Além da migração maciça para as cidades, chama atenção a disparidade nos números de homens e mulheres. Que efeitos isso trará para a China ainda está para ser desvendado
Ano passado estive na China por cinco semanas, tempo bastante para me localizar e para me perder por lá. Foi a terceira vez que visitei o país mais populoso do mundo e a primeira que estive em Weihai, cidade natal de meu avô Wong Chung Chun, que há 56 anos veio de mala e cuia para o Brasil. Quando voltei de viagem, ele perguntou: o que você pensa da China? Assim como Marcelo Gleiser em seu livro A Ilha do Conhecimento, imagino que, quanto mais sabemos sobre o Império do Meio (significado de China em mandarim), maior o nosso desconhecimento.
Um dos aspectos que mais me impressionaram diz respeito às escalas, urbanização e demografia. Até 1978, a China foi majoritariamente rural, com mais de 80% da população no campo. Desde 2011, mais da metade da população vive nas cidades e até 2025 serão 70% da população. Esse planejamento do governo central movimentará mais 250 milhões de trabalhadores rurais para as cidades, parte de um esforço de reorientação da economia para o incremento do consumo interno. De acordo com levantamento da Universidade de Tianjin, entre 2000 e 2010, mais de 1 milhão de vilas rurais desapareceram, o que resultou no sumiço de cerca de 300 vilarejos por dia. Com isso, perdeu-se muito do patrimônio cultural imaterial desses lugares. (Veja aqui)
Neste contexto, dois documentários chamam atenção. O curta Down to the Countryside narra a emergência de um movimento de residentes urbanos retornando ao campo em busca de uma vida mais simples e próxima da natureza. Essas pessoas acreditam que uma China rural qualificada e com pessoas criativas é essencial para a prosperidade do país e investem seus recursos para fazer do campo um espaço vivo.
O outro documentário — The Land of Many Palaces — retrata Ordos Kangbashi, a mais famosa das cidades fantasmas chinesas, construída nos arredores de uma promissora mina de carvão em uma parte remota da China e para onde milhares de agricultores estão sendo realocados. Como parte dos fazendeiros não está totalmente convencida dessa mudança, em especial pela incerteza do valor de compensação por suas terras (na China toda terra pertence ao governo), é trabalho de oficiais do governo vender o estilo de vida urbano. O que envolve auxiliar os novos moradores com treinamentos de como usar o aquecedor do banho, a tevê a cabo com 100 canais, não esquecer de desligar o gás do novo fogão, não cuspir no chão e aguardar o sinal verde para atravessar.
Uma das pessoas mais interessantes que conheci na viagem foi a repórter de guerra Karin Müller, em um mosteiro de Emei Shan. Em uma de nossas conversas ela mencionou um dado revelador sobre a demografia chinesa e os chamados “galhos vazios”: como decorrência da política do filho único, somada à antiga tradição da etnia Han (que corresponde a mais de 90% da população) de preferência por filhos homens — pois estes carregam o nome da família e são os responsáveis por cuidar dos pais quando velhos —, a proporção de gêneros entre as crianças de 0 a 15 anos hoje é de 117 meninos para 100 meninas. Uma proporção normal seria de 105 moços para 100 moças.
Com isso, 34 milhões de jovens adultos chineses terão parcas chances, ou nenhuma, de encontrar uma parceira chinesa. A questão é tão séria que, em quase todas grandes cidades da China, pais reúnem-se em parques para anunciar seus filhos como bons partidos em uma espécie de feira de casamento. No dia 11/11 (um é o número solitário) celebra- se o dia do solteiro, data em que inúmeros eventos acontecem na tentativa de promover novos casais.
Além disso, os ‘galhos vazios’ também são considerados elementos voláteis na sociedade, isto é, caso se agreguem a movimentos políticos, passam a constituir uma ameaça à estabilidade social aos olhos do próprio governo. Nesse sentido, os dois casos representados nos documentários são projetos importantes para a China, visto que uma das maiores motivações para o êxodo rural ou a permanência no campo encontra-se na representação e realização de sucesso — um bom emprego que aumente as chances de encontrar uma esposa.
Todavia, na tentativa de urbanizar uma região ou inovar no campo a partir do zero, é evidente que essa lógica não acontece de imediato. Talvez ainda seja cedo para dizer se a nova cidade ou se o movimento de retorno ao campo prosperarão. A esperança é que o fluxo de pessoas em ambos casos gere um ponto de inflexão, criando demanda por bens e serviços e levando a formação de um fluxo de almas reais tanto para as cidades fantasmas da China quanto para as cada vez mais abandonadas vilas rurais. Difícil desvendar este momento de tantas mudanças, em ritmo acelerado e de magnitudes tão desproporcionais. Talvez a melhor resposta que possa oferecer a meu avô esteja mesmo no Tao: conhecer o Não-saber é elevação.
