Trecho extraído do livro Alimentos orgânicos, ampliando os conceitos de saúde humana, ambiental e social (capítulo Indústria de transformação de alimentos, pags 107 a 110) de autoria de Elaine Azevedo, Editora Senac, 2012.
…Após a descoberta da radioatividade, em 1896, por Henri Becquerel, verificou-se, em laboratório, que as irradiações ionizantes afetavam os sistemas biológicos. Por meio delas, era possível exterminar organismos vivos e alterar a estrutura dos tecidos vivos. A partir de então, as radiações ionizantes passaram a ser empregadas pela medicina no tratamento de neoplasias. Na década de 1950, a Comissão de Energia Atômica e o Exército dos Estados Unidos financiaram pesquisas sobre o uso de radiações ionizantes na preservação dos alimentos. Em 1963, a FDA permitiu seu uso no trigo e derivados e no bacon.
No Brasil, desde 1975, pesquisas sobre víveres irradiados são realizadas sob auspícios da Comissão Nacional de Energia Nuclear. É importante ressaltar que o Ministério da Saúde já aprovou as normas e padrões para alimentos irradiados e que a legislação nacional não prevê rotulagem informativa para eles. Gradativamente, o leque de alimentos que poderiam ser irradiados foi aumentando, seguindo uma tendência internacional de liberalização para atender o mercado externo. Por fim, a resolução da Anvisa de 2001 liberou totalmente o uso da irradiação. Qualquer alimento pode ser irradiado no país e não há restrições quanto à dosagem. Entre os mais comumente irradiados estão a carne de vaca, porco e aves, nozes, batatas, trigo, farinha de trigo, frutas e verduras e variados tipos de ervas, chás e condimentos (Anvisa, 2001). No Brasil irradiam-se principalmente batatas, cebolas, peixes, trigo e farinhas, mamão-papaia, morango, arroz e carne de porco (Webb et al., 1987).
A radiação ionizante transforma um átomo estável em um átomo eletricamente carregado ou com desequilíbrio entre suas cargas, ou seja, um íon. Esse fenômeno possui grande intensidade de energia e pode causar alterações na matéria, dependendo da forma que a radiação for usada. As fontes utilizadas para irradiar alimentos são isótopos radioativos, como Césio 137, Cobalto 60, raios X ou elétrons aceleradores lineares. Apesar de os especialistas afirmarem não ser sua intenção a utilização de radiações com alta energia (como a dos nêutrons, que tornariam os alimentos radioativos), é fundamental uma análise crítica em relação ao seu uso, pois até o momento não existem estudos suficientes que garantam sua inocuidade em seres humanos. E isso, por si só, é suficiente para avaliação da relação risco/benefício (Webb et al., 1987).
O processo de irradiação expõe o alimento a uma carga de irradiação equivalente à necessária para realizar cerca de 30 a 150 milhões de radiografias de tórax. Os níveis de radiação envolvidos compreendem uma faixa entre 5 mil e 4 milhões de rádios (medida-padrão para mensurar a radiação absorvida). Para se ter uma ideia dessa radiação, os aparelhos de raios X emitem menos que um rádio por sessão.
As radiações ionizantes são utilizadas para esterilização, pasteurização, desinfestação e inibição da germinação. Os vegetais irradiados não brotam. A irradiação destrói tecidos vivos, e seu uso é proibido em alimentos orgânicos em qualquer fase da sua produção, armazenamento, transporte e processamento. Essa proibição está explicitada nas normativas brasileira e internacional de controle de produção orgânica. A irradiação é também conhecida como pasteurização fria. É muito mais cara que os procedimentos térmicos de pasteurização e apresenta resultantes semelhantes, quando se considera a necessidade de higienização correta durante toda a cadeia de produção alimentar.
Isso já foi comprovado nos Estados Unidos a partir de uma ocorrência de contaminação por bactéria Escherichia coli de carnes previamente irradiadas. Se o controle da higienização não for contínuo até sua comercialização e preparo, os alimentos irradiados podem ser novamente contaminados. A indústria poderia utilizar métodos mais baratos e convencionais de eliminação dos patógenos, como controle da higiene pessoal de manipuladores de alimentos, produtos de limpeza, água quente e vapor a vácuo. A pasteurização no vapor elimina a Escherichia coli e é uma prática utilizada em muitos locais de embalagem de carnes (La Forge, 2001).
Salienta-se também que o valor nutricional do alimento é afetado variavelmente de acordo com a dosagem. A irradiação destrói vitaminas – até 90% da vitamina A na carne de frango, 86% da vitamina B em aveia e 70% da vitamina C em suco de frutas. À medida que o tempo de estocagem aumenta, outros nutrientes são perdidos: proteínas são desnaturadas, as vitaminas A, B12, C, E e K sofrem alterações semelhantes às do processo térmico, gorduras tendem a rancificação pela destruição dos antioxidantes e ocorre a modificação das características organolépticas. Além disso, a irradiação cria novas substâncias químicas em carnes, conhecidas como produtos radiolíticos – benzeno, etanol, hexano, metiletilcetona e tolueno – de ação carcinogênica (Colby, 2000; Kesavan & Swaminathan, 1971; Kilcast, 1994, e Webb et al., 1987).
A tecnologia da irradiação reverbera dentro das diretrizes do sistema agroalimentar moderno, pois estimula a monocultura e o cultivo de espécies que ameaçam a biodiversidade. Ela sacrifica a sustentabilidade ecológica, ao encorajar a produção maciça, aumentando a dependência em relação à maior utilização de agrotóxicos. Além disso, teme-se que os resíduos radioativos das instalações das empresas de irradiação, transportados por grandes distâncias, possam causar acidentes que danificariam ecossistemas locais e ameaçariam a saúde pública. A irradiação encoraja o transporte dispendioso de alimentos que, quando cultivados e consumidos localmente, não precisam de irradiação. A adoção maciça desse recurso limita o direito das pessoas de escolherem onde e como os seus alimentos serão produzidos. Um sistema democrático e que concede poder aos cidadãos para fazerem suas escolhas sensatas não precisa de irradiação. Ela abre caminho para as corporações multinacionais, à custa de pequenos produtores que, igualmente, não precisam de irradiação. Essa prática é uma solução muito cara para o problema da segurança sanitária, atuando nos sintomas em detrimento das causas. Alimentos que são produzidos de forma sustentável não precisam de irradiação.
Apesar dessa discussão, um relatório de 2000 da FDA não associa a irradiação a riscos alimentares, apesar de ressaltar que tal resultado não é aceito por diferentes grupos de consumidores em campanhas alavancadas por instituições como a norte-americana Cidadão Público (Public Citizen), e Campanha contra Irradiação de Alimentos Europeia (The European Food Irradiation Campaing). Existe um projeto em trâmite na FDA para a utilização da expressão pasteurizado na descrição de alimentos irradiados, como parte de uma estratégia de facilitar as regras de rotulagem para tais produtos. Essa mudança negaria aos consumidores informações claras sobre esse processamento e sobre as doses de irradiação, confundindo-os e beneficiando somente a indústria de alimentos e empresas de irradiação.
Ressalta-se que o Brasil tem a legislação mais liberal do mundo em relação a esse processamento.