados para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU (mais sobre os ODM em Análise). Os bancos comunitários também ganharam espaço nos últimos anos. Já existem 80 deles no País, quase todos com metodologia do pioneiro Banco Palmas, de Fortaleza (mais em reportagem “A solução está aqui”).
De todos os elos importantes que ainda restam para uma articulação eficiente dos movimentos locais não se podem esquecer: os centros de ponta e incubadoras tecnológicas ligadas a instituições de ensino e pesquisa, que levam capacitação e ferramentas científicas importantes para a profissionalização dos microempreendedores; as empresas que efetivamente lançam um olhar responsável sobre as comunidades impactadas pelo negócio; e o poder público, que, além de suporte financeiro e logístico, contribui com a institucionalização de projetos exemplares.
O economista Sérgio Besserman, que atualmente preside a Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável e Governança Metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, identifica um pano de fundo sustentando toda essa articulação: o conhecimento. Em sua opinião, o século XXI oferece aos cidadãos participantes de processos locais, regionais ou globais a oportunidade de acessar conhecimento e de compartilhá-los a partir de seus interesses e suas visões de mundo. “A possibilidade de estarmos todos conectados tem uma força transformadora enorme, seja por meio de uma rede tangível, com atores locais, seja por meio de uma rede intangível, entre pessoas ao redor do planeta”, afirma o economista.