Aos 81 anos, a paulista Niède Guidon, formada em História Natural pela Universidade de São Paulo e Doutora em Arqueologia Pré-Histórica pela Sorbonne-França, tem metade de sua vida dedicada a um trabalho obstinado para a manutenção da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) e do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, dos quais é precursora. Durante esse período, a pesquisadora e sua equipe já descobriram mais de 1,3 mil sítios arqueológicos e centenas de fósseis pré-históricos nesta região da Caatinga, e conta à Página22 quais são os desafios para a gestão sustentável da conservação deste patrimônio cultural reconhecido pela Unesco e tombado pelo Iphan e do ecossistema local, que sofre a pressão antrópica e da seca.
O que a motivou, nos anos 60, a iniciar as pesquisas na região na Serra da Capivara?
Em 1963, eu era pesquisadora do Museu do Ipiranga, da USP, e fizemos uma exposição sobre inscrições rupestres. Na época, só se conhecia as de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Um dos visitantes, no entanto, me contou que, nas proximidades de São Raimundo Nonato (PI), onde morava, havia pinturas nas rochas e me mostrou algumas fotos. Vi que eram diferentes das mineiras e quis ir para lá. Em dezembro daquele ano tentei ir, mas uma inundação impediu que chegasse ao local. No ano seguinte, com a Ditadura Militar, fui denunciada como comunista, sendo que nunca tinha sido, e tive de ir embora, para que não fosse presa. O meu destino foi a França. Recomecei minha vida lá e fui professora da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess) em Paris, a partir de 1977, mas sempre fiquei com aquela fotografia da Serra da Capivara na cabeça.
Praticamente uma década depois, a senhora deu início às pesquisas na região. Como foram as primeiras incursões?
Em 1970, vim em uma missão apoiada pelo governo francês para conhecer os índios de Goiás. Daí, tive a oportunidade de prolongar o roteiro até a Serra da Capivara e consegui ver cinco sítios na região, que eram completamente diferentes e extraordinários. Com essa documentação, consegui coordenar uma missão francesa por lá, em 1973, com a participação de pesquisadores da USP. Em dois meses, descobrimos 55 sítios arqueológicos. Os moradores locais das áreas rurais de Várzea Grande nos ajudaram a fazer estas descobertas. Já em 1978, foi criada a missão francesa permanente do Piauí, que está sob a coordenação do Ministério das Relações Exteriores francesa, até hoje. Como chefe da missão, vinha anualmente com meus alunos franceses para fazer o trabalho de campo.
Qual foi o embrião para a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara em 1979?
A nossa missão francesa de 1978 resultou em um relatório, que entreguei ao governo federal, em Brasília. Além da importância dos sítios arqueológicos, a botânica da equipe viu que nesta região da Caatinga, havia também a presença de espécies de outros biomas. A área é uma fronteira geológica entre a depressão periférica do Rio São Francisco e a bacia sedimentar do Maranhão-Piauí. No alto do planalto, nos lugares úmidos, havia espécies animais e vegetais da floresta amazônica e na planície, de Mata Atlântica. Um conjunto a ser preservado, incluindo a Serra das Confusões. E o que se observava é que muitas queimadas historicamente ocorriam aqui. Pedimos que a região fosse protegida e então o governo federal criou o Parque Nacional da Serra da Capivara, sem incluir as Confusões. Durante as pesquisas, pudemos demonstrar que até 10 mil anos atrás esses dois biomas eram existentes na região. Em seguida, começou a diminuir a umidade, predominando a Caatinga.
Em 1991, o Parque Nacional da Serra da Capivara foi declarado como patrimônio cultural da humanidade, pela Unesco. A partir daí, a senhora veio morar no Brasil e conduziu o desafio da criação da Fumdham e da manutenção do parque. Com isso, quais vieram a ser principais desafios?
