Ele vivia murcho, careca, furado. Até que veio essa história de pintar as ciclofaixas na paisagem e lhe remendaram, encheram de ar, estufaram-lhe o peito
Júlio Jorge é um pneu de bicicleta paulistano. Ultimamente sua classe tem desfilado mais pela cidade do que modelo em dia de São Paulo Fashion Week. Há pouco tempo vivia murcho, careca, furado, desempregado, quase parou na reciclagem. Até que veio essa história de pintar as ciclofaixas na paisagem e o remendaram, encheram de ar, estufaram-lhe o peito.
Todo pneu que se preza sabe: o mundo dá voltas. Depois do banho de loja, agora vai Júlio Jorge para cima e para baixo. Recuperou o ânimo, foi aparafusado em uma bike 18 marchas de alumínio colorida, lançamento do ano. A autoestima apareceu logo. “As caravelas descobriram o Brasil, mas as bicicletas é que vão libertá-lo”, costuma dizer.
É daqueles que adoram uma rua de paralelepípedo. Se aos olhos do ciclista parece esburacada, as velhas pedras funcionam como uma relaxante sessão de shiatsu para o pneu. As pessoas reclamam que em São Paulo falta praia. Não para Júlio Jorge. Ele pega onda nas poças d’água que aparecem durante o trajeto, sendo campeão de bodyboard na categoria borracha urbana.
Júlio Jorge jamais ficaria preso a um patrão só. Em vez de rodar na bicicleta de um dono, prefere trabalhar na loja de aluguel de bikes. Assim, conforme o gosto do freguês, conhece caminhos, cenários e pessoas diferentes.
Estudantes, atendentes de telemarketing, garçons, advogados, empresários, médicos. Qualquer um que se proponha a dar umas pedaladas entra para o seu círculo de amizades.
A bailarina, como era de seu feitio, conduziu o pneu com uma delicadeza só, como se estivesse pisando o palco do Theatro Municipal. O guarda de trânsito, por incrível que pareça, foi o primeiro a passear em área proibida para o tráfego de bicicletas.
O carteiro carregava correspondências destinadas a lugares tão distantes que Júlio Jorge pensou que tinha chegado o dia, enfim, de conhecer a Europa. Doce ilusão, não passou da esquina.
Júlio Jorge gosta de carregar na bicicleta homens apaixonados a caminho de encontrar suas amadas. É um pneu água com açúcar, derrete-se assistindo a filmes românticos, chorou quando viu pela primeira vez Mario Bros salvar a princesa no videogame. Anima-se quando vê montando na bicicleta um jovem com um ramalhete em uma das mãos, o guidão na outra.
Amor que é amor não inventa a roda. Tem perfume, gracejos, beijinhos sob lâmpadas de postes à meia-luz com a bicicleta atravessada na ciclovia. O pneu vê tudo imóvel, deixa cair uma lágrima, melhor quando a amada do ciclista está de bicicleta.
Júlio Jorge paquera as meninas-pneus da outra bike. “Vem me pedalar, gracinha”, “Vem me encher de oxigênio, pequena”, “Vem ser meu estepe, docinho”.
Nem tudo são flores, porém. Certa vez um senhor de idade escapuliu pela janela com a cueca na cabeça. Da amante pegou a bicicleta, que por coincidências da vida tinha no seu eixo este pneu de quem falamos. Ali na altura da Rua dos Pinheiros com a Avenida Faria Lima a cueca caiu no chão. Júlio Jorge sujo de graxa e em alta velocidade passou por cima do pano branco e malcheiroso, deixando suas marcas cravadas no tecido.
O senhor de idade querendo dar uma de esperto negou a todo custo que estivesse na casa da amante. Mas a esposa catou a cueca no meio do caminho e a usou como prova, comparando as marcas deixadas no pano ao formato da borracha do pneu da bicicleta – no caso, o corpinho arredondado e cheio de hachuras de Júlio Jorge. Ele, o pneumático, não escapou das piadas da rapaziada no bicicletário, pois todo mundo já tinha visto amantes serem denunciados pelas marcas de batom. As dos pneus foram novidade.
São tantos quilômetros asfalto afora que dá para contar as histórias em livro. Ultimamente Júlio Jorge tem rodado até meio reflexivo. Pensa que cada sujeito desses montado na bike é um a menos apertado no ônibus. Cada bicicleta que sai às ruas é um carro que deixa de fechar o cruzamento, ocupar uma vaga, fazer barulho, queimar gasolina, liberar gás carbônico.
E ainda existe gente que xinga o coitado do ciclista no meio da rua, sem o menor respeito, como se quem estivesse incomodando fosse a bicicleta, e não o excesso de automóveis.
Ao se deparar com uma cena dessas Júlio Jorge freia, corre ao acostamento e reflete. “As caravelas descobriram o Brasil, mas as bicicletas é que vão libertá-lo”, volta a repetir por aí.
