O que pode haver em comum entre o amor incondicional pelo outro e o “apocalipse” que matou cerca de 30 mil indianos em Bhopal na madrugada de 3 de dezembro de 1984, deixando outras 500 mil pessoas feridas?
Uma avalanche de reações químicas é o que há em comum entre o amor e a tragédia na Índia. A química do amor é desencadeada por substâncias como a oxitocina, um hormônio produzido naturalmente pelo corpo que, ao entrar no circuito cerebral, induz homens e mulheres, assim como animais, à reprodução e, consequentemente, a uma boa forma evolutiva. Aos românticos, a poesia ausente nessa descrição neurocientífica do amor está contemplada na forma como a natureza doa e dosa essas substâncias, no tempo e na medida sempre muito próximos do ideal. Pode-se dizer que a oxitocina é uma química para a vida [1] (mais em reportagem).
Já a nuvem tóxica feita de isocianato de metila, um composto desenvolvido em laboratório para substituir o DDT [2] no combate às pragas nas lavouras, que a empresa americana Union Carbide [3] deixou vazar sobre Bhopal, queima lenta e dolorosamente os pulmões de quem a inalar. Quem sobreviveu ao “inferno” na cidade indiana carregou para sempre feridas no corpo e na alma. Pesticidas são, portanto, uma química para a morte, por mais bem intencionado que possa ser o seu propósito de aumentar a produção de alimentos no campo [4].
[1] Para saber mais leia A Química Entre Nós, de Larry Young e Brian Alexander, editora Best Seller, 2013.
[2] Sigla para diclorodifeniltricloroetano, banido do mercado de vários países em 1970 devido a seu alto grau de toxicidade. No Brasil, seu uso foi proibido na agricultura em 1985
[3] Foi adquirida em 1999 pela também americana Dow Chemical Corporate
[4] Mais informações em Meia-Noite em Bhopal, de Dominique Lapierre e Javier Moro, Editora Planeta, 2014.
Cubatão, no litoral de São Paulo, Seveso, na Itália, Minamata, no Japão, e Londres, na Inglaterra, também enterraram muitas vítimas de experiências desastrosas envolvendo produtos químicos (veja na linha do tempo abaixo). De fato, há muitos períodos sombrios na história dessa ciência experimental que estuda a maneira como os elementos se ligam e reagem entre si. No entanto, ao longo dessa trajetória, fez-se também muita química para a vida. Penicilina, vacinas para inúmeras doenças, anestesia, assepsia, ácido acetilsalicílico (AAS), entre outras descobertas. A Convenção de Estocolmo em 2001 coroou a química do bem ao firmar um protocolo, do qual o Brasil foi signatário juntamente com outros 150 países, relativo à contenção e banimento dos Poluentes Orgânicos Persistentes (POP). [5]
[5] Produtos químicos que permanecem nos ecossistemas por longos períodos, além de se acumularem no tecido adiposo dos seres vivos
PONTO DE PARTIDA
Entre a alquimia[6], o ponto de partida dessa história, e a química há uma diferença crucial que pode explicar essa dicotomia do bem e do mal. O médico e antropólogo francês, Patrick Paul, ex-pesquisador do Instituto Pasteur em Paris e atualmente diretor do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Integral Humano, aqui no Brasil, explica que a alquimia sempre foi holística, observadora dos sinais do corpo, do espírito, da natureza e do Cosmos. Não havia uma separação entre o alquimista metalúrgico, que descobriu como usar o fogo para transformar cobre e estanho em bronze, e o alquimista fármaco.
[6] O surgimento dos primeiros alquimistas pode ter sido no Oriente Médio, ainda na Idade do Bronze, cerca de 4 milênios a.C.
“O alquimista e o químico também eram um só, assim como a Astrologia e a Astronomia eram uma mesma ciência.” Assim foi até o Renascimento. “Em seguida, nos séculos XVI e XVII, passou a prevalecer o dualismo cartesiano de Descartes”, relata.
