A adoção de um modelo europeu de cozinha, ainda que mesclado a produtos e técnicas nativos do Brasil, nos fez historicamente olhar mais para fora, para o “estrangeiro”, do que para a nossa produção local. Conhecemos melhor a maçã do que a mangaba, melhor a pera do que o caju. Uma criança de classe média brasileira reconhece mais o sabor (artificial) de morango do que o sabor de uma jabuticaba.
Embora a história da cozinha seja feita de permutas e empréstimos entre diferentes culturas, a valorização dos produtos locais é importante para a criação de uma identidade nacional.
Podemos analisar as nossas escolhas alimentares com base no triângulo proposto por Warren Belasco, em cujas vértices estão identidade, conveniência e responsabilidade. Ou seja, a cada refeição, a decisão, normalmente inconsciente, entre comer uma tapioca ou um hambúrguer passa por critérios como: “este alimento tem a ver com minha história e minhas raízes?”; “tenho tempo e dinheiro disponível para consumir e produzir este alimento?” e, finalmente, “este alimento faz bem para minha saúde, assim como para a saúde da sociedade e meio-ambiente?”
A indústria de alimentos vende conveniência, mais do que alimentos, explorando uma característica da dinâmica social contemporânea, com seus fluxos rápidos que valorizam mais a rapidez e os resultado do que os processos (quem quer ficar horas na cozinha fazendo massa de macarrão – ainda que esta seja uma atividade valorize o convívio familiar?).
Além de privilegiarem a conveniência, os produtos industrializados tendem a valorizar produtos com um perfil de sabor padronizado. Manteigas, queijos, azeites, biscoitos (para citar apenas alguns produtos) são produzidos numa lógica de escala industrial que privilegia a padronização e a previsibilidade, em detrimento da qualidade e diversidade do sabor.
Além disso, como fruto dessa mesma dinâmica social, a indústria assume o papel de educadora alimentar. Um comercial recente de uma marca de atum enlatado mostra uma mãe (a guardião tradicional da educação alimentar) agradecendo à sua própria mãe, à nutricionista e à indústria pela refeição que está na mesa.
A peça publicitária é emblemática ao revelar um processo que Fischler chama de “angústia alimentar moderna” – num mundo de tantas escolhas, o que devo comer? Essa angústia, que normalmente está ligada a busca de escolhas mais saudáveis, soma-se agora à preocupação das condições em que o alimento foi produzido, seja do ponto de vista social ou ambiental.
Na década de 1920 do século passado, livros de receitas publicados no Brasil começam a fazer uma divisão entre cozinha “rústica”, “de fazenda”, e cozinha “fina”, internacional. Sai de cena o Pernil Pururuca, entra o filé Pompadour. Substitui-se uma rica tradição de pudins pelo pudim feito com leite condensando industrializado, como mostra a pesquisadora Débora Oliveira.
Felizmente, nas últimas duas décadas, há um movimento positivo de valorização de alimentos nacionais, que inclui desde o surgimento de restaurantes brasileiros com expressão internacional até a criação de redes de pequenos produtores de alimentos artesanais e mudanças na legislação para permitir comercialização de produtos como queijos e meles nativos.
Esse movimento é muito importante porque reforça a identidade da cozinha nacional, desperta a busca por sabores genuínos e, mais importante de tudo, abre a discussão para um modelo alimentar mais variado e menos industrial, em que a conveniência não é o critério único para a escolha de um alimento.
* Sandro Marques é professor da pós-graduação em Cozinha Brasileira do SENAC