O parque ocupa uma área extensa de 129 mil hectares nos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias. A Fumdham, que é uma Oscip, criada em 1986, assinou um convênio de cogestão com o Ibama (depois Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio), em 2002, e tem como competência a delegação de atividades de uso público da unidade, da manutenção do centro de visitantes e das passarelas e dos funcionários nestes serviços. O parque tem infraestrutura de primeiro mundo, que tivemos condições de fazer. A Unidade de Conservação pertence ao governo brasileiro, mas que não encaminha recursos permanentes para mantê-lo. Hoje não conseguimos protegê-lo como antigamente. A Fumdham necessita de recursos, por meio de parcerias e de leis de incentivos. Para evitar depredações nos sítios e queimadas, a cada 10 quilômetros havíamos feito uma guarita em todo o parque, de maneira que havia sistema de rádio, para poder atender as ocorrências. Hoje somente 11 estão em funcionamento, por falta de verbas. O Museu fica localizado na cidade de São Raimundo Nonato e tem tecnologia de primeiro mundo, que conta com exibições audiovisuais, que tratam da explicação sobre as pinturas rupestres dos sítios arqueológicos. Há também artefatos e réplicas de fósseis animais e humanos descobertos na região. O espaço também poderia ser mais visitado, se houvesse a melhoria de acesso à região.
E quanto à proteção ambiental?
A proteção ambiental do parque cabe ao ICMBio, que mantém guardas terceirizados, além de pessoal administrativo e temporários para brigadas de incêndio. Para ampliar a manutenção, depende de recursos provenientes principalmente de fundos de compensação ambiental. Os sítios tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), desde 1993, deveriam ser preservados pelo órgão, mas faltam funcionários para fiscalização. As pressões antrópicas no entorno continuam. Hoje o Rio Piauí, sobre o qual fizemos um estudo, por exemplo, está seco, e sofre a pressão do despejo de lixo. A cidade tinha 12 lagoas com peixes e jacaré nos anos 70, e atualmente praticamente não existem. O homem pré-histórico colocava suas aldeias em lugares altos. Somente o homo sapiens é que erroneamente fica às margens dos rios.
O que é feito pela Fumdham com relação à manutenção do parque, nas épocas de seca?
Há um problema sério de falta de água aqui, que se estendia de abril a outubro, mas que está ficando mais amplo. Os animais, nessas épocas, se deslocavam para a Serra das Confusões, que fica a 100 quilômetros daqui, onde existe também um parque nacional mais recente, e é um local mais úmido. Quando caía a chuva na Serra da Capivara, eles voltavam para cá. A gente brincava que alguém mandava um telegrama para eles avisando. Hoje não é mais possível que façam isso, porque no caminho houve a ocupação por fazendas e assentamentos. Em 78, mostramos que era importante que o parque pudesse compreender essas duas áreas. Agora, se os animais passarem por esse trajeto, podem ser mortos. Então fizemos vários reservatórios de água no parque para que possam suprir as necessidades deles, durante a seca. Colocamos alimentos, como banana para macacos, abóbora para os catitus, entre outros. Se não tivermos esta preocupação, o meio ambiente acaba.
Qual é o valor dos achados arqueológicos da Serra da Capivara?
Todos os achados arqueológicos são importantes, independente do local, permitem conhecer nossa história. Na região da Pedra Furada, que tem datações de até 100 mil anos, dentro do parque, por exemplo, há composições fantásticas. Outros sítios exibem representações geométricas como a arte cubista. As nossas pesquisas chegaram à constatação de que o homem veio da África para a América do Sul pelo Oceano Atlântico e contestam a versão mais difundida até hoje de que grupos asiáticos teriam chegado da Sibéria pelo Estreito de Bering até a costa pacífica da América do Norte há cerca de 15 mil anos e alcançado o continente sul-americano, 11 mil anos. Precisamos parar de pensar que o homem saiu pelo mundo levando traços culturais e tecnológicos para outros povos. Temos a mesma composição genética. As mutações, talvez em função das condições dos biomas, podem ter originado diferença de cor e de tipo físico, mas a capacidade intelectual e técnica é a mesma. Temos aqui a pedra lascada que também é encontrada na Europa. Nosso trabalho demonstrou que a arte rupestre no Brasil tem grandes características de uma cultura desenvolvida.
Desde 1993, a senhora defende a construção de um aeroporto em São Raimundo Nonato. Qual é a situação atual deste projeto?
