Tentar explicar a China como um país agarrado a tradições milenares significa cometer mais um dos clichês que não refletem a realidade. Lá, a diversidade suplanta a ideia de uma identidade única
Se, como dizia Tom Jobim, “o Brasil não é para principiantes”, a China exige, no mínimo, nível sênior. Trata-se de um país superlativo sob praticamente qualquer ponto de vista. Basta desfiar alguns dados para deixar isso evidente: são quase 9,6 milhões de quilômetros quadrados (3º maior do mundo); mais de 1,3 bilhão de habitantes (1º do mundo) e, praticamente, 2.200 anos de história (desde a unificação da China Imperial, em 221 a.C.), ou cerca de 5 mil anos, se contarmos a data de início das primeiras dinastias. Números pra ninguém botar defeito. Mas, nas últimas três ou quatro décadas, uma quarta cifra tem roubado a cena – o Produto Interno Bruto (PIB).
Desde que Deng Xiaoping [1] iniciou, no fim dos anos 1970, o processo de reforma que deu origem ao sui generis socialismo de mercado que se pratica por lá hoje em dia, o país decolou. De 1977 para cá, o crescimento anual da economia chinesa só ficou abaixo dos 5% em dois anos – 1989 e 1990 [2].
O resultado é que, em 2010, o país superou o Japão e assumiu o posto de segunda maior economia do planeta. Paralelamente, isso tem alimentado um processo impressionante de transformação social, com a proporção de chineses vivendo na miséria caindo de 60% em 1990 para módicos 12% no ano passado [3].
[1] Deng Xiaoping foi o chefe do Partido Comunista Chinês do fim dos anos 1970 até o fim dos anos 1980. Ele foi o principal responsável pelas reformas prómercado
[2] Os dados podem ser encontrados aqui
[3] Acesse o relatório de acompanhamento dos Objetivos do Milênio
DESCONHECIDA
Apesar disso tudo, a China continua uma ilustre desconhecida para boa parte do mundo – ou, pelo menos, para a porção ocidental. Não facilita nada o fato de o país estar embalado em uma camada espessa de clichês.
A mítica da China está firmemente cravada no imaginário ocidental desde, pelo menos, o fim do século XIII, quando o explorador italiano Marco Polo publicou o Livro das Maravilhas, narrando suas viagens. Tempo mais que o bastante para que o Ocidente inventasse sua própria versão para o país. “Essa visão do ‘exotismo’ [da China] foi muito promovida no século XIX, como forma de afirmar um discurso colonialista. Vivemos um rescaldo desse discurso”, opina o historiador André Bueno, da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
“Um dos maiores [clichês sobre a China] é pensar que existe uma ‘personalidade’ chinesa”, resume Jeffrey Wasserstrom, autor de A China no século XXI: O que todo mundo precisa saber. “Subestimamos muito a quantidade de variação que há dentro da China. Existem diferenças regionais enormes, chineses de Xangai têm uma série de ideias negativas sobre os de Pequim e vice-versa; quem vive nas cidades se vê como superior a quem mora no campo”, prossegue.
O princípio “um país, dois sistemas” foi formulado pelo ex secretário-geral do Partido Comunista, Deng Xiaoping, para reassegurar aos moradores de Hong Kong que eles continuariam vivendo sob o sistema capitalista
CIVILIZAÇÃO
Toda essa diversidade e grandeza levou um dos mais proeminentes estudiosos da ascensão chinesa, o economista inglês Martin Jacques, a especular que a China não pode ser corretamente compreendida usando o conceito de Estado-Nação. Ela seria uma civilização [4].
[4] Veja a palestra do autor no TED
Segundo ele, isso explicaria a facilidade com que o país tolera contradições como no caso do princípio “um país, dois sistemas”, criado para dar conta da reintegração de Hong Kong [5]. “Quase ninguém no Ocidente deu muito crédito a essa máxima; a presunção era que Hong Kong se tornaria como o resto da China. (…) Mas, como um Estado-Civilização, a lógica chinesa é bem diferente. Como a China é vasta e incorpora tanta diversidade, ser flexível é uma necessidade”, explica o autor [6].
