Maria do Socorro Silva, 69 anos, conhecida como Dona Coca, vive no assentamento de Serra Negra, criado em 1989 no município de Floresta, sertão pernambucano. Na casa onde mora, o banheiro e a cozinha estão com o uso limitado por falta d’água. O assentamento depende de carros-pipa para abastecer as recém-instaladas cisternas. Além de caros e incertos, não raro transportam água imprópria para o consumo humano.
Em meio à maior seca que Dona Coca diz ter visto, que já dura três anos, ela consegue manter uma pequena horta de coentro e alface. Quase todos os animais morreram, e o cenário é desolador. Ela conta que nem sempre foi assim: “Neste terreno, quando chove, tudo o que se planta dá de primeira qualidade: milho, feijão, algodão, melancia, abóbora… A gente sempre cresceu com essa fartura”.
A transposição do Rio São Francisco passará pelo assentamento de Serra Negra. A esperança de Dona Coca é de que, quando as obras estiverem prontas, tenha acesso à água do canal. Mas isso está longe de ser garantido, visto que o projeto da transposição não possui um plano claro de distribuição d’água para a população difusa do sertão, que vive em pequenos lugarejos, sítios, pés de serra e grotões. Segundo o Ministério de Integração Nacional, os canais serão cercados e monitorados. Isso deverá impedir o acesso. “Não é possível o canal passar fechado em um sertão tão seco como este”, diz Dona Coca, inconformada.
De Cabrobó (PE), um canal, de 25 metros de largura e 5 metros de profundidade seguirá por 402 quilômetros de distância para os rios Jaguaribe (CE), Apodi (RN) e Piranhas (PB). O segundo canal sairá da Represa de Itaparica, na divisa entre Petrolândia e Floresta (PE), e seguirá sertão adentro por 220 quilômetros até o Rio Paraíba (PB). Com o dobro do orçamento previsto, o que se vê na obra são trechos prontos seguidos de trechos sendo escavados e outros já finalizados, mas destruídos.
Nas duas tomadas d’água, a Vertical Green, empresa contratada pelo Exército, foi paga para reflorestar a área, mas nada foi recuperado. Em lugar de vegetação, há areia e pedras. O governo respondeu à reportagem que “essa é uma obra linear a ser implantada ao longo de vários quilômetros, passando por diversos tipos litológicos e os mais variados estágios de intemperismos”. Explicou que as paralisações se deveram a diferenças entre projetos, o que ocasionou a desistência de algumas empresas e a necessidade de um novo planejamento para evitar a total paralisação da obra.
O São Francisco é um rio mexido e remexido e suas comunidades impactadas e reimpactadas por grandes obras. Sete hidrelétricas e 30 barragens são responsáveis por deslocamentos forçados e pela destruição cultural de comunidades tradicionais e povos indígenas ao longo de décadas – segundo informações do dossiê organizado por entidades como Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Núcleo de Estudos em Comunidades e Povos Tradicionais e Ações Socioambientais e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
De uma dessas represas, a de Itaparica, construída em 1989 para produção de energia elétrica, sairá um dos eixos da transposição seguindo sertão adentro. Por debaixo das águas densas e esverdeadas da represa jazem cidades inteiras como as antigas Petrolândia e Itacuruba. Hoje é possível ver pelo baixo nível da água as ruínas brotando do espelho d’água, a torre de uma catedral e um cemitério de árvores. Cidades mortas.
Mortas também as águas, como bem definem pescadores artesanais. As águas não fluem. Aliás, fluem artificialmente ao ritmo da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), que as controla prioritariamente para a geração de energia elétrica, desconsiderando os ciclos de reprodução dos peixes.
Entre o fogo cruzado de opiniões sobre o impacto da transposição para o rio – de um lado especialistas afirmam que o São Francisco não suporta a retirada de água e, de outro, o governo federal diz que a água retirada é mínima – estão as comunidades que sentem na pele os riscos da obra. “O rio… Ele não suporta… Nossos velhos dizem que vai dar para ir para a Bahia a pé”, afirma Claudinha Truká, uma das lideranças do povo Truká, diretamente atingido pela transposição. As aldeias dos Truká ficam na Ilha da Assunção, Pernambuco, divisa com Bahia.
