Que evento prende mais sua atenção, Copa do Mundo ou eleições? Em enquete informal, a Copa ganha. Curiosidade à parte, há um conceito que aproxima os dois acontecimentos: participação social. Entendida como o direito do cidadão influenciar as decisões de um governo, cada vez mais a sociedade exige participação direta nos assuntos do Estado enquanto as decisões impostas pelos governantes passam a não ser aceitas com a legitimidade de antes.
Sob o prisma da democracia brasileira, retrocessos permeiam os avanços e muitos desafios ainda nos aguardam. Ilustra esta assertiva a criação de ferramentas participativas, impulsionadas pela redemocratização em 1988 e a insuficiência destes mecanismos em lidar com questões contemporâneas, não atendendo aos anseios da população. De tal modo, torna-se imperioso uma nova postura estatal de promoção de diálogos e escuta do povo. É este um dos mais intensos recados vindos das manifestações e o sinal enviado aos candidatos. A sociedade clama por mudança e aponta a necessidade de a administração pública se reinventar e de fato estabelecer uma governança social, pela qual agentes públicos e privados trabalhem juntos na formulação, execução, monitoramento e avaliação de projetos públicos.
A presença de pessoas nas ruas protestando por reformas revela o incontido desejo da sociedade de aprimorar seu desenvolvimento político. Grosso modo, pode-se dizer que determinado país é desenvolvido politicamente quanto mais atores efetivamente participem da organização da vida social. Esta é a vontade do cidadão, que quer ir além dos instrumentos institucionalizados de participação, como conferências, audiências, conselhos de políticas públicas e orçamento participativo. Tomemos emprestado o exemplo dos conselhos. Há uma proliferação desta instância no país: mais de 28 mil conselhos municipais e conselheiros representantes da sociedade civil perfazem número três vezes maior que o de vereadores eleitos. Contudo, pesquisas evidenciam a baixa influência deste espaço institucional no processo de definição das políticas enquanto os conselheiros governamentais costumam avaliar negativamente a legitimidade, representatividade e qualificação dos conselhos.
No bojo da discussão encontra-se o decreto nº 8.243, que institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS). Insta dizer que os reflexos da publicação do decreto são, no mínimo, curiosos. Os indivíduos tomam conhecimento da existência de espaços de participação. Abre-se brecha para a compreensão de que os mecanismos são vários e podem assumir funções: consultiva – quando o poder público escuta a sociedade e toma a decisão; normativa – quando se trata da regulação de políticas públicas; fiscalizadora – quando as pessoas monitoram as contas e a qualidade dos serviços prestados; deliberativa – quando há discussão e tomada de decisão compartilhada. Percebe-se assim que o exercício da participação social não suprime a democracia representativa e não fere a Constituição da República. Ao contrário, amplia o controle dos eleitos propiciando interface de contato entre o povo e a camada dirigente, que deve funcionar sempre como sendo o reflexo do próprio povo.
Deste ponto em diante, passemos do discurso para a prática… É sabido que vai certa distância entre um e outro. Por exemplo, o governo federal propugna a importância da co-gestão da coisa pública, exercida em parceria entre os setores da sociedade. Porém, em questões importantes que afetam a vida de milhares de brasileiros, os próprios brasileiros não são convidados a participar. Os casos vão desde a construção de usinas até os assuntos suscitados nas manifestações, de maneira que não dá para aceitar, sem crítica, a PNPS. O governo se omite de conflitos públicos, impõe sua decisão a qualquer custo e depois prega participação. Ora, a utopia da participação é o discurso e a omissão estatal se torna a realidade.
Em termos práticos vale sublinhar percepção relacionada à participação e ao desejo popular: as pessoas reclamam espaço para influenciar as decisões que as afetam quando vivenciam um conflito. Esta é a realidade. Quando os objetivos do indivíduo e do poder público são incompatíveis, então o governo deve ouvir a sociedade. É neste momento que a participação social espontânea se dá, é nesta ocasião que o ente público deve estar preparado para aplicar métodos e lidar com os múltiplos interesses. Porém, isto não ocorre na arena da participação social. Falta a possibilidade de participação direta do particular quando ele se sente ameaçado por uma decisão de fora, de longe; quando ele sente necessidade de falar e ser escutado, quando a insegurança jurídica advinda das prerrogativas do poder público pesa sobre pequenas coletividades, quando a regra do jogo é alterada. Posto isto, tem-se delimitado o problema: falta-nos maturidade e competência para implementar processos participativos legítimos e confiáveis, que mantenham a preponderância do voto como principal instrumento democrático, mas que permitam interação entre os governantes e o povo. Este passo precisa ser dado, mas vem sendo omitido das discussões.