Assim, Antoine-Laurent de Lavoisier, o “pai” da química moderna e o primeiro a perceber a presença do carbono na composição dos seres vivos, no século XVIII já trabalhava em um plano laboratorial e experimental, sem conexão complementar com a natureza, o Cosmos e o espírito. Segundo Patrick Paul, nessa época surge a ambiguidade na química. O uso de agrotóxicos na agricultura, por exemplo, com o seu lado bom e o mau. Um faz aumentar a produção. E o outro aniquila insetos, abelhas e pássaros, agentes polinizadores e indutores naturais de produtividade, além de poluir solo, rios e fazer mal à saúde. Ele conta que, na França, os agricultores, cientes dos efeitos tóxicos dos pesticidas, têm o costume de cultivar alimentos orgânicos para uso pessoal. “Há uma perversidade quando se corta a interação entre sujeito, vida e conhecimento. Não é mais uma questão de inteligência, mas de uma construção paradigmática: somos criados e educados para reproduzir o moderno pensamento científico”, analisa.
“O homem e sua segurança devem constituir a preocupação de toda aventura tecnológica. Nunca se esqueçam disso quando estiverem mergulhados em seus planos e suas equações.”
Albert Einstein
Os efeitos do uso indiscriminado de pesticidas na agricultura, em especial o DDT, foi denunciado em 1962 pela bióloga americana Rachel Carson, autora do livro Primavera Silenciosa, um dos marcos do início do movimento da sustentabilidade. O título refere-se exatamente ao extermínio dos pássaros pelos pesticidas e o decorrente silêncio sepulcral durante a estação que costumava ser a mais festiva e alegre do ano. Em um trecho, ela escreve: “As substâncias químicas, em relação às quais a vida é solicitada a efetuar os seus ajustamentos, já não são mais meramente o cálcio, o silício e o cobre lavados pelas chuvas e levados para longe das rochas, a caminho dos rios e dos mares; tais substâncias são as criações sintéticas do espírito inventivo do homem; são substâncias compostas em laboratórios e que não têm contrapartes na natureza”.
Desde Rachel, a química esteve no centro das campanhas de organizações ambientais. Na última década, entretanto, o tema perdeu espaço, sobretudo, para questões ligadas à mudança climática. O físico e consultor para a Global Scientific Communications Council (GSCC) [7], Délcio Rodrigues, ex-diretor de Campanhas do Greenpeace, crê que a motivação anterior para as campanhas vinha da necessidade de haver um protocolo internacional sobre os poluentes persistentes que gerasse uma cobrança mútua dos países. Afinal, predominava a percepção de um duplo padrão de qualidade e de monitoramento na indústria química. “Havia um padrão de cuidado na Europa ou nos Estados Unidos e outro diferente no mundo em desenvolvimento, apesar de as empresas serem as mesmas”, afirma. Ou seja, muito mais controlado na Europa e nos Estados Unidos e muito menos aqui no Brasil ou na Índia, por exemplo.
[7] Organização voluntária e informal de representantes de conselhos de pesquisa de todo o mundo que se comprometeu a encontrar caminhos para uma maior colaboração em pesquisas
Depois da Convenção de Estocolmo, quando do ponto de vista global passou a existir uma legislação maior, a pauta de químicos foi aos poucos abandonada pelas campanhas ambientais. O que não significa que o problema tenha sido solucionado.
Rodrigues lembra que, apesar do maior controle dos POP, anualmente são lançados no meio ambiente uma incontável variedade de produtos químicos, a maioria sem um conhecimento aprofundado dos efeitos dessa liberação. “Os impactos secundários da produção da indústria química só são percebidos muito depois de sua entrada em uso”, diz.
VIDA MAIS OU MENOS
Impactos secundários referem-se ao pós-uso. Fortunas são investidas em pesquisa e desenvolvimento (P&D) para a criação de novas fórmulas capazes de resolver grandes ou pequenos problemas do cotidiano. Para chegar ao mercado, a fórmula precisa passar por longas fases de testes, apresentar contraprovas que convençam as autoridades sanitárias e vencer bateladas de obstáculos legais. Pode levar anos e até décadas. E pode até não ser aprovada. Porém, uma vez no balcão, o produto é vendido e consumido, até que se transforme em dejeto ou resíduo. É aí mora o perigo. Pouco se tem investido em P&D para minimizar esses impactos secundários, que, por enquanto, não vislumbram grandes retornos financeiros. Solo, atmosfera, rios e oceanos tornam-se a morada dessas substâncias que o olho humano não enxerga. E o que os olhos não veem…
“É como São Tomé”, diz Christian Lohbauer, diretor de assuntos corporativos da Bayer no Brasil. “É preciso ver para crer”. Brincadeiras de lado, ele reconhece que essa é uma agenda contemporânea da qual não se pode fugir, pois, pela escala das produções e pelo acúmulo de resíduos nos últimos 150 anos, estamos no limite do suportável. “A química é um processo de transformação da matéria que não permite um caminho de volta à origem”, observa. Em sua opinião um passo importante já foi dado pelos países civilizados na direção da logística reversa das embalagens plásticas de agrotóxicos, por exemplo. No Brasil, segundo ele, o setor recupera 92% de todas as embalagens que
chegam ao campo e as recicla.