[5] Hong Kong permaneceu como colônia britânica de 1842 até 1997, quando voltou do domínio chinês
[6] Mais aqui
Para ele, tudo se resume a um dilema que perpassa a história chinesa: como manter a unidade de um território vasto e uma população imensa? Para Jacques, a unidade se tornou o valor central da cultura chinesa. “Manter a unidade, coesão e integridade da civilização chinesa – do Estado-Civilização – é entendida [pela população] como a maior prioridade política e é vista como o dever sacrossanto do governo chinês”, continua o economista.
Para o bem e para o mal, esse defensor é, no momento, o Partido Comunista Chinês (PCC), que tem monopólio absoluto do governo desde que bateu os simpatizantes do Kuomintang, em 1949. Nesses mais de 60 anos de ditadura, os comunistas protagonizaram episódios que eles mesmos assumem como desastrosos, como o Grande Salto À Frente [7], a Revolução Cultural [8] e, mais recentemente, o Massacre de Tiananmen [9].
[7] Campanha que tentou industrializar a China em tempo recorde a partir de 1958. Fracassou desastrosamente, levando à Grande Fome, que matou milhões entre 1958 e 1961
[8] Período marcado pelo endurecimento da repressão contra quem fosse percebido como um crítico da liderança de Mao sobre o PCC
[9] Também conhecido como Massacre da Praça da Paz Celestial. Quando o governo chinês reprimiu violentamente uma série de protestos estudantis em junho de 1989
Tanto que os detratores do comunismo chinês gostam de ressaltar que o sucesso econômico só veio depois que o país se abriu ao capitalismo. Mas a professora da UFRJ Valéria Ribeiro ressalta que não se tratou de capitulação incondicional. “A China mantém os planos quinquenais onde são definidas metas e diretrizes. A postura do Estado em relação à economia também nunca mudou. Nesse sentido, Deng Xiaoping não chegou a propor uma ruptura”, analisa. Além disso, a economia de mercado não é bem uma novidade por aquelas bandas. “O desenvolvimento industrial ao longo do Rio Yang-tsé era uma coisa incrível já no século XVII e, como eles não tinham feudos, o comércio já era livre muito antes que no Ocidente”, pondera o coordenador do Grupo de Estudos Brasil-China da Unicamp, o sociólogo Tom Dwyer.
NOVO CONFUCIONISMO
Para dar conta dos novos tempos, o partido tem se esmerado para se reinventar e mostrar uma face mais amigável. Até alguns de seus críticos mais contumazes reconhecem que tem havido progresso. “Há problemas, mas, se você olhar para as sentenças que os dissidentes vêm recebendo, não é mais tão ruim quanto já foi. Não acho que [o Partido Comunista Chinês] continue tão brutal”, admite, com certa cautela, o pesquisador da Anistia Internacional, William Nee, que destaca que membros proeminentes do PCC – inclusive o secretário-geral, Xi Jinping – têm saído em defesa da noção de império da lei [10]. Contudo, Nee ressalta que esse legalismo não deve ser visto como um rompimento com a tradição autocrática do comunismo chinês. “Eles querem que a justiça funcione para casos como disputas comerciais, mas o PCC continua no controle do judiciário”, completa.
[10] Princípio legal segundo o qual todos, inclusive o próprio governo, estão sujeitos às leis
Nesse esforço para aparar arestas, o PCC tem revisitado os preceitos do pensamento de Confúcio [11] com sua ênfase na ordem, hierarquia e harmonia. “Durante milhares de anos, as filosofias de ‘harmonia’ , ‘benevolência’ e ‘cortesia’ de Confúcio têm estado profundamente enraizadas na cultura chinesa. Elas servem como diretrizes para o comportamento das pessoas até hoje na China contemporânea”, explica a coordenadora pedagógica do Instituto Confúcio [12], Cai Lei.
[11] Confúcio viveu entre 551 e 479 a.C. e foi um dos maiores filósofos de todos os tempos. Seus ensinamentos sobre moralidade pessoal e governamental continuam particularmente influentes no pensamento chinês
[12] O Instituto Confúcio é uma rede mantida pelo Ministério da Educação da China para promover o ensino da língua e divulgar a cultura chinesa. Desde que foi fundado, em 2004, já está presente em 471 localidades mundo afora. No Brasil o Instituto Confúcio opera em parceria com a Unesp
“É o chamado Novo Confucionismo”, afirma André Bueno. Ele especula que o partido está redesenhando o país na forma de uma república burocrática, na qual os cargos do governo são preenchidos por funcionários públicos de carreira que tenham capacidade técnica e habilidade política.