Agora, o aeroporto está prestes a ser inaugurado, mas para aviões de pequeno porte, porque a medida da pista é menor do que o padrão dos aeroportos tradicionais. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), para homologar seu funcionamento, exigiu algumas readequações, como a construção de cercas e de sistema de drenagem. Eu ganhei um prêmio e doei a verba para essas obras, porque o governo do Estado alegou que não tinha a verba. Com isso, as linhas internacionais já interessadas não poderão pousar, por enquanto, até que sejam feitas as mudanças e submetidas à fiscalização novamente.
Porque esse aeroporto é considerado estratégico para a sustentabilidade do parque e de seu entorno?
Em 93, quando vim para cá, a pedido do governo brasileiro, para fazer o programa para a gestão do parque, também convidei Enrique Iglesias – que, na ocasião, era presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) – para visitar a Unidade de Conservação. Ele mandou dois técnicos que estudaram toda região e fizeram um relatório que mandei para Brasília, dizendo que aqui a agricultura e criação não dariam resultado, porque o solo é muito ruim, salgado e ácido. O BID, então, aconselhou que deveria ser desenvolvida na região a vocação turística. Contratamos uma firma suíça, que ficou durante dois meses, e elaborou o projeto de desenvolvimento turístico regional. Por isso, o parque tem muitas trilhas e sítios, para não haver aglomerações e prejudicar a fauna e a própria visitação. Um dos pontos que levantaram é que o acesso é muito difícil, além de ser longe, as estradas não são boas, não existe bom hotel para parar. Por isso, encaminhamos o relatório ao governo federal, e houve a autorização para a construção do aeroporto internacional da Serra da Capivara. Em 1997, houve a liberação da verba entorno de R$ 15 milhões para a construção, por parte do governo federal, que foi encaminhada ao governo do Piauí. O governador da época disse que o aeroporto era coisa de rico e iria utilizar o dinheiro para construir estrada. Só que a estrada não foi construída, só virando uma realidade há poucos anos. Depois o processo foi retomado nos anos 2000.
A Fumdham tem um novo projeto para construir o Museu da Natureza. Fale a respeito.
Quando fizemos o Museu do Homem Americano, havia informações desde a formação da região até a chegada do homem branco. A parte do homem pré-histórico foi aumentando e houve pouco espaço para incluirmos a natureza. Agora conseguimos um financiamento do BNDES para fazer o Museu da Natureza, que vai ficar na frente da Pedra Furada, no município Coronel José Dias. Neste espaço vai ser mostrada como na região se formou a planície, no período pré-cambriano, quando (o continente) se separou da África. O mar chegava até aqui. São Raimundo Nonato era praia e então houve um movimento tectônico muito grande que jogou o mar para o Ceará e se formou este planalto, com paredões e estes sítios, onde os homens fizeram todas as pinturas. O espaço ainda vai mostrar todo este processo, desde o fundo do mar e a vegetação com recursos tecnológicos e fósseis marinhos e da megafauna, como a preguiça-gigante, que tinha por volta de cinco metros. Mostrará a evolução do clima, que era tropical úmido, há 10 mil anos atrás, até chegar ao Semiárido, à Caatinga. O valor estimado é de cerca de R$ 14 milhões e a construção começará após a homologação do aeroporto.
Qual é a sua perspectiva hoje para a sua sucessão na condução dos trabalhos da Fumdham?
Os meus sucessores serão todos os profissionais que já trabalham na Fumdham. Ao mesmo tempo, a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) lançou os cursos de Arqueologia e de Ciências da Natureza, nas proximidades do Museu e do Centro Cultural, e está formando várias pessoas da região que não tinham dinheiro para estudar fora e poderão também ingressar neste trabalho. A França também continua com a missão permanente de pesquisa aqui anualmente que atua em conjunto com equipes brasileiras.
A senhora é conhecida por ser uma pessoa combativa e exigente para a conservação da região. Todo este esforço vale a pena?
É a minha maneira de ser. Não se pode fazer um grande país se a gente abaixa e cabeça e deixa o governo fazer o que quer. O Brasil está em situação catastrófica. Falta infraestrutura. Às vezes, ficamos cinco dias sem internet por aqui. Há muitas oscilações de energia e as estradas são péssimas. Há muito a melhorar.