Quanto aos medicamentos, o desafio está posto. São pílulas, líquidos, cremes, embalagens de vidro, papel, plástico, alumínio etc. É urgente dar uma destinação a tudo isso que passe longe do lixo comum. Lohbauer sabe que o custo não será pequeno, mas diz que a indústria não fugirá dessa pauta. “É evidente que as substâncias, dependendo de como são colocadas na água, no ar e no mar, podem ter um efeito ruim na saúde dos animais, das plantas e das pessoas. Companhias como a Bayer, que se apresentam como empresas life science (ciência para a vida), não podem fazer ‘ciência para a vida mais ou menos’”, opina.
O executivo lembra que todas essas considerações valem igualmente para outras indústrias, como a de equipamentos eletrônicos, que liberam grande quantidade de metais pesados no solo e na atmosfera [8].
[8] Conheça um dos destinos dados aos lixos eletrônicos no vídeo Eletronics Afterlife, em bit.ly/1xJWadC.
QUÍMICO DEPENDENTES
É possível afirmar que, desde que acordamos até a hora de dormir, estamos em contato permanente com substâncias químicas artificiais? “Sim, seja por ingestão, inalação, seja por contato com a derme”, responde a bióloga do Laboratório de Poluição Atmosférica Ambiental da Universidade de São Paulo, Mariana Veras, que se dedica a pesquisas científicas sobre os efeitos provocados por respirar o ar da cidade. E emenda: “Mas esse contato não cessa nem quando dormimos, seja por causa do ar poluído, das emissões da espuma do colchão, seja pela tintura das roupas e lençóis, pelos hidratantes noturnos etc.” Isto é, somos seres químico-dependentes. É praticamente impossível viver sem beber, comer, vestir, respirar alguma química artificial, por mais que adotemos práticas naturalistas (mais sobre nossa exposição diária à química).
“Ando de ônibus para não ser mais uma a poluir o ar da cidade com meu carro. Mas, como usuária do transporte público, estou mais exposta à poluição veicular do que se estivesse fechada dentro do meu carro”, diz Mariana. São as contradições observadas por quem tem conhecimento sobre o assunto e consegue “visualizar” o que para outros passageiros talvez esteja oculto: a enxurrada de produtos químicos que invade o organismo durante uma singela viagem de ônibus. “Agora me pergunte se alguém alguma vez se preocupou com isso e pediu ao laboratório uma análise de risco sobre o total de tolueno, de hidrocarbonetos e de mais um monte de substâncias ruins que eu e os demais passageiros estamos acumulando ao longo de nossas vidas.” Nunca.
A modificação genética dos grãos com finalidade de adequá-los à nutrição animal tem aumentado demasiadamente a concentração de glúten nesses alimentos. Daí tantas pessoas estarem manifestando intolerância à proteína, informa Mariana Veras, da USP
Nem por isso a bióloga deixa de comemorar as benesses da química para a vida. Bem ou mal, foi em meio a todo esse aparato químico que a humanidade atingiu o grau de conforto atual e segue encompridando a sua longevidade. Em geral, temos remédio e água tratada que reduziram a diarreia a um mal menor. Inseticidas para combater o mosquito da dengue. Alimento suficiente para encher mais de 7 bilhões de estômagos,
embora não seja distribuído com o equilíbrio adequado. “Os resíduos são, na verdade, a contrapartida de muitas coisas boas”, afirma. “A maior dificuldade do homem é saber equilibrar lucros e qualidade de vida.”
Nas voltas que dá, a química termina sempre na ambiguidade abordada pelo estudioso da alquimia Patrick Paul. Assim como não se pode separar o interior da caverna de Platão [9]do exterior, não se pode fazer alquimia sem a busca de um equilíbrio entre os elementos essenciais. Para o médico francês, esse equilíbrio é a própria pedra filosofal, o objeto da busca eterna dos alquimistas. Enquanto não for encontrado, permaneceremos no limiar entre a química da vida e a química da morte. Tênue como aquela última gota capaz de fazer do remédio o veneno.