*Gestor do Fundo Zona Leste Sustentável e membro do Conselho Editorial de PÁGINA22[:en]Além da migração maciça para as cidades, chama atenção a disparidade nos números de homens e mulheres. Que efeitos isso trará para a China ainda está para ser desvendado
Ano passado estive na China por cinco semanas, tempo bastante para me localizar e para me perder por lá. Foi a terceira vez que visitei o país mais populoso do mundo e a primeira que estive em Weihai, cidade natal de meu avô Wong Chung Chun, que há 56 anos veio de mala e cuia para o Brasil. Quando voltei de viagem, ele perguntou: o que você pensa da China? Assim como Marcelo Gleiser em seu livro A Ilha do Conhecimento, imagino que, quanto mais sabemos sobre o Império do Meio (significado de China em mandarim), maior o nosso desconhecimento.
Um dos aspectos que mais me impressionaram diz respeito às escalas, urbanização e demografia. Até 1978, a China foi majoritariamente rural, com mais de 80% da população no campo. Desde 2011, mais da metade da população vive nas cidades e até 2025 serão 70% da população. Esse planejamento do governo central movimentará mais 250 milhões de trabalhadores rurais para as cidades, parte de um esforço de reorientação da economia para o incremento do consumo interno. De acordo com levantamento da Universidade de Tianjin, entre 2000 e 2010, mais de 1 milhão de vilas rurais desapareceram, o que resultou no sumiço de cerca de 300 vilarejos por dia. Com isso, perdeu-se muito do patrimônio cultural imaterial desses lugares. (Veja aqui)
Neste contexto, dois documentários chamam atenção. O curta Down to the Countryside narra a emergência de um movimento de residentes urbanos retornando ao campo em busca de uma vida mais simples e próxima da natureza. Essas pessoas acreditam que uma China rural qualificada e com pessoas criativas é essencial para a prosperidade do país e investem seus recursos para fazer do campo um espaço vivo.
O outro documentário — The Land of Many Palaces — retrata Ordos Kangbashi, a mais famosa das cidades fantasmas chinesas, construída nos arredores de uma promissora mina de carvão em uma parte remota da China e para onde milhares de agricultores estão sendo realocados. Como parte dos fazendeiros não está totalmente convencida dessa mudança, em especial pela incerteza do valor de compensação por suas terras (na China toda terra pertence ao governo), é trabalho de oficiais do governo vender o estilo de vida urbano. O que envolve auxiliar os novos moradores com treinamentos de como usar o aquecedor do banho, a tevê a cabo com 100 canais, não esquecer de desligar o gás do novo fogão, não cuspir no chão e aguardar o sinal verde para atravessar.
Uma das pessoas mais interessantes que conheci na viagem foi a repórter de guerra Karin Müller, em um mosteiro de Emei Shan. Em uma de nossas conversas ela mencionou um dado revelador sobre a demografia chinesa e os chamados “galhos vazios”: como decorrência da política do filho único, somada à antiga tradição da etnia Han (que corresponde a mais de 90% da população) de preferência por filhos homens — pois estes carregam o nome da família e são os responsáveis por cuidar dos pais quando velhos —, a proporção de gêneros entre as crianças de 0 a 15 anos hoje é de 117 meninos para 100 meninas. Uma proporção normal seria de 105 moços para 100 moças.
Com isso, 34 milhões de jovens adultos chineses terão parcas chances, ou nenhuma, de encontrar uma parceira chinesa. A questão é tão séria que, em quase todas grandes cidades da China, pais reúnem-se em parques para anunciar seus filhos como bons partidos em uma espécie de feira de casamento. No dia 11/11 (um é o número solitário) celebra- se o dia do solteiro, data em que inúmeros eventos acontecem na tentativa de promover novos casais.
Além disso, os ‘galhos vazios’ também são considerados elementos voláteis na sociedade, isto é, caso se agreguem a movimentos políticos, passam a constituir uma ameaça à estabilidade social aos olhos do próprio governo. Nesse sentido, os dois casos representados nos documentários são projetos importantes para a China, visto que uma das maiores motivações para o êxodo rural ou a permanência no campo encontra-se na representação e realização de sucesso — um bom emprego que aumente as chances de encontrar uma esposa.
Todavia, na tentativa de urbanizar uma região ou inovar no campo a partir do zero, é evidente que essa lógica não acontece de imediato. Talvez ainda seja cedo para dizer se a nova cidade ou se o movimento de retorno ao campo prosperarão. A esperança é que o fluxo de pessoas em ambos casos gere um ponto de inflexão, criando demanda por bens e serviços e levando a formação de um fluxo de almas reais tanto para as cidades fantasmas da China quanto para as cada vez mais abandonadas vilas rurais. Difícil desvendar este momento de tantas mudanças, em ritmo acelerado e de magnitudes tão desproporcionais. Talvez a melhor resposta que possa oferecer a meu avô esteja mesmo no Tao: conhecer o Não-saber é elevação.
*Gestor do Fundo Zona Leste Sustentável e membro do Conselho Editorial de PÁGINA22