“A China é uma civilização burocrática, desde a época imperial. Não é um sistema perfeito, mas os chineses o reconhecem como relativamente eficaz. A ideia de eleições diretas em que alguém sem qualquer qualificação pode assumir um cargo importante parece temerária para eles”, arremata.
Vale lembrar que, justamente por influência do confucionismo, a China foi o primeiro país do mundo a promover concurso público para a seleção de autoridades. A prática remonta aos tempos da Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.). “Enquanto, na Europa, o poder era hereditário, eles já realizavam concursos. São muito mais modernos que o Ocidente sob esse ponto de vista”, diz Dwyer.
ESTABILIDADE INSTÁVEL
Embora o confucionismo tenha se tornado, por assim dizer, a versão oficial da China, ele está longe de esgotar o assunto. “A noção de que a cultura chinesa deseja estabilidade e ordem é outro estereótipo. Certamente existe uma linha que valoriza essas coisas, mas, na cultura popular, temos uma outra linha que é praticamente oposta a essa e gira em torno da noção de que o mundo está de ponta-cabeça”, analisa Wasserstrom.
Dois dos textos mais relevantes da literatura chinesa representam bem esses dois “polos” complementares: em O Sonho da Câmara Vermelha, retratam-se os dramas de uma família aristocrática tradicional muito hierárquica do século XVII; já no épico do século XIV Jornada ao Oeste, são narradas as aventuras do Rei Macaco, uma semidivindade anárquica capaz de desafiar até os deuses. Ainda segundo Wasserstrom, manter o pêndulo da cultura chinesa de seu lado mais ordeiro envolve “muito esforço governamental para enfatizar as tradições duradoras e as raízes históricas do povo chinês”, sentencia.
Tentar explicar a China como um país agarrado a tradições milenares significa prender-se a mais um dos clichês que não refletem a realidade.
É evidente que as tradições ainda estão por lá, e contam bastante, mas o país é bem mais do que isso. Em meados de 2013 uma fabricante de insumos usados pela medicina chinesa tradicional chamada Guizhentang Pharmaceutical viu sua oferta de ações na Bolsa de Valores de Shenzhen virar um desastre de relações públicas quando grupos de defesa dos animais e celebridades iniciaram protestos contra os planos da companhia de triplicar a produção de bile de urso [13]. No fim, a empresa foi obrigada a recuar.
[13] A medicina tradicional chinesa considera que a bile do ursonegro-asiático é um remédio especialmente eficaz contra doenças dos olhos, fígado e vesícula. O quilo da substância chega a custar US$ 24 mil
AUTORITARISMO “SOFT”
“A China não tem consistência nenhuma! Lá é tudo misturado e está em transformação total a toda hora”, resume o sociólogo Tom Dwyer.
Na opinião de Wasserstrom, uma dessas transformações pode, muito bem, estar dando origem a “tipo novo de autoritarismo”. “O governo chinês propôs um novo tipo de acordo social e deu mais escolhas para as pessoas em suas vidas privadas em troca de manter o monopólio do poder”, complementa.
“Essa foi a solução que eles encontraram”, concorda Dwyer, referindo-se à fórmula de industrialização acelerada, crescimento econômico e abertura. “Um amigo, que é professor na Universidade de Pequim, me disse que, antes de Tiananmen, todos os alunos queriam discutir política, mas, depois, eles passaram a falar só em ficar ricos”, completa.
“Ficar milionário, de preferência rapidamente, é algo que está na fala das pessoas e elas buscam isso de uma forma muito agressiva trabalhando muito”, opina Ling Wang, sócia da Win Education Business Support – consultoria paulistana cujo negócio é construir pontes entres empresas brasileiras e chinesas.
Não é coincidência que, em 2012, a China se tornou o maior mercado nacional para produtos de marcas consideradas de luxo, com vendas que, segundo relatório publicado pela McKinsey&Company em dezembro de 2012 [14], deverão chegar a um terço do total global desse mercado.