[9] “O Mito da Caverna”, importante texto filosófico, foi escrito por Platão e está contido em A República, no livro VII
[:en]O que pode haver em comum entre o amor incondicional pelo outro e o “apocalipse” que matou cerca de 30 mil indianos em Bhopal na madrugada de 3 de dezembro de 1984, deixando outras 500 mil pessoas feridas?
Uma avalanche de reações químicas é o que há em comum entre o amor e a tragédia na Índia. A química do amor é desencadeada por substâncias como a oxitocina, um hormônio produzido naturalmente pelo corpo que, ao entrar no circuito cerebral, induz homens e mulheres, assim como animais, à reprodução e, consequentemente, a uma boa forma evolutiva. Aos românticos, a poesia ausente nessa descrição neurocientífica do amor está contemplada na forma como a natureza doa e dosa essas substâncias, no tempo e na medida sempre muito próximos do ideal. Pode-se dizer que a oxitocina é uma química para a vida [1] (mais em reportagem).
Já a nuvem tóxica feita de isocianato de metila, um composto desenvolvido em laboratório para substituir o DDT [2] no combate às pragas nas lavouras, que a empresa americana Union Carbide [3] deixou vazar sobre Bhopal, queima lenta e dolorosamente os pulmões de quem a inalar. Quem sobreviveu ao “inferno” na cidade indiana carregou para sempre feridas no corpo e na alma. Pesticidas são, portanto, uma química para a morte, por mais bem intencionado que possa ser o seu propósito de aumentar a produção de alimentos no campo [4].
[1] Para saber mais leia A Química Entre Nós, de Larry Young e Brian Alexander, editora Best Seller, 2013.
[2] Sigla para diclorodifeniltricloroetano, banido do mercado de vários países em 1970 devido a seu alto grau de toxicidade. No Brasil, seu uso foi proibido na agricultura em 1985
[3] Foi adquirida em 1999 pela também americana Dow Chemical Corporate
[4] Mais informações em Meia-Noite em Bhopal, de Dominique Lapierre e Javier Moro, Editora Planeta, 2014.
Cubatão, no litoral de São Paulo, Seveso, na Itália, Minamata, no Japão, e Londres, na Inglaterra, também enterraram muitas vítimas de experiências desastrosas envolvendo produtos químicos (veja na linha do tempo abaixo). De fato, há muitos períodos sombrios na história dessa ciência experimental que estuda a maneira como os elementos se ligam e reagem entre si. No entanto, ao longo dessa trajetória, fez-se também muita química para a vida. Penicilina, vacinas para inúmeras doenças, anestesia, assepsia, ácido acetilsalicílico (AAS), entre outras descobertas. A Convenção de Estocolmo em 2001 coroou a química do bem ao firmar um protocolo, do qual o Brasil foi signatário juntamente com outros 150 países, relativo à contenção e banimento dos Poluentes Orgânicos Persistentes (POP). [5]
[5] Produtos químicos que permanecem nos ecossistemas por longos períodos, além de se acumularem no tecido adiposo dos seres vivos
PONTO DE PARTIDA
Entre a alquimia[6], o ponto de partida dessa história, e a química há uma diferença crucial que pode explicar essa dicotomia do bem e do mal. O médico e antropólogo francês, Patrick Paul, ex-pesquisador do Instituto Pasteur em Paris e atualmente diretor do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Integral Humano, aqui no Brasil, explica que a alquimia sempre foi holística, observadora dos sinais do corpo, do espírito, da natureza e do Cosmos. Não havia uma separação entre o alquimista metalúrgico, que descobriu como usar o fogo para transformar cobre e estanho em bronze, e o alquimista fármaco.
[6] O surgimento dos primeiros alquimistas pode ter sido no Oriente Médio, ainda na Idade do Bronze, cerca de 4 milênios a.C.
“O alquimista e o químico também eram um só, assim como a Astrologia e a Astronomia eram uma mesma ciência.” Assim foi até o Renascimento. “Em seguida, nos séculos XVI e XVII, passou a prevalecer o dualismo cartesiano de Descartes”, relata.
