Afastado do eixo São Paulo-Rio e à margem da capital mato-grossense, um importante tributário do Pantanal recebe esgoto de grandes cidades. O descaso com o Rio Cuiabá impacta pessoas e uma bacia inteira
“Quase não há mais pescadores e a maioria dos jovens foi embora em busca de outras profissões”, conta Alice Almeida, 67 anos, presidente da associação dos moradores de São Gonçalo Beira Rio, na periferia da capital mato-grossense. O bairro margeia o Rio Cuiabá, que segue sinuoso até o Pantanal. Com águas escuras e barrosas, esse importante tributário do Pantanal chega ao bairro depois de atravessar as cidades de Várzea Grande e Cuiabá, que despejam no rio 78% do esgoto produzido por quase 900 mil habitantes. Rio federal, o Cuiabá é o mais importante afluente do Paraguai, principal rio da Bacia do Alto Paraguai. Mas a poluição lançada pelas cidades parece ser ignorada pelos governos, a sociedade civil e o restante do País.
Além do mau cheiro e da poluição, as águas do Cuiabá levam e trazem ao São Gonçalo ilhas flutuantes de garrafas plásticas, embalagens pet, latas, pneus velhos e todo tipo de lixo. “Quando tem mutirão, retiram até geladeira lá do fundo”, diz dona Alice, enquanto mira o rio da varanda de sua casa. “Quando era criança, o Cuiabá era tão limpo que dava até para ver os peixes no fundo. A criançada já nascia nadando”, relembra, com um sorriso. “Hoje, os meus netos nem entram nessa água. A poluição foi o preço do progresso”, conta.
Apesar do cenário pouco animador, a comunidade é um exemplo de resiliência. No fim da década de 1990, quando a poluição e o aumento populacional desencadearam um processo de abandono do rio como fonte de sobrevivência, os ribeirinhos enfrentaram um período de desesperança. “O Estado sofreu um massacre cultural. Desde 1970, a população triplicou com os migrantes vindos do Sul. Essas pessoas, além de contribuírem com a degradação do Rio Cuiabá, ocupando a região das nascentes com a produção de soja e algodão, também impuseram a sua cultura”, explica Maria Saletti Ferraz Dias, pesquisadora e professora de Educação Ambiental da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
O combustível de sobrevivência foi a ligação cultural com o rio. Em São Gonçalo Beira Rio, por exemplo, a venda de artesanato de cerâmica e a beleza cênica da região foram o caminho para os moradores encontrarem no turismo outra fonte de renda. As lojas de artesanato tradicional e as festas típicas, como a de São Pedro dos Pescadores, atraíram as peixarias da cidade para o bairro. Hoje, mais de dez restaurantes lotam as margens do rio Cuiabá, apesar de grande parte ser abastecida com os chamados peixes de tanque[1]. “Eles empregam todo mundo. Inclusive, jovens voltaram ao bairro para trabalhar ali”, diz dona Alice.
[1]Como é conhecido o pescado produzido na piscicultura
Apesar da nova forma de sustento, o fantasma da poluição ainda angustia os moradores. “Se a poluição no rio aumentar, ninguém mais vai querer vir aqui”, conclui o ex-pescador Basílio da Conceição, de 84 anos, enquanto caminha entre um monte de garrafas de plástico. Conceição mira as águas do Cuiabá que correm a poucos metros dali e desabafa: “Eu agradeço por meus filhos não terem virado pescadores. A vida do rio é muito sofrida. Não sei como tem gente que ainda insiste com o rio sujo desse jeito”.
O aposentado explica que vive da renda de casas de aluguel que mantém em São Gonçalo.“Ainda peguei a fase de abundância, quando mesmo dentro da cidade tinha tanto peixe que o pacu eu pegava com a mão. A lufada[2] dava para assistir lá da ponte principal do porto. Era tanto lambari que fazíamos azeite com os que caíam na canoa. Hoje, acho difícil limparem o rio, essa época do pescado farto é passado.”
[2]Lufada ou piracema é o período de quatro meses quando a pesca é proibida nos rios do Pantanal, visto que nessa época os peixes sobem os rios para a reprodução
As promessas de despoluição são consideradas uma verdadeira saga. O esgoto que cai in natura nos córregos que formam o Rio Cuiabá já foi pauta de debates em três momentos distintos nos últimos 20 anos. A primeira proposta de mudança ocorreu na década de 1990, quando o então governador Dante de Oliveira conseguiu um investimento de US$ 400 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento, batizado de BID-Pantanal. Construir uma rede de tratamento de esgoto nas cidades de Cuiabá e Várzea Grande para reduzir a carga de poluentes despejada no Pantanal era uma das exigências do empréstimo voltado para o desenvolvimento local.
“Em 2003, o recurso foi devolvido pelo novo governador, o empresário do agronegócio Blairo Maggi, que considerou o investimento não prioritário e disse que poderia conseguir outras verbas para a limpeza do rio”, conta Eliana Rondon, professora de engenharia sanitária e ambiental da UFMT.
Em seguida, com o lançamento do Programa de Aceleramento de Crescimento (PAC)[3], anunciou-se uma nova verba para a limpeza do Rio Cuiabá, mas, passados os anos, a promessa foi esquecida e o investimento, nunca liberado.
[3]O PAC é um dos principais programas do governo federal, iniciado na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), e continuado na de Dilma Rousseff (2011-2014), voltado para a construção de grandes obras de infraestrutura a fim de promover o crescimento econômico
Em 2010, Cuiabá foi escolhida para ser uma das 12 capitais a sediar os jogos da Copa 2014. “Foi a terceira chance de despoluição. Na cartilha da Fifa, constava que todas cidades-sede teriam programas de saneamento, mas o tema foi novamente tirado da pauta de discussões, desta vez em prol de obras de mobilidade urbana e embelezamento da cidade”, afirma Eliana, da UFMT.
Esquecida pelos governos estadual e federal, a poluição das águas do Cuiabá alimenta outra grave questão urbana. O rio responde sozinho por cerca de 98% do abastecimento da capital e de Várzea Grande. Sem recursos hídricos alternativos, a crescente poluição pode levar o sistema ao colapso.
O descontrole na gestão de águas e esgoto é outro obstáculo. Desde 1998, a companhia estadual responsável pela concessão de águas e esgoto foi municipalizada, ou seja, o serviço acabou descentralizado e entregue às prefeituras. Na capital, uma companhia municipal administrou os recursos hídricos até 2013, quando foi privatizada. O contrato com a nova concessionária, a Companhias de Águas do Brasil (CAB), prevê que 80% do esgoto da cidade terá de ser tratado em oito anos. Até lá, o rio e as comunidades às suas margens continuarão convivendo com a poluição e aguardando que, desta vez, os planos saiam do papel.