[14] Veja o relatório da McKinsey&Company
É uma mudança bastante radical de perspectiva – e de timing – para um país que, até os anos 1990, era essencialmente rural e pobre. De acordo com a Divisão de População da ONU, em 1995 só um terço da população chinesa vivia na cidade (no Brasil eram 77,6%), vinte anos depois já são 55,6%. “Muitas das raízes [culturais] da China rural já estão perdidas”, lamenta Leah Thompson, artista multimídia e diretora associada do Centro para Relações EUA-China da Asia Society. E nada indica que o processo esteja para arrefecer. “O governo central vê na urbanização uma chave para o crescimento econômico”, explica Leah, que codirigiu o documentário Down to the Countryside[15] , que conta a cruzada pessoal do artista e curador, Ou Ning, para revitalizar o vilarejo rural de Bishan – localizado a cerca de 400 quilômetros de Xangai.
[15] Veja o vídeo
No balanço de perdas e ganhos, os chineses parecem convencidos de que ainda estão na vantagem aderindo ao modelo atual. O mesmo estudo da McKinsey apontou que – ao menos entre as camadas mais afluentes – 74% estão confiantes que sua renda vá subir “significativamente” nos próximos cinco anos. Nos EUA, a proporção é de 46%. “É uma questão de preço a pagar. Não criticar o partido é algo que eles veem como um preço pequeno pelas liberdades [econômicas] que conquistaram”, completa Dwyer.
E há outras liberdades de que os chineses gozam e estão ausentes em muitos países democráticos. Caso da segurança pública incomparavelmente melhor que a do Brasil. “Essa é uma diferença real. Toda vez que estou no metrô de Xangai e vejo uma mulher ocidental agarrada em sua bolsa, sei de cara que ela é brasileira”, conta Ling.
Os chineses também podem encontrar bolsões de liberdade na internet, apesar de toda a censura estatal. “Posts com conteúdo sensível são tirados do ar em questão de minutos. Se for um usuário com muitos seguidores ou um passado de ativismo, há o risco de prisão”, explica o ativista digital que usa o pseudônimo de Percy Alpha e é cofundador da GreatFire.org – grupo que monitora sites e termos de busca bloqueados na internet chinesa.
Contudo, com 650 milhões de internautas, dos quais mais de 300 milhões são ativos em blogs e microblogs, a dificuldade em controlar tudo o tempo todo é evidente. Foi o que aconteceu em julho de 2011 quando dois trens de alta velocidade colidiram na cidade de Wenzhou, matando 40 pessoas. Embora o primeiro instinto do governo tenha sido acobertar o acontecimento, a revolta em torno do caso foi o bastante para romper a barreira de silêncio. “O governo nunca pretendeu que poderia paralisar totalmente a discussão política”, opina Alpha.
Bloqueada ou não, a internet tem se tornado o cimento de uma geração que quer transformar a China tão intensamente quanto sua predecessora. Segundo o cofundador da revista digital Neocha Edge – que destaca novos artistas e a indústria criativa do país –, Sean Leow, há um crescente desconforto entre os membros da geração que foi criada durante os anos 1980 e, portanto, acompanhou o processo de ascensão político econômico do país de que a imagem da China não passa de um enorme celeiro industrial onde o Ocidente pode fabricar produtos baratos.
O que muitos desses “criativos”, como Leow os chama, estão fazendo é remixar elementos da cultura tradicional com influências de fora. “O que estamos tentando fazer é pegar os pedaços [da cultura tradicional chinesa] e as influências modernas que temos agora para criar uma cultura criativa que a China possa chamar de sua”, resume.
Essa nova geração chega em um momento crucial em que a China começa a pensar qual
será seu próximo passo. Ir do mero industrialismo rumo a uma economia mais inovadora e criativa foi, justamente, um dos focos da 3ª Plenária do Congresso do Partido Comunista. “O documento final listou mais de 60 reformas econômicas, cujo principal objetivo seria promover essa transição. Certamente esse vai ser um processo difícil para eles, mas o governo tem clareza de que há essa necessidade”, avalia Nee.