Assim, Antoine-Laurent de Lavoisier, o “pai” da química moderna e o primeiro a perceber a presença do carbono na composição dos seres vivos, no século XVIII já trabalhava em um plano laboratorial e experimental, sem conexão complementar com a natureza, o Cosmos e o espírito. Segundo Patrick Paul, nessa época surge a ambiguidade na química. O uso de agrotóxicos na agricultura, por exemplo, com o seu lado bom e o mau. Um faz aumentar a produção. E o outro aniquila insetos, abelhas e pássaros, agentes polinizadores e indutores naturais de produtividade, além de poluir solo, rios e fazer mal à saúde. Ele conta que, na França, os agricultores, cientes dos efeitos tóxicos dos pesticidas, têm o costume de cultivar alimentos orgânicos para uso pessoal. “Há uma perversidade quando se corta a interação entre sujeito, vida e conhecimento. Não é mais uma questão de inteligência, mas de uma construção paradigmática: somos criados e educados para reproduzir o moderno pensamento científico”, analisa.
“O homem e sua segurança devem constituir a preocupação de toda aventura tecnológica. Nunca se esqueçam disso quando estiverem mergulhados em seus planos e suas equações.”
Albert Einstein
Os efeitos do uso indiscriminado de pesticidas na agricultura, em especial o DDT, foi denunciado em 1962 pela bióloga americana Rachel Carson, autora do livro Primavera Silenciosa, um dos marcos do início do movimento da sustentabilidade. O título refere-se exatamente ao extermínio dos pássaros pelos pesticidas e o decorrente silêncio sepulcral durante a estação que costumava ser a mais festiva e alegre do ano. Em um trecho, ela escreve: “As substâncias químicas, em relação às quais a vida é solicitada a efetuar os seus ajustamentos, já não são mais meramente o cálcio, o silício e o cobre lavados pelas chuvas e levados para longe das rochas, a caminho dos rios e dos mares; tais substâncias são as criações sintéticas do espírito inventivo do homem; são substâncias compostas em laboratórios e que não têm contrapartes na natureza”.
Desde Rachel, a química esteve no centro das campanhas de organizações ambientais. Na última década, entretanto, o tema perdeu espaço, sobretudo, para questões ligadas à mudança climática. O físico e consultor para a Global Scientific Communications Council (GSCC) [7], Délcio Rodrigues, ex-diretor de Campanhas do Greenpeace, crê que a motivação anterior para as campanhas vinha da necessidade de haver um protocolo internacional sobre os poluentes persistentes que gerasse uma cobrança mútua dos países. Afinal, predominava a percepção de um duplo padrão de qualidade e de monitoramento na indústria química. “Havia um padrão de cuidado na Europa ou nos Estados Unidos e outro diferente no mundo em desenvolvimento, apesar de as empresas serem as mesmas”, afirma. Ou seja, muito mais controlado na Europa e nos Estados Unidos e muito menos aqui no Brasil ou na Índia, por exemplo.
[7] Organização voluntária e informal de representantes de conselhos de pesquisa de todo o mundo que se comprometeu a encontrar caminhos para uma maior colaboração em pesquisas
Depois da Convenção de Estocolmo, quando do ponto de vista global passou a existir uma legislação maior, a pauta de químicos foi aos poucos abandonada pelas campanhas ambientais. O que não significa que o problema tenha sido solucionado.
Rodrigues lembra que, apesar do maior controle dos POP, anualmente são lançados no meio ambiente uma incontável variedade de produtos químicos, a maioria sem um conhecimento aprofundado dos efeitos dessa liberação. “Os impactos secundários da produção da indústria química só são percebidos muito depois de sua entrada em uso”, diz.
VIDA MAIS OU MENOS
Impactos secundários referem-se ao pós-uso. Fortunas são investidas em pesquisa e desenvolvimento (P&D) para a criação de novas fórmulas capazes de resolver grandes ou pequenos problemas do cotidiano. Para chegar ao mercado, a fórmula precisa passar por longas fases de testes, apresentar contraprovas que convençam as autoridades sanitárias e vencer bateladas de obstáculos legais. Pode levar anos e até décadas. E pode até não ser aprovada. Porém, uma vez no balcão, o produto é vendido e consumido, até que se transforme em dejeto ou resíduo. É aí mora o perigo. Pouco se tem investido em P&D para minimizar esses impactos secundários, que, por enquanto, não vislumbram grandes retornos financeiros. Solo, atmosfera, rios e oceanos tornam-se a morada dessas substâncias que o olho humano não enxerga. E o que os olhos não veem…
“É como São Tomé”, diz Christian Lohbauer, diretor de assuntos corporativos da Bayer no Brasil. “É preciso ver para crer”. Brincadeiras de lado, ele reconhece que essa é uma agenda contemporânea da qual não se pode fugir, pois, pela escala das produções e pelo acúmulo de resíduos nos últimos 150 anos, estamos no limite do suportável. “A química é um processo de transformação da matéria que não permite um caminho de volta à origem”, observa. Em sua opinião um passo importante já foi dado pelos países civilizados na direção da logística reversa das embalagens plásticas de agrotóxicos, por exemplo. No Brasil, segundo ele, o setor recupera 92% de todas as embalagens que
chegam ao campo e as recicla.