Assim é que a promoção da participação social, para além dos mecanismos formais, requer mais do que discurso; necessita de competência, criatividade e método. Conclui-se serem inevitáveis arranjos inovadores para organizar a interação entre a sociedade e o Estado. Mas o que seria? Quando o poder público decide, como o império fazia antigamente, construir um estádio de futebol no terreno onde gerações de uma mesma família vivem desde tempos imemoriais e o próprio governo rejeita a possibilidade de escutar, conversar, entender as necessidades e interesses desta família, neste caso, perde-se preciosa oportunidade de participação. No caso, a família teria inegável ânimo de interatuar com o governo para compreender as razões públicas, para argumentar, defender e fazer sua vontade respeitada. Mas isto não acontece. Os Comitês Populares dos Atingidos pela Copa se manifestam não por outra razão. Eles colocam obstáculos a atuação governamental, causam prejuízos ao erário e a decisão advinda do gabinete se mostra ilegítima, ineficiente e gera ainda mais desconfiança.
A indiferença do ente público para com o indivíduo é um grande disparador de conflitos. Se a instituição pública administrasse estas ocasiões, dando vez ao diálogo estruturado, haveria desmesurada evolução no desenvolvimento político. Nesta linha de raciocínio nunca é demais evocar os ensinamentos de William Ury, que diz ser o fato de escutar o outro a concessão mais barata a ser feita em uma negociação, pois todos sentem uma profunda necessidade de ser entendidos e os políticos não podem ganhar sozinhos, apenas junto do povo.
Com o propósito de agregar nova perspectiva ao debate e contribuir com os desafios remanescentes, destaca-se a mediação de conflitos. Tal método de resolução consensual de controvérsia pode ser aplicado a impasses envolvendo entes públicos e coletividades, como no exemplo da construção do estádio. A mediação é utilizada em diversos países, seja pelo governo, empresas e indivíduos, seja na relação entre estes atores, e consiste em um procedimento estruturado de diálogo para que as pessoas possam compreender as necessidades recíprocas, tomar decisões conscientes e resolver a questão. Ao se tratar de conflito público, muitos atores são envolvidos. Nestes episódios, o procedimento promove consenso e se mostra adequado para lidar com a enorme quantidade de partes – todos os interessados na questão devem ter direito a participar e com a complexidade das circunstâncias – inúmeros procedimentos burocráticos envolvidos, distintos interesses e pontos de vista, diferentes níveis de conhecimento e emaranhando de normas afins. Vale ressaltar que o poder de decisão em questões públicas geralmente recai no governo e, deste modo, não raro, a mediação de conflitos envolvendo entes públicos serve de subsídio para a tomada de decisão governamental e cumpre o papel de fazer os governantes melhor compreenderem o caso, ao mesmo tempo em que possibilita a escuta, participação e engajamento das pessoas na construção da solução, tornando-a mais legítima, eficiente e melhorando a confiança da comunidade no governo.
Não resta dúvida de que a introdução da mediação no âmbito da administração pública consiste em avanço na direção de políticas de participação condizentes com os tempos atuais. Lawrence Susskind, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), reforça o argumento ao lembrar que o debate torna a decisão mais estável e que as políticas públicas servem de ambiente ideal para a utilização de meios consensuais de resolução de controvérsias, como a mediação, pois no cenário onde o poder político e as normas legais têm ênfase e onde a experiência demonstra que a solução vertical deixa de ser cumprida por não contemplar interesses e valores de todos os envolvidos, a horizontalidade da mediação permite o manejo adequado dos impasses e vai ao encontro da necessidade de composição das diferenças.
Enfim, a mediação de conflitos pode se tornar instrumento útil nesta época que reclama maior permeabilidade de governos não acostumados a dialogar. Um possível caminho a ser explorado consiste na disponibilização pelo poder público de estruturas dialógicas e instrumentos consensuais de solução de disputas quando estas emergirem.
* Ronan Ramos Jr. é advogado pela Faculdade de Direito Milton Campos (MG) e mediador de conflitos pelo Institut Universitaire Kurt Bösh (Suíça/Argentina) e Harvard Law School (EUA). Atuou como mediador comunitário e consultor em mediação. Atualmente é assessor de articulação, parceria e participação social na Secretaria-Geral da Governadoria do Estado de Minas Gerais.