Tom Dwyer parece ter poucas dúvidas de que, no fim, eles vão se sair bem. “Os chineses sempre foram muito pragmáticos. Eles olham para suas raízes e tradições, mas sabem que elas não são suficientes em um mundo que é muito maior do que aquilo que eles conhecem desde sempre”, encerra.[:en]Tentar explicar a China como um país agarrado a tradições milenares significa cometer mais um dos clichês que não refletem a realidade. Lá, a diversidade suplanta a ideia de uma identidade única
Se, como dizia Tom Jobim, “o Brasil não é para principiantes”, a China exige, no mínimo, nível sênior. Trata-se de um país superlativo sob praticamente qualquer ponto de vista. Basta desfiar alguns dados para deixar isso evidente: são quase 9,6 milhões de quilômetros quadrados (3º maior do mundo); mais de 1,3 bilhão de habitantes (1º do mundo) e, praticamente, 2.200 anos de história (desde a unificação da China Imperial, em 221 a.C.), ou cerca de 5 mil anos, se contarmos a data de início das primeiras dinastias. Números pra ninguém botar defeito. Mas, nas últimas três ou quatro décadas, uma quarta cifra tem roubado a cena – o Produto Interno Bruto (PIB).
Desde que Deng Xiaoping [1] iniciou, no fim dos anos 1970, o processo de reforma que deu origem ao sui generis socialismo de mercado que se pratica por lá hoje em dia, o país decolou. De 1977 para cá, o crescimento anual da economia chinesa só ficou abaixo dos 5% em dois anos – 1989 e 1990 [2].
O resultado é que, em 2010, o país superou o Japão e assumiu o posto de segunda maior economia do planeta. Paralelamente, isso tem alimentado um processo impressionante de transformação social, com a proporção de chineses vivendo na miséria caindo de 60% em 1990 para módicos 12% no ano passado [3].
[1] Deng Xiaoping foi o chefe do Partido Comunista Chinês do fim dos anos 1970 até o fim dos anos 1980. Ele foi o principal responsável pelas reformas prómercado
[2] Os dados podem ser encontrados aqui
[3] Acesse o relatório de acompanhamento dos Objetivos do Milênio
DESCONHECIDA
Apesar disso tudo, a China continua uma ilustre desconhecida para boa parte do mundo – ou, pelo menos, para a porção ocidental. Não facilita nada o fato de o país estar embalado em uma camada espessa de clichês.
A mítica da China está firmemente cravada no imaginário ocidental desde, pelo menos, o fim do século XIII, quando o explorador italiano Marco Polo publicou o Livro das Maravilhas, narrando suas viagens. Tempo mais que o bastante para que o Ocidente inventasse sua própria versão para o país. “Essa visão do ‘exotismo’ [da China] foi muito promovida no século XIX, como forma de afirmar um discurso colonialista. Vivemos um rescaldo desse discurso”, opina o historiador André Bueno, da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
“Um dos maiores [clichês sobre a China] é pensar que existe uma ‘personalidade’ chinesa”, resume Jeffrey Wasserstrom, autor de A China no século XXI: O que todo mundo precisa saber. “Subestimamos muito a quantidade de variação que há dentro da China. Existem diferenças regionais enormes, chineses de Xangai têm uma série de ideias negativas sobre os de Pequim e vice-versa; quem vive nas cidades se vê como superior a quem mora no campo”, prossegue.
O princípio “um país, dois sistemas” foi formulado pelo ex secretário-geral do Partido Comunista, Deng Xiaoping, para reassegurar aos moradores de Hong Kong que eles continuariam vivendo sob o sistema capitalista
CIVILIZAÇÃO
Toda essa diversidade e grandeza levou um dos mais proeminentes estudiosos da ascensão chinesa, o economista inglês Martin Jacques, a especular que a China não pode ser corretamente compreendida usando o conceito de Estado-Nação. Ela seria uma civilização [4].
[4] Veja a palestra do autor no TED
Segundo ele, isso explicaria a facilidade com que o país tolera contradições como no caso do princípio “um país, dois sistemas”, criado para dar conta da reintegração de Hong Kong [5]. “Quase ninguém no Ocidente deu muito crédito a essa máxima; a presunção era que Hong Kong se tornaria como o resto da China. (…) Mas, como um Estado-Civilização, a lógica chinesa é bem diferente. Como a China é vasta e incorpora tanta diversidade, ser flexível é uma necessidade”, explica o autor [6].
