As quatro décadas da Declaração de Cocoyoc deveriam aprofundar a reflexão sobre o que impede uma efetiva fusão entre as governanças do desenvolvimento e da conservação
Até fins dos anos 1960, pareceu às dezenas de Estados que tentavam cooperar nos sistemas ONU e Bretton Woods que o processo de desenvolvimento só derrapava em países nos quais o crescimento econômico não reduzia – e até aumentava – calamidades como o analfabetismo, a fome ou subnutrição, certas doenças etc. Foi só a partir da virada para a década de 1970 que a degradação ambiental e a pressão sobre os recursos naturais também começaram a ser admitidas como problema. E com muita relutância, principalmente no então chamado “Terceiro Mundo”, desconfiado de que dar importância a problemas como poluição, erosão, sobrepesca não passaria de manobra do “Primeiro Mundo” para dar novo fôlego a uma ordem que não propiciava à maioria das nações os meios necessários ao seu desenvolvimento.
Na prática, depois até se ampliou a imprudência de não se levar a sério os impactos ambientais, como está patente nas rocambolescas negociações do regime climático. Mas não é menos verdade que uma tendência inversa ocorreu nos meios intelectual, empresarial e jurídico, quase na contramão da que dominou as burocracias governamentais, com destaque para as áreas econômico-financeira e diplomática.
CENTENÁRIO DE BARBARA WARD
O ponto de mutação político deu-se em 1972, com a complicada realização da Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, que só foi viabilizada pelas recomendações do “Grupo de Peritos em Desenvolvimento e Meio Ambiente”, reunido em Founex (Suíça), graças à feliz iniciativa do secretário-geral Maurice Strong em apoiar-se na influência intelectual de uma economista e jornalista britânica que mereceria ser mais lembrada, especialmente agora, no centenário de seu nascimento: Barbara Ward (maio 1914 – maio 1981). Porém, o crucial ponto de mutação cognitivo só viria a ocorrer dois anos depois de Estocolmo, em evento de outubro de 1974, também liderado por Barbara (depois baronesa Jackson de Lodsworth), mas desta feita organizado pelo recém-nascido Pnuma em parceria com a pré-adolescente Unctad: o Simpósio de Cocoyoc (México).
A declaração ali aprovada enfureceu o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, porque seus 45 parágrafos fundamentavam o que timidamente começava a ser chamado de “ecodesenvolvimento”, e que meia década depois estaria no foco da “Estratégia Mundial de Conservação” do trio IUCN-Pnuma-WWF, lançada em 1980 com outro neologismo: o “desenvolvimento sustentável”.
É por isso que os 40 anos da Declaração de Cocoyoc deveriam ser motivo para um aprofundamento da reflexão sobre o que impede uma efetiva fusão entre as governanças do desenvolvimento e da sustentabilidade. Isto é, sobre quais são, na linguagem daquela época, os obstáculos ao surgimento de um sistema que lide simultaneamente com os “limites internos” (as necessidades básicas da toda a população mundial) e com os “limites externos” (dos recursos e do ambiente planetários). Segundo a declaração, isso exigiria mudanças na condução da política econômica na dupla direção do desenvolvimento e da conservação, componentes essenciais do novo sistema.
Logo a seguir, ao tratar do “propósito do desenvolvimento”, a declaração esclarece que ele não se reduz às “necessidades básicas”. Apesar de constituírem a preocupação fundamental, há outras necessidades, outros objetivos e outros valores. Não há desenvolvimento sem expansão das liberdades e dos direitos. É profunda a necessidade de participar da construção de sua própria existência, assim como de dar alguma contribuição à concepção do futuro do mundo, ressalta o documento. Que em seu epílogo reconhece a existência de sérios empecilhos ao ecodesenvolvimento, para logo depois enfatizar a percepção de que, por trás das raivosas divisões e confrontos daquela conjuntura, já estaria crescendo um novo e sentido de respeito casado aos direitos humanos e à preservação da biosfera.
Claro, toda declaração formal que se preze precisa de um fecho otimista. Nesse caso, contudo, ela até foi bem realista. Não há dúvida de que nesses 40 anos só cresceu esse tal de “novo sentido”. Porém, não o suficiente para engendrar as mais adequadas mudanças nas políticas nacionais e na cooperação internacional. Nesses dois campos, foram 40 anos de evasivas.
*Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de A desgovernança mundial da sustentabilidade (Ed. 34: 2013) – www.zeeli.pro.br[:en]As quatro décadas da Declaração de Cocoyoc deveriam aprofundar a reflexão sobre o que impede uma efetiva fusão entre as governanças do desenvolvimento e da conservação
Até fins dos anos 1960, pareceu às dezenas de Estados que tentavam cooperar nos sistemas ONU e Bretton Woods que o processo de desenvolvimento só derrapava em países nos quais o crescimento econômico não reduzia – e até aumentava – calamidades como o analfabetismo, a fome ou subnutrição, certas doenças etc. Foi só a partir da virada para a década de 1970 que a degradação ambiental e a pressão sobre os recursos naturais também começaram a ser admitidas como problema. E com muita relutância, principalmente no então chamado “Terceiro Mundo”, desconfiado de que dar importância a problemas como poluição, erosão, sobrepesca não passaria de manobra do “Primeiro Mundo” para dar novo fôlego a uma ordem que não propiciava à maioria das nações os meios necessários ao seu desenvolvimento.
Na prática, depois até se ampliou a imprudência de não se levar a sério os impactos ambientais, como está patente nas rocambolescas negociações do regime climático. Mas não é menos verdade que uma tendência inversa ocorreu nos meios intelectual, empresarial e jurídico, quase na contramão da que dominou as burocracias governamentais, com destaque para as áreas econômico-financeira e diplomática.
CENTENÁRIO DE BARBARA WARD
O ponto de mutação político deu-se em 1972, com a complicada realização da Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, que só foi viabilizada pelas recomendações do “Grupo de Peritos em Desenvolvimento e Meio Ambiente”, reunido em Founex (Suíça), graças à feliz iniciativa do secretário-geral Maurice Strong em apoiar-se na influência intelectual de uma economista e jornalista britânica que mereceria ser mais lembrada, especialmente agora, no centenário de seu nascimento: Barbara Ward (maio 1914 – maio 1981). Porém, o crucial ponto de mutação cognitivo só viria a ocorrer dois anos depois de Estocolmo, em evento de outubro de 1974, também liderado por Barbara (depois baronesa Jackson de Lodsworth), mas desta feita organizado pelo recém-nascido Pnuma em parceria com a pré-adolescente Unctad: o Simpósio de Cocoyoc (México).
A declaração ali aprovada enfureceu o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, porque seus 45 parágrafos fundamentavam o que timidamente começava a ser chamado de “ecodesenvolvimento”, e que meia década depois estaria no foco da “Estratégia Mundial de Conservação” do trio IUCN-Pnuma-WWF, lançada em 1980 com outro neologismo: o “desenvolvimento sustentável”.
É por isso que os 40 anos da Declaração de Cocoyoc deveriam ser motivo para um aprofundamento da reflexão sobre o que impede uma efetiva fusão entre as governanças do desenvolvimento e da sustentabilidade. Isto é, sobre quais são, na linguagem daquela época, os obstáculos ao surgimento de um sistema que lide simultaneamente com os “limites internos” (as necessidades básicas da toda a população mundial) e com os “limites externos” (dos recursos e do ambiente planetários). Segundo a declaração, isso exigiria mudanças na condução da política econômica na dupla direção do desenvolvimento e da conservação, componentes essenciais do novo sistema.
Logo a seguir, ao tratar do “propósito do desenvolvimento”, a declaração esclarece que ele não se reduz às “necessidades básicas”. Apesar de constituírem a preocupação fundamental, há outras necessidades, outros objetivos e outros valores. Não há desenvolvimento sem expansão das liberdades e dos direitos. É profunda a necessidade de participar da construção de sua própria existência, assim como de dar alguma contribuição à concepção do futuro do mundo, ressalta o documento. Que em seu epílogo reconhece a existência de sérios empecilhos ao ecodesenvolvimento, para logo depois enfatizar a percepção de que, por trás das raivosas divisões e confrontos daquela conjuntura, já estaria crescendo um novo e sentido de respeito casado aos direitos humanos e à preservação da biosfera.
Claro, toda declaração formal que se preze precisa de um fecho otimista. Nesse caso, contudo, ela até foi bem realista. Não há dúvida de que nesses 40 anos só cresceu esse tal de “novo sentido”. Porém, não o suficiente para engendrar as mais adequadas mudanças nas políticas nacionais e na cooperação internacional. Nesses dois campos, foram 40 anos de evasivas.
*Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de A desgovernança mundial da sustentabilidade (Ed. 34: 2013) – www.zeeli.pro.br