Quanto aos medicamentos, o desafio está posto. São pílulas, líquidos, cremes, embalagens de vidro, papel, plástico, alumínio etc. É urgente dar uma destinação a tudo isso que passe longe do lixo comum. Lohbauer sabe que o custo não será pequeno, mas diz que a indústria não fugirá dessa pauta. “É evidente que as substâncias, dependendo de como são colocadas na água, no ar e no mar, podem ter um efeito ruim na saúde dos animais, das plantas e das pessoas. Companhias como a Bayer, que se apresentam como empresas life science (ciência para a vida), não podem fazer ‘ciência para a vida mais ou menos’”, opina.
O executivo lembra que todas essas considerações valem igualmente para outras indústrias, como a de equipamentos eletrônicos, que liberam grande quantidade de metais pesados no solo e na atmosfera [8].
[8] Conheça um dos destinos dados aos lixos eletrônicos no vídeo Eletronics Afterlife, em bit.ly/1xJWadC.
QUÍMICO DEPENDENTES
É possível afirmar que, desde que acordamos até a hora de dormir, estamos em contato permanente com substâncias químicas artificiais? “Sim, seja por ingestão, inalação, seja por contato com a derme”, responde a bióloga do Laboratório de Poluição Atmosférica Ambiental da Universidade de São Paulo, Mariana Veras, que se dedica a pesquisas científicas sobre os efeitos provocados por respirar o ar da cidade. E emenda: “Mas esse contato não cessa nem quando dormimos, seja por causa do ar poluído, das emissões da espuma do colchão, seja pela tintura das roupas e lençóis, pelos hidratantes noturnos etc.” Isto é, somos seres químico-dependentes. É praticamente impossível viver sem beber, comer, vestir, respirar alguma química artificial, por mais que adotemos práticas naturalistas (mais sobre nossa exposição diária à química).
“Ando de ônibus para não ser mais uma a poluir o ar da cidade com meu carro. Mas, como usuária do transporte público, estou mais exposta à poluição veicular do que se estivesse fechada dentro do meu carro”, diz Mariana. São as contradições observadas por quem tem conhecimento sobre o assunto e consegue “visualizar” o que para outros passageiros talvez esteja oculto: a enxurrada de produtos químicos que invade o organismo durante uma singela viagem de ônibus. “Agora me pergunte se alguém alguma vez se preocupou com isso e pediu ao laboratório uma análise de risco sobre o total de tolueno, de hidrocarbonetos e de mais um monte de substâncias ruins que eu e os demais passageiros estamos acumulando ao longo de nossas vidas.” Nunca.
A modificação genética dos grãos com finalidade de adequá-los à nutrição animal tem aumentado demasiadamente a concentração de glúten nesses alimentos. Daí tantas pessoas estarem manifestando intolerância à proteína, informa Mariana Veras, da USP
Nem por isso a bióloga deixa de comemorar as benesses da química para a vida. Bem ou mal, foi em meio a todo esse aparato químico que a humanidade atingiu o grau de conforto atual e segue encompridando a sua longevidade. Em geral, temos remédio e água tratada que reduziram a diarreia a um mal menor. Inseticidas para combater o mosquito da dengue. Alimento suficiente para encher mais de 7 bilhões de estômagos,
embora não seja distribuído com o equilíbrio adequado. “Os resíduos são, na verdade, a contrapartida de muitas coisas boas”, afirma. “A maior dificuldade do homem é saber equilibrar lucros e qualidade de vida.”
Nas voltas que dá, a química termina sempre na ambiguidade abordada pelo estudioso da alquimia Patrick Paul. Assim como não se pode separar o interior da caverna de Platão [9]do exterior, não se pode fazer alquimia sem a busca de um equilíbrio entre os elementos essenciais. Para o médico francês, esse equilíbrio é a própria pedra filosofal, o objeto da busca eterna dos alquimistas. Enquanto não for encontrado, permaneceremos no limiar entre a química da vida e a química da morte. Tênue como aquela última gota capaz de fazer do remédio o veneno.
[9] “O Mito da Caverna”, importante texto filosófico, foi escrito por Platão e está contido em A República, no livro VII