Sem escala nem monitoramento mais sistêmico dos efeitos diretos sobre as bacias hidrográficas, PSA ainda precisa de robustez para lidar com crise hídrica no Brasil
As montanhas de Catskills, a cerca de 200 quilômetros de Nova York, guardam uma das mais bem-sucedidas experiências do mundo de gestão de recursos hídricos seguindo o mecanismo de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), em que proprietários rurais recebem incentivos financeiros para que conservem os ambientes naturais capazes de prover serviços ecossistêmicos – como produção de água, conservação do solo e regulação do clima. No fim da década de 1990, após passar apuros com secas subsequentes, e com o objetivo de melhorar a qualidade da água, a prefeitura optou por colocar esforços e investimentos não em sistemas caros de tratamento de esgotos, mas em promover a conservação do manancial que abastece a metrópole americana.
A prefeitura nova-iorquina passou a comprar terras na região das montanhas e investiu na recuperação das matas que estavam degradadas. Além disso, estruturou sistemas simples de tratamento de efluentes nas propriedades rurais, para evitar que os cursos d’água continuassem a ser contaminados com o estrume das criações de animais. Os fazendeiros passaram a contar com a assistência rural especializada, de modo a tornar as propriedades mais produtivas sem degradar o ambiente, e aqueles que se comprometeram a recuperar suas matas ciliares passaram a receber uma compensação financeira anual.
SETE A UM
Em 15 anos, o programa, voluntário, obteve a adesão de 95% dos proprietários rurais, cobrindo uma área de 500 mil hectares em toda a bacia hidrográfica, que hoje conta com 75% de cobertura florestal. A água que brota dos milhares de córregos e nascentes em Catskills desce as montanhas, é armazenada em um sistema de reservatórios e, de tão pura, chega aos nova-iorquinos quase sem precisar de tratamento: passa apenas por filtragem, recebe cloro e flúor e pode ser bebida diretamente da torneira. De acordo com o Watershed Agricultural Council (WAC), entidade responsável pelo programa, cada US$ 1 investido nas florestas equivale à economia de US$ 7 nos custos com o tratamento de água.
A experiência bem-sucedida de Nova York inspirou iniciativas de PSA no Brasil. Desde 2005 vêm sendo realizados projetos piloto em São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo, Santa Catarina, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul, a maior parte inserida no programa Produtor de Água, da Agência Nacional de Águas (ANA), criado sob essa concepção. São programas de conservação de matas ciliares e nascentes para melhorar a qualidade e a quantidade da água que abastece as áreas urbanas.
Mas, apesar dos esforços, a ausência de escala e de um monitoramento mais sistêmico dos efeitos diretos sobre as bacias hidrográficas faz com que os resultados sejam ainda tímidos ou difíceis de serem mensurados. Na bacia do PCJ [1], o programa reúne desde 2006 parceiros como o governo estadual, as prefeituras de Joanópolis e Nazaré Paulista e a ONG The Nature Conservancy (TNC).
[1] Formada pelos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, que compõem o Sistema Cantareira
O pagamento aos proprietários rurais que preservam suas matas ciliares é feito com os recursos obtidos com a cobrança pelo uso da água na região. No entanto, a iniciativa surtiu pouco efeito perante a atual crise, em uma bacia que se mostra pouco resiliente aos efeitos climáticos e à acirrada disputa pelos seus recursos hídricos. De acordo com a Secretaria do Meio Ambiente (SMA) de São Paulo, existem em todo o Estado 3.290,4 hectares sob contratos de PSA, que abrangem 21 municípios – mas faltam dados que explicitem o impacto desses programas na qualidade e quantidade da água.
“As iniciativas de PSA que estão sendo realizadas no Brasil são louváveis, mas as metodologias aplicadas em muitos casos ainda carecem de robustez, o que pode gerar frustração para quem compra e para quem vende o serviço ambiental, no caso, a produção de água”, analisa Renato Armelin, coordenador do programa Sustentabilidade Global do GVces. Enquanto todos os programas de PSA ao redor do mundo monitoram o cumprimento das condições contratuais, são poucos os que avaliam os reais benefícios ambientais. E o Brasil não foge à regra. “É muito difícil avaliar o resultado de um programa de PSA sob uma ótica linear. Se um programa engajar 20% dos produtores rurais de uma bacia hidrográfica na conservação de nascentes, isso não significa que essa bacia terá 20% a mais de fluxo de água. Aliás, para se obter uma resposta positiva no corpo hídrico, é provável que seja necessário engajar mais de 80% dos proprietários rurais, como ocorreu em Nova York”, explica. Armelin alerta que o PSA não deve ser visto como a solução ideal para qualquer situação, e sim fazer parte de um conjunto de políticas, que inclui comando e controle.
