Lideranças indígenas engajam-se em projeto de restauração florestal que pretende atingir toda a cadeia produtiva e reverter os estragos causados pela exploração ilegal
Na primeira – e única – baforada, o mundo “girou”. A tontura foi como uma roleta que roda várias vezes até parar no número da sorte grande – sim, a sorte de vivenciar com os nativos um momento de transformações da realidade local. O “cachimbo da paz”, abastecido com capim de aruanda, folha de jurema e resina de amesca, integrava um ritual fechado entre os índios pataxós para proteção contra maus espíritos. Mas a aromática fumaça sagrada tornou-se “produto turístico” e dissipou-se quando as portas das aldeias foram abertas ao assédio dos forasteiros na região de Porto Seguro, litoral sul da Bahia.
Já faz algum tempo, a tradição das rezas, danças e pinturas do corpo virou meio de sustento. Hoje, o dilema de associar a cultura indígena ao consumo do “homem branco” recai sobre novas frentes, com destaque para a exploração florestal. Em especial o corte de árvores da Mata Atlântica, já castigada ao extremo naquele trecho do litoral onde Pedro Álvares Cabral “descobriu” o Brasil.
Não faltam motivos para a nossa viagem “Brasil adentro”, nesta nova coluna de PÁGINA22, começar pela terra dos pataxós no entorno do Monte Pascoal e, de lá, seguir pelos quatro cantos do País, na rota de diferentes paisagens, realidades e histórias de vida, percorrida em 30 anos de trabalho jornalístico, na linha do desenvolvimento local.
Neste ponto de largada na Bahia, o cenário mistura floresta, sol, mar, diversão, patrimônio histórico, conhecimento tradicional e também impactos socioambientais – um mosaico que este ano ficou mais conhecido dos brasileiros, por conta da seleção de futebol da Alemanha, que lá se hospedou, adotou a estratégia de interagir com a comunidade e se tornou campeã do mundo.
Jornais e canais de televisão de todo o planeta, no entanto, não mostraram tudo. Na margem das estradas, banquinhas que vendem gamelas e outros objetos de decoração feitos com madeira de lei dão pistas sobre o que acontece na Mata Atlântica por trás daquelas montanhas à beira-mar: desmatamento.
Estima-se que pelo menos 6 mil árvores nativas são derrubadas por ano para essa finalidade, envolvendo cerca de 300 artesãos. Os índios recebem um décimo do preço final de venda aos turistas e são compelidos a derrubar mais para aumentar a renda. Como uma nova árvore demora 20 ou 30 anos para crescer, a floresta chegou à exaustão, com a necessidade de ir cada vez mais longe para cortar a madeira.
Nessas condições, provavelmente o recurso faltará para o sustento do povo indígena no futuro. E ainda existe a ameaça dos incêndios florestais, causados por queimadas nas roças, sem falar da criação de gado, que implica mais derrubada de árvores para abrir pastagem e fazer estacas para cercas.
Com um agravante: tudo ocorre dentro de uma Unidade de Conservação de proteção integral: o Parque Nacional do Monte Pascoal, sobreposto à reserva dos pataxós. A solução para mudar o quadro, proposta por uma ONG local, a Natureza Bela, e abraçada pelas lideranças indígenas, foi fazer a restauração florestal com plantio de mudas nativas, iniciada há três anos em 220 hectares nas aldeias Boca da Mata e Meio da Mata. A iniciativa recebe apoio do BNDES, com recursos de R$ 3 milhões, destinados a serviços como capacitação dos índios por especialistas da Universidade de São Paulo e instalação de viveiros.
Para formalizar a produção e as vendas, as comunidades montaram uma cooperativa que mistura “replantio” e “pajé” no nome – Cooplanjé –, hoje com 102 integrantes, esperançosos de daqui a alguns anos só tirar madeira das árvores que plantaram, como da espécie Acacia mangium, de origem australiana e de bom rendimento para o artesanato.
Enquanto isso, o barulho das motosserras permanecerá. Uma em cada quatro famílias sobrevive da atividade, em condição social degradante. Quando constataram a realidade em campo, técnicos do BNDES perceberam que o projeto deveria atingir toda a cadeia produtiva, incluindo coletores de sementes e compradores de mudas. A região está incrustrada no coração de um corredor de biodiversidade que é alvo de um plano do Pacto para Restauração da Mata Atlântica para dobrar a floresta nativa que restou no bioma. Além disso, a adequação das propriedades rurais ao novo Código Florestal deverá movimentar os negócios do reflorestamento.
