O programa Guerreiros Sem Armas mostra que empoderar uma comunidade para o desenvolvimento local exige dos formadores atuar como facilitadores, potencializando a troca de saberes
A garoa persistia sem dar tempo para as capas de chuva secarem. Por causa da lama do terreno, as galochas eram marrons e não mais pretas, como no começo do dia. Eram necessárias porque o campo de futebol estava alagado e o único indício de sua existência eram duas traves enferrujadas, sem rede e em posição assimétrica. O frio do fim de tarde de julho era cortante na comunidade Aldeia, no Guarujá, litoral paulista, e mesmo assim 20 pessoas de diversas idades, de dentro e de fora da comunidade, construíam passo a passo o parquinho para crianças.
Eles já tinham colocado paralelepípedos no chão, plantado mudas de palmeira, reformado os balanços velhos doados pela prefeitura do município e improvisado o escorregador, o gira-gira e os aparelhos de ginástica com pedaços de madeira. Era o terceiro dia de mutirão, uma etapa do Guerreiros Sem Armas (GSA), um programa do Instituto Elos. Durante esse mutirão, tanto os jovens que participam do curso quanto os moradores trabalham para construir ou reformar espaços em uma comunidade.
O curso capacita jovens entre 18 e 35 anos para atuar como empreendedores sociais, líderes empresariais ou gestores públicos. Esta é a sétima edição e conta com 59 participantes de 19 países diferentes, como Colômbia, Guiné-Bissau e Holanda. Todos voltarão para casa e terão experiência suficiente para investir em projetos e soluções para o chamado desenvolvimento local, seja em seus bairros, condomínios, seja em cidades.
Mais do que ensinar como fazer isso, o GSA centra-se em como os “guerreiros” – como são chamados – devem se aproximar da comunidade e engajá-la, para que os moradores sejam atores de mudança e manutenção do que é construído com os jovens. Isso é o que se chama “empoderamento”. Prova de que a Aldeia estava mesmo engajada era que, mesmo com toda a chuva e frio, crianças e adultos colocavam a mão na massa – ou melhor, na lama.
“EMPODIMENTO”
“Empoderar” deriva do inglês empowerment e significa dar às pessoas informação, liberdade e espaço para tomar decisões e agir. Para quem trabalha com desenvolvimento local, no entanto, é um processo mais complexo. Segundo Clarissa Magalhães, antropóloga, educadora e dona da empresa de gestão participativa em projetos socioambientais Buriti Gestão Educacional, o trabalho de formação e empoderamento de uma comunidade deve resultar em indivíduos que conheçam melhor a realidade local, tenham profunda capacidade de análise e habilidades para propor saídas eficientes para problemas – tudo isso, de preferência, atuando coletivamente.
Já o educador Tião Rocha usa outro termo, o “empodimento”. “É como se as pessoas falassem ‘quer dizer que nóis pode? Não sabia que nóis podia’. Esse momento em que elas descobrem sua potência e seu poder é o ponto fundamental da transformação de uma comunidade, porque reflete uma transformação de postura ética”, diz. (leia mais na entrevista)
Mas ninguém simplesmente “dá poder” ao outro. Para ser efetivo, o primeiro estalo deve acontecer no interior de cada indivíduo. O formador, que vem e vê de fora, deve ser apenas um facilitador, alguém que potencializa a troca de saberes. “Quem tem formação técnica e tradicional acaba cristalizando na mente que isso vem de cima para baixo, de mestre para aluno”, diz o coordenador do programa de fortalecimento institucional, Ailton Dias dos Santos, do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IIEB). Ele explica que a formação precisa ser valorizada de forma horizontal. “Uma organização que chega em uma comunidade tem de respeitar o grupo, a identidade e as crenças e, a partir daí, dialogar com as pessoas”, diz Santos.
Um elemento importante para que uma comunidade se empodere é a noção de pertencimento. Ninguém se engajará por um espaço que desconhece como seu. Em um País com tanta migração interna, como o Brasil, o sentimento de terra natal fica perdido e a população, desenraizada.
Uma saída é exatamente trabalhar a diversidade entre as pessoas. Santos conta que, nos trabalhos realizados pelo IIEB e comunidades da Amazônia, onde há gerações vindas de todos os cantos do Brasil e de origem indígena, observam-se diferentes níveis de identidade local. Ao unir uma comunidade em um só espaço para discutir os problemas comuns a todos que ali moram, grupos com um sentimento maior de pertencimento se sobressaem e acabam influenciando os outros, mostrando o valor da terra.
