Guia para formação de cooperativas de catadores apresenta metodologia que estimula o olhar humano e a troca de conhecimentos
Catadores de materiais são os operários que rodam as engrenagens da reciclagem no Brasil. O País é um dos únicos do mundo a operar esse sistema informal e complexo, em que milhares de trabalhadores (ninguém sabe exatamente quantos) coletam, em condições precárias, alguns tipos de resíduos recicláveis. Segundo um dos eixos da nova Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), por sua grande importância, eles deverão ser incorporados aos sistemas de reciclagem e logística reversa (leia mais na reportagem “Vale mais do que pesa”).
Neste passo, tanto empresas quanto prefeituras veem-se diante de um dilema aparentemente insolúvel: o que significa essa incorporação? O que é o “fortalecimento de cooperativas” determinado pelo novo marco legal? E a questão mais delicada do ponto de vista social: como promover isso sem seguir pelo padrão do assistencialismo, que pode minar a capacidade de autonomia de cooperativas de catadores?
Buscando contribuir para a solução desse impasse, o Instituto de Projetos e Pesquisas Socioambientais (Ipesa) lançou, com patrocínio da Natura e da Ambev Recicla, o livro Do Lixo à Cidadania – Guia para Formação de Cooperativas de Catadores de Materiais Recicláveis. A ideia surgiu após algumas experiências bem-sucedidas do Ipesa no desenvolvimento de cooperativas nas cidades de Barueri, Itapecerica da Serra, Alumínio e Ibiúna.
Do Lixo à Cidadania é uma compilação das boas práticas do Ipesa, definidas em diversas discussões. Segundo Júlio Ruffin Pinhel, organizador da publicação, o método está em constante construção. Durante evento de lançamento do livro, na semana passada, ele ressaltou a importância que a elaboração conjunta, a troca de conhecimentos e o aprimoramento constante têm para o próprio Ipesa.
A escutatória, a vivência e o diálogo são usados para quebrar o ciclo da dependência e assistencialismo. “Cada cooperativa é uma missão, então nossa função é ouvir”, afirma Luciana Lopes, coordenadora de projetos de Resíduos Sólidos do Ipesa. “Não é somente chegar e orientar. Nós trabalhamos com eles, colocamos a mão na esteira e, a partir da observação das experiências dos próprios catadores, organizamos em conjunto as metas e o plano de trabalho.”
Alexandre Rodrigues, um dos fundadores do Ipesa, afirma que a publicação tem compromisso com a disseminação do conhecimento. Tanto é que a sua íntegra está disponível on-line no site www.dolixoacidadania.org.br . Além disso, das 10 mil edições impressas, pelo menos cinco mil já têm endereço certo: cada prefeitura do País receberá um exemplar. Formadores de opinião e outros articuladores da questão de resíduos sólidos receberão o restante. Com isso, pretende-se multiplicar atores capacitados para lidar com cooperativas. “Existe espaço para muitos outros atores, então tudo o que puder ser transformado em material de consulta, de replicabilidade, é melhor”, afirma Alexandre.
Capacitação parece ser a palavra-chave do processo de incorporação. Por um lado, como coloca Roberto Rocha, presidente do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), cooperativados precisam aprender a lidar com as inovações do sistema nacional de reciclagem: “A velocidade das mudanças é muito grande, são muitas empresas novas, a formalização…Nós, como movimento, temos que entender o momento em que nós estamos, porque nossos negócios têm que ficar em pé”.
Por outro lado, as prefeituras e empresas engatinham na compreensão da lógica e do ritmo de trabalho das cooperativas. Para aparar essas arestas, há de ser promovida uma mudança cultural. Para Alexandre, o livro pode ser o começo de um novo olhar das prefeituras, que em geral têm poucos recursos humanos capacitados para implantar a PNRS: “Falta corpo técnico e diretrizes nas prefeituras, onde a solução empresarial sempre foi a mais usada, então a inclusão dos catadores rompe essa tendência”. Já a relação com as empresas envolve a busca pela convergência da relação temporal, respeitando as necessidades de cada setor. “As empresas estão inseridas no tempo mercadológico, elas têm que implantar a logística reversa e precisam de soluções imediatas. Enquanto isso, o trabalho com cooperativas envolve formação, tempo e empoderamento dos catadores”, explica Alexandre.
O conteúdo do livro é apresentado de forma leve e com leitura simples. O cartunista Luciano Irrthum desenvolveu HQs (imagem à direita) que ilustram o final de cada capítulo. O guia chama a atenção por não abordar somente os aprimoramentos técnicos que uma cooperativa pode promover, mas também a questão do desenvolvimento humano dos catadores e a promoção da autonomia.
As sugestões de conteúdo para oficinas de capacitação, por exemplo, trazem tópicos como educação, política, violência doméstica e planejamento familiar. Como Roberto, do MNCR, lembra, o desenvolvimento de cooperativas envolve cidadãos em situação de extrema vulnerabilidade e, por isso, merecem cuidado especial. “Quero enfatizar essa questão do lixo e da cidadania, porque tem muita vida envolvida aqui dentro. Não estamos falando só de gestão.”
Leia mais na edição sobre “Lixo Zero”:
Catadores precisam ser remunerados pelo serviço que prestam, em “Vale mais do que pesa“
Embalagem ainda são maior nó da logística reversa, em “Eterno Retorno“
Exemplos mostram que implantar o “lixo zero” é possível, em “Caminho só de ida?“
Reciclagem não é solução mágica para lixo, em “Tapete Mágico“