Assistência técnica rural
Então, como estimular que produtores rurais deixem de desmatar as margens dos rios e conservem as nascentes sem o uso de instrumentos econômicos diretos? Nesse caso, a boa e velha assistência técnica rural poderia trazer resultados satisfatórios para aumentar a produtividade e a renda dos pequenos produtores, gerando resultados positivos para a conservação ambiental, segundo o pesquisador do GVces. “Há casos em que o produtor utiliza práticas tão rudimentares em sua propriedade que bastaria um trabalho dos órgãos de extensão rural com foco em produtividade, técnicas corretas de plantio e irrigação para aumentar sua renda”, afirma Armelin. Em paralelo, a assistência técnica rural também pode ajudar esse produtor a recuperar suas áreas de APP (Área de Preservação Permanente) e RL (Reserva Legal), garantindo benefícios ambientais extras.
A ferramenta do PSA está longe de ser uma unanimidade entre os movimentos sociais, como ficou evidente durante a Rio+20, em 2012, quando diversos grupos acusavam a estratégia, bem como o mercado de créditos de carbono, de ser parte de um processo de mercantilização da natureza e de ir contra os preceitos da Conferência de Estocolmo, de 1972, que estabeleceu o meio ambiente equilibrado como um direito destinado a todos, às gerações presentes e futuras. “Sob a ótica de Estocolmo, ninguém poderia se apropriar individualmente de um hectare de floresta nativa ou de uma função ecossistêmica de regulação do clima, e dispor desse serviço alienando-o ou arrendando a uma terceira pessoa”, afirma Larissa Ambrosano Packer [2], advogada da ONG Terra de Direitos.
[2] Autora do livro Novo Código Florestal e Pagamento por Serviços Ambientais – Regime Proprietário sobre os Bens Comuns (Juruá Editora, 2015)
Segundo ela, a proposta de valoração econômica dos serviços ecossistêmicos apresenta falhas, porque é produzida pelo mesmo modelo econômico que gerou o quadro de escassez dos recursos naturais. “Polêmicas à parte, o fato é que o Brasil recepcionou bem essa proposta de valoração econômica dos bens comuns”, diz Larissa. A prova é o novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), que prevê o uso de instrumentos financeiros para conservação, e também o Projeto de Lei nº 792/07, em tramitação, que pretende instituir a Política Nacional de PSA, com três instrumentos – política nacional, fundo federal e cadastro nacional de PSA.[:en]Sem escala nem monitoramento mais sistêmico dos efeitos diretos sobre as bacias hidrográficas, PSA ainda precisa de robustez para lidar com crise hídrica no Brasil
As montanhas de Catskills, a cerca de 200 quilômetros de Nova York, guardam uma das mais bem-sucedidas experiências do mundo de gestão de recursos hídricos seguindo o mecanismo de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), em que proprietários rurais recebem incentivos financeiros para que conservem os ambientes naturais capazes de prover serviços ecossistêmicos – como produção de água, conservação do solo e regulação do clima. No fim da década de 1990, após passar apuros com secas subsequentes, e com o objetivo de melhorar a qualidade da água, a prefeitura optou por colocar esforços e investimentos não em sistemas caros de tratamento de esgotos, mas em promover a conservação do manancial que abastece a metrópole americana.
A prefeitura nova-iorquina passou a comprar terras na região das montanhas e investiu na recuperação das matas que estavam degradadas. Além disso, estruturou sistemas simples de tratamento de efluentes nas propriedades rurais, para evitar que os cursos d’água continuassem a ser contaminados com o estrume das criações de animais. Os fazendeiros passaram a contar com a assistência rural especializada, de modo a tornar as propriedades mais produtivas sem degradar o ambiente, e aqueles que se comprometeram a recuperar suas matas ciliares passaram a receber uma compensação financeira anual.
SETE A UM
Em 15 anos, o programa, voluntário, obteve a adesão de 95% dos proprietários rurais, cobrindo uma área de 500 mil hectares em toda a bacia hidrográfica, que hoje conta com 75% de cobertura florestal. A água que brota dos milhares de córregos e nascentes em Catskills desce as montanhas, é armazenada em um sistema de reservatórios e, de tão pura, chega aos nova-iorquinos quase sem precisar de tratamento: passa apenas por filtragem, recebe cloro e flúor e pode ser bebida diretamente da torneira. De acordo com o Watershed Agricultural Council (WAC), entidade responsável pelo programa, cada US$ 1 investido nas florestas equivale à economia de US$ 7 nos custos com o tratamento de água.
A experiência bem-sucedida de Nova York inspirou iniciativas de PSA no Brasil. Desde 2005 vêm sendo realizados projetos piloto em São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo, Santa Catarina, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul, a maior parte inserida no programa Produtor de Água, da Agência Nacional de Águas (ANA), criado sob essa concepção. São programas de conservação de matas ciliares e nascentes para melhorar a qualidade e a quantidade da água que abastece as áreas urbanas.