*Jornalista e autor do livro Amor do Mundo
[:en]Ele vivia murcho, careca, furado. Até que veio essa história de pintar as ciclofaixas na paisagem e lhe remendaram, encheram de ar, estufaram-lhe o peito
Júlio Jorge é um pneu de bicicleta paulistano. Ultimamente sua classe tem desfilado mais pela cidade do que modelo em dia de São Paulo Fashion Week. Há pouco tempo vivia murcho, careca, furado, desempregado, quase parou na reciclagem. Até que veio essa história de pintar as ciclofaixas na paisagem e o remendaram, encheram de ar, estufaram-lhe o peito.
Todo pneu que se preza sabe: o mundo dá voltas. Depois do banho de loja, agora vai Júlio Jorge para cima e para baixo. Recuperou o ânimo, foi aparafusado em uma bike 18 marchas de alumínio colorida, lançamento do ano. A autoestima apareceu logo. “As caravelas descobriram o Brasil, mas as bicicletas é que vão libertá-lo”, costuma dizer.
É daqueles que adoram uma rua de paralelepípedo. Se aos olhos do ciclista parece esburacada, as velhas pedras funcionam como uma relaxante sessão de shiatsu para o pneu. As pessoas reclamam que em São Paulo falta praia. Não para Júlio Jorge. Ele pega onda nas poças d’água que aparecem durante o trajeto, sendo campeão de bodyboard na categoria borracha urbana.
Júlio Jorge jamais ficaria preso a um patrão só. Em vez de rodar na bicicleta de um dono, prefere trabalhar na loja de aluguel de bikes. Assim, conforme o gosto do freguês, conhece caminhos, cenários e pessoas diferentes.
Estudantes, atendentes de telemarketing, garçons, advogados, empresários, médicos. Qualquer um que se proponha a dar umas pedaladas entra para o seu círculo de amizades.
A bailarina, como era de seu feitio, conduziu o pneu com uma delicadeza só, como se estivesse pisando o palco do Theatro Municipal. O guarda de trânsito, por incrível que pareça, foi o primeiro a passear em área proibida para o tráfego de bicicletas.
O carteiro carregava correspondências destinadas a lugares tão distantes que Júlio Jorge pensou que tinha chegado o dia, enfim, de conhecer a Europa. Doce ilusão, não passou da esquina.
Júlio Jorge gosta de carregar na bicicleta homens apaixonados a caminho de encontrar suas amadas. É um pneu água com açúcar, derrete-se assistindo a filmes românticos, chorou quando viu pela primeira vez Mario Bros salvar a princesa no videogame. Anima-se quando vê montando na bicicleta um jovem com um ramalhete em uma das mãos, o guidão na outra.
Amor que é amor não inventa a roda. Tem perfume, gracejos, beijinhos sob lâmpadas de postes à meia-luz com a bicicleta atravessada na ciclovia. O pneu vê tudo imóvel, deixa cair uma lágrima, melhor quando a amada do ciclista está de bicicleta.
Júlio Jorge paquera as meninas-pneus da outra bike. “Vem me pedalar, gracinha”, “Vem me encher de oxigênio, pequena”, “Vem ser meu estepe, docinho”.
Nem tudo são flores, porém. Certa vez um senhor de idade escapuliu pela janela com a cueca na cabeça. Da amante pegou a bicicleta, que por coincidências da vida tinha no seu eixo este pneu de quem falamos. Ali na altura da Rua dos Pinheiros com a Avenida Faria Lima a cueca caiu no chão. Júlio Jorge sujo de graxa e em alta velocidade passou por cima do pano branco e malcheiroso, deixando suas marcas cravadas no tecido.
O senhor de idade querendo dar uma de esperto negou a todo custo que estivesse na casa da amante. Mas a esposa catou a cueca no meio do caminho e a usou como prova, comparando as marcas deixadas no pano ao formato da borracha do pneu da bicicleta – no caso, o corpinho arredondado e cheio de hachuras de Júlio Jorge. Ele, o pneumático, não escapou das piadas da rapaziada no bicicletário, pois todo mundo já tinha visto amantes serem denunciados pelas marcas de batom. As dos pneus foram novidade.
São tantos quilômetros asfalto afora que dá para contar as histórias em livro. Ultimamente Júlio Jorge tem rodado até meio reflexivo. Pensa que cada sujeito desses montado na bike é um a menos apertado no ônibus. Cada bicicleta que sai às ruas é um carro que deixa de fechar o cruzamento, ocupar uma vaga, fazer barulho, queimar gasolina, liberar gás carbônico.
E ainda existe gente que xinga o coitado do ciclista no meio da rua, sem o menor respeito, como se quem estivesse incomodando fosse a bicicleta, e não o excesso de automóveis.
Ao se deparar com uma cena dessas Júlio Jorge freia, corre ao acostamento e reflete. “As caravelas descobriram o Brasil, mas as bicicletas é que vão libertá-lo”, volta a repetir por aí.
*Jornalista e autor do livro Amor do Mundo