[5] Hong Kong permaneceu como colônia britânica de 1842 até 1997, quando voltou do domínio chinês
[6] Mais aqui
Para ele, tudo se resume a um dilema que perpassa a história chinesa: como manter a unidade de um território vasto e uma população imensa? Para Jacques, a unidade se tornou o valor central da cultura chinesa. “Manter a unidade, coesão e integridade da civilização chinesa – do Estado-Civilização – é entendida [pela população] como a maior prioridade política e é vista como o dever sacrossanto do governo chinês”, continua o economista.
Para o bem e para o mal, esse defensor é, no momento, o Partido Comunista Chinês (PCC), que tem monopólio absoluto do governo desde que bateu os simpatizantes do Kuomintang, em 1949. Nesses mais de 60 anos de ditadura, os comunistas protagonizaram episódios que eles mesmos assumem como desastrosos, como o Grande Salto À Frente [7], a Revolução Cultural [8] e, mais recentemente, o Massacre de Tiananmen [9].
[7] Campanha que tentou industrializar a China em tempo recorde a partir de 1958. Fracassou desastrosamente, levando à Grande Fome, que matou milhões entre 1958 e 1961
[8] Período marcado pelo endurecimento da repressão contra quem fosse percebido como um crítico da liderança de Mao sobre o PCC
[9] Também conhecido como Massacre da Praça da Paz Celestial. Quando o governo chinês reprimiu violentamente uma série de protestos estudantis em junho de 1989
Tanto que os detratores do comunismo chinês gostam de ressaltar que o sucesso econômico só veio depois que o país se abriu ao capitalismo. Mas a professora da UFRJ Valéria Ribeiro ressalta que não se tratou de capitulação incondicional. “A China mantém os planos quinquenais onde são definidas metas e diretrizes. A postura do Estado em relação à economia também nunca mudou. Nesse sentido, Deng Xiaoping não chegou a propor uma ruptura”, analisa. Além disso, a economia de mercado não é bem uma novidade por aquelas bandas. “O desenvolvimento industrial ao longo do Rio Yang-tsé era uma coisa incrível já no século XVII e, como eles não tinham feudos, o comércio já era livre muito antes que no Ocidente”, pondera o coordenador do Grupo de Estudos Brasil-China da Unicamp, o sociólogo Tom Dwyer.
NOVO CONFUCIONISMO
Para dar conta dos novos tempos, o partido tem se esmerado para se reinventar e mostrar uma face mais amigável. Até alguns de seus críticos mais contumazes reconhecem que tem havido progresso. “Há problemas, mas, se você olhar para as sentenças que os dissidentes vêm recebendo, não é mais tão ruim quanto já foi. Não acho que [o Partido Comunista Chinês] continue tão brutal”, admite, com certa cautela, o pesquisador da Anistia Internacional, William Nee, que destaca que membros proeminentes do PCC – inclusive o secretário-geral, Xi Jinping – têm saído em defesa da noção de império da lei [10]. Contudo, Nee ressalta que esse legalismo não deve ser visto como um rompimento com a tradição autocrática do comunismo chinês. “Eles querem que a justiça funcione para casos como disputas comerciais, mas o PCC continua no controle do judiciário”, completa.
[10] Princípio legal segundo o qual todos, inclusive o próprio governo, estão sujeitos às leis
Nesse esforço para aparar arestas, o PCC tem revisitado os preceitos do pensamento de Confúcio [11] com sua ênfase na ordem, hierarquia e harmonia. “Durante milhares de anos, as filosofias de ‘harmonia’ , ‘benevolência’ e ‘cortesia’ de Confúcio têm estado profundamente enraizadas na cultura chinesa. Elas servem como diretrizes para o comportamento das pessoas até hoje na China contemporânea”, explica a coordenadora pedagógica do Instituto Confúcio [12], Cai Lei.
[11] Confúcio viveu entre 551 e 479 a.C. e foi um dos maiores filósofos de todos os tempos. Seus ensinamentos sobre moralidade pessoal e governamental continuam particularmente influentes no pensamento chinês
[12] O Instituto Confúcio é uma rede mantida pelo Ministério da Educação da China para promover o ensino da língua e divulgar a cultura chinesa. Desde que foi fundado, em 2004, já está presente em 471 localidades mundo afora. No Brasil o Instituto Confúcio opera em parceria com a Unesp
“É o chamado Novo Confucionismo”, afirma André Bueno. Ele especula que o partido está redesenhando o país na forma de uma república burocrática, na qual os cargos do governo são preenchidos por funcionários públicos de carreira que tenham capacidade técnica e habilidade política.