Que cachimbo que nada. A “viagem” atual dos pataxós está no conserto dos estragos que eles próprios e os madeireiros ilegais causaram à mata. E assim as aldeias poderão entoar o canto que chama as forças da floresta: Eu fui no pé da jurema/ Eu vi o índio cantar/ Vamos trabalhar meu povo/ Para Deus nos ajudar/ Henawê heyná heiá, henawê heyná heiá
*Jornalista
[:en]
Lideranças indígenas engajam-se em projeto de restauração florestal que pretende atingir toda a cadeia produtiva e reverter os estragos causados pela exploração ilegal
Na primeira – e única – baforada, o mundo “girou”. A tontura foi como uma roleta que roda várias vezes até parar no número da sorte grande – sim, a sorte de vivenciar com os nativos um momento de transformações da realidade local. O “cachimbo da paz”, abastecido com capim de aruanda, folha de jurema e resina de amesca, integrava um ritual fechado entre os índios pataxós para proteção contra maus espíritos. Mas a aromática fumaça sagrada tornou-se “produto turístico” e dissipou-se quando as portas das aldeias foram abertas ao assédio dos forasteiros na região de Porto Seguro, litoral sul da Bahia.
Já faz algum tempo, a tradição das rezas, danças e pinturas do corpo virou meio de sustento. Hoje, o dilema de associar a cultura indígena ao consumo do “homem branco” recai sobre novas frentes, com destaque para a exploração florestal. Em especial o corte de árvores da Mata Atlântica, já castigada ao extremo naquele trecho do litoral onde Pedro Álvares Cabral “descobriu” o Brasil.
Não faltam motivos para a nossa viagem “Brasil adentro”, nesta nova coluna de PÁGINA22, começar pela terra dos pataxós no entorno do Monte Pascoal e, de lá, seguir pelos quatro cantos do País, na rota de diferentes paisagens, realidades e histórias de vida, percorrida em 30 anos de trabalho jornalístico, na linha do desenvolvimento local.
Neste ponto de largada na Bahia, o cenário mistura floresta, sol, mar, diversão, patrimônio histórico, conhecimento tradicional e também impactos socioambientais – um mosaico que este ano ficou mais conhecido dos brasileiros, por conta da seleção de futebol da Alemanha, que lá se hospedou, adotou a estratégia de interagir com a comunidade e se tornou campeã do mundo.
Jornais e canais de televisão de todo o planeta, no entanto, não mostraram tudo. Na margem das estradas, banquinhas que vendem gamelas e outros objetos de decoração feitos com madeira de lei dão pistas sobre o que acontece na Mata Atlântica por trás daquelas montanhas à beira-mar: desmatamento.
Estima-se que pelo menos 6 mil árvores nativas são derrubadas por ano para essa finalidade, envolvendo cerca de 300 artesãos. Os índios recebem um décimo do preço final de venda aos turistas e são compelidos a derrubar mais para aumentar a renda. Como uma nova árvore demora 20 ou 30 anos para crescer, a floresta chegou à exaustão, com a necessidade de ir cada vez mais longe para cortar a madeira.
Nessas condições, provavelmente o recurso faltará para o sustento do povo indígena no futuro. E ainda existe a ameaça dos incêndios florestais, causados por queimadas nas roças, sem falar da criação de gado, que implica mais derrubada de árvores para abrir pastagem e fazer estacas para cercas.
Com um agravante: tudo ocorre dentro de uma Unidade de Conservação de proteção integral: o Parque Nacional do Monte Pascoal, sobreposto à reserva dos pataxós. A solução para mudar o quadro, proposta por uma ONG local, a Natureza Bela, e abraçada pelas lideranças indígenas, foi fazer a restauração florestal com plantio de mudas nativas, iniciada há três anos em 220 hectares nas aldeias Boca da Mata e Meio da Mata. A iniciativa recebe apoio do BNDES, com recursos de R$ 3 milhões, destinados a serviços como capacitação dos índios por especialistas da Universidade de São Paulo e instalação de viveiros.
Para formalizar a produção e as vendas, as comunidades montaram uma cooperativa que mistura “replantio” e “pajé” no nome – Cooplanjé –, hoje com 102 integrantes, esperançosos de daqui a alguns anos só tirar madeira das árvores que plantaram, como da espécie Acacia mangium, de origem australiana e de bom rendimento para o artesanato.
Enquanto isso, o barulho das motosserras permanecerá. Uma em cada quatro famílias sobrevive da atividade, em condição social degradante. Quando constataram a realidade em campo, técnicos do BNDES perceberam que o projeto deveria atingir toda a cadeia produtiva, incluindo coletores de sementes e compradores de mudas. A região está incrustrada no coração de um corredor de biodiversidade que é alvo de um plano do Pacto para Restauração da Mata Atlântica para dobrar a floresta nativa que restou no bioma. Além disso, a adequação das propriedades rurais ao novo Código Florestal deverá movimentar os negócios do reflorestamento.
Que cachimbo que nada. A “viagem” atual dos pataxós está no conserto dos estragos que eles próprios e os madeireiros ilegais causaram à mata. E assim as aldeias poderão entoar o canto que chama as forças da floresta: Eu fui no pé da jurema/ Eu vi o índio cantar/ Vamos trabalhar meu povo/ Para Deus nos ajudar/ Henawê heyná heiá, henawê heyná heiá
*Jornalista