[:en]Maria do Socorro Silva, 69 anos, conhecida como Dona Coca, vive no assentamento de Serra Negra, criado em 1989 no município de Floresta, sertão pernambucano. Na casa onde mora, o banheiro e a cozinha estão com o uso limitado por falta d’água. O assentamento depende de carros-pipa para abastecer as recém-instaladas cisternas. Além de caros e incertos, não raro transportam água imprópria para o consumo humano.
Em meio à maior seca que Dona Coca diz ter visto, que já dura três anos, ela consegue manter uma pequena horta de coentro e alface. Quase todos os animais morreram, e o cenário é desolador. Ela conta que nem sempre foi assim: “Neste terreno, quando chove, tudo o que se planta dá de primeira qualidade: milho, feijão, algodão, melancia, abóbora… A gente sempre cresceu com essa fartura”.
A transposição do Rio São Francisco passará pelo assentamento de Serra Negra. A esperança de Dona Coca é de que, quando as obras estiverem prontas, tenha acesso à água do canal. Mas isso está longe de ser garantido, visto que o projeto da transposição não possui um plano claro de distribuição d’água para a população difusa do sertão, que vive em pequenos lugarejos, sítios, pés de serra e grotões. Segundo o Ministério de Integração Nacional, os canais serão cercados e monitorados. Isso deverá impedir o acesso. “Não é possível o canal passar fechado em um sertão tão seco como este”, diz Dona Coca, inconformada.
O horizonte sem fim das terras tomadas pela Caatinga no sertão atordoa qualquer pessoa acostumada com cidade grande, com o espaço delimitado pelos prédios e pelo cimento. É difícil entender a lógica dos traçados gigantes da obra de transposição, tão em descompasso com a simplicidade da vida sertaneja. Do Rio São Francisco saem dois pontos de captação, as chamadas tomadas d’água.
De Cabrobó (PE), um canal, de 25 metros de largura e 5 metros de profundidade seguirá por 402 quilômetros de distância para os rios Jaguaribe (CE), Apodi (RN) e Piranhas (PB). O segundo canal sairá da Represa de Itaparica, na divisa entre Petrolândia e Floresta (PE), e seguirá sertão adentro por 220 quilômetros até o Rio Paraíba (PB). Com o dobro do orçamento previsto, o que se vê na obra são trechos prontos seguidos de trechos sendo escavados e outros já finalizados, mas destruídos.
Nas duas tomadas d’água, a Vertical Green, empresa contratada pelo Exército, foi paga para reflorestar a área, mas nada foi recuperado. Em lugar de vegetação, há areia e pedras. O governo respondeu à reportagem que “essa é uma obra linear a ser implantada ao longo de vários quilômetros, passando por diversos tipos litológicos e os mais variados estágios de intemperismos”. Explicou que as paralisações se deveram a diferenças entre projetos, o que ocasionou a desistência de algumas empresas e a necessidade de um novo planejamento para evitar a total paralisação da obra.
O São Francisco é um rio mexido e remexido e suas comunidades impactadas e reimpactadas por grandes obras. Sete hidrelétricas e 30 barragens são responsáveis por deslocamentos forçados e pela destruição cultural de comunidades tradicionais e povos indígenas ao longo de décadas – segundo informações do dossiê organizado por entidades como Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Núcleo de Estudos em Comunidades e Povos Tradicionais e Ações Socioambientais e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
De uma dessas represas, a de Itaparica, construída em 1989 para produção de energia elétrica, sairá um dos eixos da transposição seguindo sertão adentro. Por debaixo das águas densas e esverdeadas da represa jazem cidades inteiras como as antigas Petrolândia e Itacuruba. Hoje é possível ver pelo baixo nível da água as ruínas brotando do espelho d’água, a torre de uma catedral e um cemitério de árvores. Cidades mortas.
Mortas também as águas, como bem definem pescadores artesanais. As águas não fluem. Aliás, fluem artificialmente ao ritmo da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), que as controla prioritariamente para a geração de energia elétrica, desconsiderando os ciclos de reprodução dos peixes.
Entre o fogo cruzado de opiniões sobre o impacto da transposição para o rio – de um lado especialistas afirmam que o São Francisco não suporta a retirada de água e, de outro, o governo federal diz que a água retirada é mínima – estão as comunidades que sentem na pele os riscos da obra. “O rio… Ele não suporta… Nossos velhos dizem que vai dar para ir para a Bahia a pé”, afirma Claudinha Truká, uma das lideranças do povo Truká, diretamente atingido pela transposição. As aldeias dos Truká ficam na Ilha da Assunção, Pernambuco, divisa com Bahia.