“A China é uma civilização burocrática, desde a época imperial. Não é um sistema perfeito, mas os chineses o reconhecem como relativamente eficaz. A ideia de eleições diretas em que alguém sem qualquer qualificação pode assumir um cargo importante parece temerária para eles”, arremata.
Vale lembrar que, justamente por influência do confucionismo, a China foi o primeiro país do mundo a promover concurso público para a seleção de autoridades. A prática remonta aos tempos da Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.). “Enquanto, na Europa, o poder era hereditário, eles já realizavam concursos. São muito mais modernos que o Ocidente sob esse ponto de vista”, diz Dwyer.
ESTABILIDADE INSTÁVEL
Embora o confucionismo tenha se tornado, por assim dizer, a versão oficial da China, ele está longe de esgotar o assunto. “A noção de que a cultura chinesa deseja estabilidade e ordem é outro estereótipo. Certamente existe uma linha que valoriza essas coisas, mas, na cultura popular, temos uma outra linha que é praticamente oposta a essa e gira em torno da noção de que o mundo está de ponta-cabeça”, analisa Wasserstrom.
Dois dos textos mais relevantes da literatura chinesa representam bem esses dois “polos” complementares: em O Sonho da Câmara Vermelha, retratam-se os dramas de uma família aristocrática tradicional muito hierárquica do século XVII; já no épico do século XIV Jornada ao Oeste, são narradas as aventuras do Rei Macaco, uma semidivindade anárquica capaz de desafiar até os deuses. Ainda segundo Wasserstrom, manter o pêndulo da cultura chinesa de seu lado mais ordeiro envolve “muito esforço governamental para enfatizar as tradições duradoras e as raízes históricas do povo chinês”, sentencia.
Tentar explicar a China como um país agarrado a tradições milenares significa prender-se a mais um dos clichês que não refletem a realidade.
É evidente que as tradições ainda estão por lá, e contam bastante, mas o país é bem mais do que isso. Em meados de 2013 uma fabricante de insumos usados pela medicina chinesa tradicional chamada Guizhentang Pharmaceutical viu sua oferta de ações na Bolsa de Valores de Shenzhen virar um desastre de relações públicas quando grupos de defesa dos animais e celebridades iniciaram protestos contra os planos da companhia de triplicar a produção de bile de urso [13]. No fim, a empresa foi obrigada a recuar.
[13] A medicina tradicional chinesa considera que a bile do ursonegro-asiático é um remédio especialmente eficaz contra doenças dos olhos, fígado e vesícula. O quilo da substância chega a custar US$ 24 mil
AUTORITARISMO “SOFT”
“A China não tem consistência nenhuma! Lá é tudo misturado e está em transformação total a toda hora”, resume o sociólogo Tom Dwyer.
Na opinião de Wasserstrom, uma dessas transformações pode, muito bem, estar dando origem a “tipo novo de autoritarismo”. “O governo chinês propôs um novo tipo de acordo social e deu mais escolhas para as pessoas em suas vidas privadas em troca de manter o monopólio do poder”, complementa.
“Essa foi a solução que eles encontraram”, concorda Dwyer, referindo-se à fórmula de industrialização acelerada, crescimento econômico e abertura. “Um amigo, que é professor na Universidade de Pequim, me disse que, antes de Tiananmen, todos os alunos queriam discutir política, mas, depois, eles passaram a falar só em ficar ricos”, completa.
“Ficar milionário, de preferência rapidamente, é algo que está na fala das pessoas e elas buscam isso de uma forma muito agressiva trabalhando muito”, opina Ling Wang, sócia da Win Education Business Support – consultoria paulistana cujo negócio é construir pontes entres empresas brasileiras e chinesas.
Não é coincidência que, em 2012, a China se tornou o maior mercado nacional para produtos de marcas consideradas de luxo, com vendas que, segundo relatório publicado pela McKinsey&Company em dezembro de 2012 [14], deverão chegar a um terço do total global desse mercado.