Valorizar habitantes, atributos do espaço e a cultura é tão importante para quem vive lá quanto para quem vem de fora. Quando se chega a uma comunidade, é preciso olhar o seu potencial, o lado cheio do copo, e o olhar do forasteiro influencia o olhar que os moradores passam a ter com a sua comunidade.
OLHOS VENDADOS
O primeiro passo do programa GSA é preparar os guerreiros para entrarem na comunidade, que espera os projetos de melhoria. As ações acontecem sempre em locais carentes e na periferia da Baixada Santista. Por isso, na primeira visita in loco, todos vão de olhos vendados. “É para quebrar o preconceito e acabar com a imagem preconcebida que carregamos sobre o que é uma favela. Com os olhos fechados, as pessoas percebem outros elementos, os cheiros, sons e a textura do chão”, diz Rodrigo Rubido Alonso, cofundador do Elos.
Ao abrir os olhos, os guerreiros são convidados a desenhar em um papel as belezas do espaço e entrar em contato com os moradores. Daí vem o momento crucial: perguntar aos moradores quais são os sonhos da comunidade.
“As pessoas estão tão acostumadas à abordagem do assistencialismo – de perguntar primeiro ‘quais são seus problemas?’ – que demoram para entender quando perguntamos sobre seus sonhos. Queremos ouvir o que deve ser construído, não o que eles querem destruir”, explica Alonso.
A pergunta complexa virou brincadeira em Aldeia. Pensando em quebrar o gelo do primeiro contato, os jovens do GSA montaram uma barraca na rua com sonhos de padaria. A ideia era trocar sonhos da comunidade por sonhos de comer. Uma das vontades que surgiram foi ter um parquinho para oferecer lazer para as muitas crianças da favela.
Outra atividade que os guerreiros promovem é um Show de Talentos. Todos os moradores são convidados a mostrar o que fazem de melhor. Vale cantar, dançar, contar história, cozinhar, fazer tricô etc. Isso revela a riqueza cultural e a diversidade às vezes escondida na timidez ou na falta de oportunidade. E, o mais importante, valoriza o que a comunidade tem. “Imagine o que significa para essas pessoas um monte de universitários e gente de outros países que chegam lá para ouvi-los e apreciá-los. É revolucionário para a autoestima”, afirma Alonso.
INFINITOS RETORNOS
A comunidade engajada que participa do mutirão de construção que o GSA organiza consegue articular-se para manter as melhorias e fazer ainda mais. Este, aliás, é um dos principais resultados das intervenções locais feitas pelos guerreiros. Até hoje, o GSA já formou 300 jovens de 36 países e impactou na vida de mais de 200 comunidades. Em 1999, na primeira edição do programa, em Santos, foi feita uma creche de palafitas – mesma estrutura das casas, afinal, o programa acredita que é preciso agir com os recursos e com a realidade local. Os moradores organizaram uma associação para cuidar da creche e o Sesc Santos apoiou a ação oferecendo as refeições. Anos depois, estavam já engajados e conseguiram recursos para a construção de outra creche, desta vez com o dobro do tamanho e toda feita de alvenaria.
Naquela tarde fria de julho, enquanto o parquinho em Aldeia era construído, a saída para fugir da chuva era se abrigar no quintal de dona Valquíria Peres de Moraes. Lá, a paulistana e moradora do Guarujá há 20 anos servia a todos pão com manteiga e um café fresquinho e doce. Tinha conhecido o programa do Instituto Elos dias antes e estava animada. “Dizem que uma andorinha só não faz verão, né? Isso aqui é um passinho inicial. Sem eles, ninguém aqui teria feito nada sozinho”, diz, e acrescenta que os moradores já tinham se reunido e concordaram em cuidar bem do que lhes foi entregue. Iriam, no mínimo, consertar o que quebrasse por uso, mas ficariam de olho para manter tudo em ordem.
“Nunca ninguém fez isso aqui. Nem prefeito nem vereador. Político só vem aqui em época de eleição. Traz presente, faz festa, e nunca mais volta. Esses tais ‘guerreiros’ vieram não sei de onde, mas são mesmo é uns anjos”, diz dona Valquíria.