Mas, apesar dos esforços, a ausência de escala e de um monitoramento mais sistêmico dos efeitos diretos sobre as bacias hidrográficas faz com que os resultados sejam ainda tímidos ou difíceis de serem mensurados. Na bacia do PCJ [1], o programa reúne desde 2006 parceiros como o governo estadual, as prefeituras de Joanópolis e Nazaré Paulista e a ONG The Nature Conservancy (TNC).
[1] Formada pelos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, que compõem o Sistema Cantareira
O pagamento aos proprietários rurais que preservam suas matas ciliares é feito com os recursos obtidos com a cobrança pelo uso da água na região. No entanto, a iniciativa surtiu pouco efeito perante a atual crise, em uma bacia que se mostra pouco resiliente aos efeitos climáticos e à acirrada disputa pelos seus recursos hídricos. De acordo com a Secretaria do Meio Ambiente (SMA) de São Paulo, existem em todo o Estado 3.290,4 hectares sob contratos de PSA, que abrangem 21 municípios – mas faltam dados que explicitem o impacto desses programas na qualidade e quantidade da água.
“As iniciativas de PSA que estão sendo realizadas no Brasil são louváveis, mas as metodologias aplicadas em muitos casos ainda carecem de robustez, o que pode gerar frustração para quem compra e para quem vende o serviço ambiental, no caso, a produção de água”, analisa Renato Armelin, coordenador do programa Sustentabilidade Global do GVces. Enquanto todos os programas de PSA ao redor do mundo monitoram o cumprimento das condições contratuais, são poucos os que avaliam os reais benefícios ambientais. E o Brasil não foge à regra. “É muito difícil avaliar o resultado de um programa de PSA sob uma ótica linear. Se um programa engajar 20% dos produtores rurais de uma bacia hidrográfica na conservação de nascentes, isso não significa que essa bacia terá 20% a mais de fluxo de água. Aliás, para se obter uma resposta positiva no corpo hídrico, é provável que seja necessário engajar mais de 80% dos proprietários rurais, como ocorreu em Nova York”, explica. Armelin alerta que o PSA não deve ser visto como a solução ideal para qualquer situação, e sim fazer parte de um conjunto de políticas, que inclui comando e controle.
Assistência técnica rural
Então, como estimular que produtores rurais deixem de desmatar as margens dos rios e conservem as nascentes sem o uso de instrumentos econômicos diretos? Nesse caso, a boa e velha assistência técnica rural poderia trazer resultados satisfatórios para aumentar a produtividade e a renda dos pequenos produtores, gerando resultados positivos para a conservação ambiental, segundo o pesquisador do GVces. “Há casos em que o produtor utiliza práticas tão rudimentares em sua propriedade que bastaria um trabalho dos órgãos de extensão rural com foco em produtividade, técnicas corretas de plantio e irrigação para aumentar sua renda”, afirma Armelin. Em paralelo, a assistência técnica rural também pode ajudar esse produtor a recuperar suas áreas de APP (Área de Preservação Permanente) e RL (Reserva Legal), garantindo benefícios ambientais extras.
A ferramenta do PSA está longe de ser uma unanimidade entre os movimentos sociais, como ficou evidente durante a Rio+20, em 2012, quando diversos grupos acusavam a estratégia, bem como o mercado de créditos de carbono, de ser parte de um processo de mercantilização da natureza e de ir contra os preceitos da Conferência de Estocolmo, de 1972, que estabeleceu o meio ambiente equilibrado como um direito destinado a todos, às gerações presentes e futuras. “Sob a ótica de Estocolmo, ninguém poderia se apropriar individualmente de um hectare de floresta nativa ou de uma função ecossistêmica de regulação do clima, e dispor desse serviço alienando-o ou arrendando a uma terceira pessoa”, afirma Larissa Ambrosano Packer [2], advogada da ONG Terra de Direitos.
[2] Autora do livro Novo Código Florestal e Pagamento por Serviços Ambientais – Regime Proprietário sobre os Bens Comuns (Juruá Editora, 2015)
Segundo ela, a proposta de valoração econômica dos serviços ecossistêmicos apresenta falhas, porque é produzida pelo mesmo modelo econômico que gerou o quadro de escassez dos recursos naturais. “Polêmicas à parte, o fato é que o Brasil recepcionou bem essa proposta de valoração econômica dos bens comuns”, diz Larissa. A prova é o novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), que prevê o uso de instrumentos financeiros para conservação, e também o Projeto de Lei nº 792/07, em tramitação, que pretende instituir a Política Nacional de PSA, com três instrumentos – política nacional, fundo federal e cadastro nacional de PSA.