[14] Veja o relatório da McKinsey&Company
É uma mudança bastante radical de perspectiva – e de timing – para um país que, até os anos 1990, era essencialmente rural e pobre. De acordo com a Divisão de População da ONU, em 1995 só um terço da população chinesa vivia na cidade (no Brasil eram 77,6%), vinte anos depois já são 55,6%. “Muitas das raízes [culturais] da China rural já estão perdidas”, lamenta Leah Thompson, artista multimídia e diretora associada do Centro para Relações EUA-China da Asia Society. E nada indica que o processo esteja para arrefecer. “O governo central vê na urbanização uma chave para o crescimento econômico”, explica Leah, que codirigiu o documentário Down to the Countryside[15] , que conta a cruzada pessoal do artista e curador, Ou Ning, para revitalizar o vilarejo rural de Bishan – localizado a cerca de 400 quilômetros de Xangai.
[15] Veja o vídeo
No balanço de perdas e ganhos, os chineses parecem convencidos de que ainda estão na vantagem aderindo ao modelo atual. O mesmo estudo da McKinsey apontou que – ao menos entre as camadas mais afluentes – 74% estão confiantes que sua renda vá subir “significativamente” nos próximos cinco anos. Nos EUA, a proporção é de 46%. “É uma questão de preço a pagar. Não criticar o partido é algo que eles veem como um preço pequeno pelas liberdades [econômicas] que conquistaram”, completa Dwyer.
E há outras liberdades de que os chineses gozam e estão ausentes em muitos países democráticos. Caso da segurança pública incomparavelmente melhor que a do Brasil. “Essa é uma diferença real. Toda vez que estou no metrô de Xangai e vejo uma mulher ocidental agarrada em sua bolsa, sei de cara que ela é brasileira”, conta Ling.
Os chineses também podem encontrar bolsões de liberdade na internet, apesar de toda a censura estatal. “Posts com conteúdo sensível são tirados do ar em questão de minutos. Se for um usuário com muitos seguidores ou um passado de ativismo, há o risco de prisão”, explica o ativista digital que usa o pseudônimo de Percy Alpha e é cofundador da GreatFire.org – grupo que monitora sites e termos de busca bloqueados na internet chinesa.
Contudo, com 650 milhões de internautas, dos quais mais de 300 milhões são ativos em blogs e microblogs, a dificuldade em controlar tudo o tempo todo é evidente. Foi o que aconteceu em julho de 2011 quando dois trens de alta velocidade colidiram na cidade de Wenzhou, matando 40 pessoas. Embora o primeiro instinto do governo tenha sido acobertar o acontecimento, a revolta em torno do caso foi o bastante para romper a barreira de silêncio. “O governo nunca pretendeu que poderia paralisar totalmente a discussão política”, opina Alpha.
Bloqueada ou não, a internet tem se tornado o cimento de uma geração que quer transformar a China tão intensamente quanto sua predecessora. Segundo o cofundador da revista digital Neocha Edge – que destaca novos artistas e a indústria criativa do país –, Sean Leow, há um crescente desconforto entre os membros da geração que foi criada durante os anos 1980 e, portanto, acompanhou o processo de ascensão político econômico do país de que a imagem da China não passa de um enorme celeiro industrial onde o Ocidente pode fabricar produtos baratos.
O que muitos desses “criativos”, como Leow os chama, estão fazendo é remixar elementos da cultura tradicional com influências de fora. “O que estamos tentando fazer é pegar os pedaços [da cultura tradicional chinesa] e as influências modernas que temos agora para criar uma cultura criativa que a China possa chamar de sua”, resume.
Essa nova geração chega em um momento crucial em que a China começa a pensar qual
será seu próximo passo. Ir do mero industrialismo rumo a uma economia mais inovadora e criativa foi, justamente, um dos focos da 3ª Plenária do Congresso do Partido Comunista. “O documento final listou mais de 60 reformas econômicas, cujo principal objetivo seria promover essa transição. Certamente esse vai ser um processo difícil para eles, mas o governo tem clareza de que há essa necessidade”, avalia Nee.
Tom Dwyer parece ter poucas dúvidas de que, no fim, eles vão se sair bem. “Os chineses sempre foram muito pragmáticos. Eles olham para suas raízes e tradições, mas sabem que elas não são suficientes em um mundo que é muito maior do que aquilo que eles conhecem desde sempre”, encerra.