Ver no processo produtivo uma atividade que recolhe recursos naturais, gera um bem e cospe resíduos é um mau entendimento do gesto técnico. Mas é assim que o descrevemos
Em junho, centenas de cientistas, filósofos, juristas e outros pesquisadores se reunirão em Claremont, na Califórnia americana, para discutir um dos maiores quebra-cabeças contemporâneos, se não o maior: o que seria e como poderíamos construir uma “civilização ecológica”? Entre os expositores da conferência
Seizing an Alternative (Agarrando uma Alternativa) estão arquitetos paisagísticos, agricultores ecológicos e representantes do governo chinês, alarmados com os índices de poluição no país.
A pergunta não é trivial. A civilização dificilmente se tornaria “ecológica” sem mexer nas raízes dos principais sistemas que a mantêm de pé: econômico, financeiro, jurídico, urbano, tecnológico. Essa dificuldade foi prevista em 1981, quando a consciência ecológica ainda engatinhava, pelo filósofo francês Gilbert Simondon. Em uma entrevista, perguntaram-lhe como avaliava o jovem movimento ambientalista. Ele manifestou simpatia, mas se mostrou preocupado com a possibilidade de que os ecologistas sucumbissem à tentação da tecnofobia. Para o filósofo, em vez de deplorar os malefícios do desenvolvimento tecnológico, o fundamental seria repensar o lugar do gesto e do objeto técnicos na existência humana.
Em 1958, Simondon lançara Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos (que terá sua primeira publicação no Brasil este ano, pela Editora Contraponto), em que denuncia o divórcio entre cultura e técnica nas sociedades modernas. Para o autor, desde a Revolução Industrial, a humanidade passou a ver suas produções não como parte inseparável de seu modo de estar no mundo, mas como um ser estranho, autônomo e fabuloso.
Por isso, desenvolveu uma relação alienada com suas próprias tecnologias, enxergando nelas apenas seu valor venal ou utilitário, e não seu valor intrínseco, como extensão da realidade humana e cristalização de gestos humanos. Daí emerge a assustadora mitologia em que autômatos e máquinas superpoderosas escravizam os humanos, vingando-se de quem até então não fora capaz de ver neles mais do que escravos.
Em outro texto, de 1959, o filósofo alertou que o verdadeiro progresso técnico é aquele que não incompatibiliza o que o humano “é” e o que ele produz. A técnica não deve ser vista como meio, nem mesmo para “aumentar o bem-estar”, mas como ato, manifestação da relação entre o humano e o ambiente. O humano estimula o mundo que o circunda e é estimulado de volta, em uma evolução conjunta que, se transformada em exploração ou, nos termos de Descartes, dominação do homem sobre a natureza, conduz ao desastre, para nós e para o mundo.
Pensar a habilidade técnica como ato que manifesta nosso vínculo com a natureza não é tarefa fácil. Até hoje, não percebemos com clareza como os sistemas em que vivemos são sempre desdobrados em dois, tocando de um lado a realidade humana e, do outro, o mundo natural. Ver no processo produtivo uma atividade que recolhe recursos naturais, gera um bem e cospe resíduos é uma ilusão, um entendimento deficiente do gesto técnico. Mas é exatamente assim que o descrevemos.
Em 1983, Simondon zomba da “tendência monástica” do movimento ambiental, mas também saúda seu poder de criar novas orientações para o futuro criativo da humanidade. O cerne da questão é repensar as determinações de nosso modo de estar no mundo. Hoje, como alertam os organizadores da conferência californiana, estamos obrigados a escolher entre relacionar esses sistemas de um modo predatório ou de um modo compatível: a técnica alienada ou a técnica que reflete ao agir.
Felizmente, há bons exemplos. Na agricultura, poderíamos começar citando o suíço Ernst Götsch, que transformou com seus conhecimentos agroecológicos uma região do Sul da Bahia cujas terras tinham se tornado improdutivas. O jornalista americano Michael Pollan relata, no livro O Dilema do Onívoro, o caso da fazenda Polyface, cuja produtividade sem agrotóxicos é invejável. A arquitetura oferece exemplos promissores, como na obra de Thom Mayne, inserindo seus projetos de maneira cada vez mais harmoniosa no entorno.
Mas o campo daquilo que temos de repensar é infindável, a começar pela obsolescência programada e suas variantes, que espalham lixo pelo planeta. Eis uma demonstração de técnica mal usada, escravizada, desumanizada: não é um ato com que o humano se realiza como ser social e natural. É a técnica, uma das faculdades humanas mais brilhantes, submetida a imperativos de consumo, venalidade e desperdício, que só a fazem definhar.
*Jornalista, doutorando no Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da FFLCH/USP (Diversitas). Professor convidado na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo[:en]Ver no processo produtivo uma atividade que recolhe recursos naturais, gera um bem e cospe resíduos é um mau entendimento do gesto técnico. Mas é assim que o descrevemos
Em junho, centenas de cientistas, filósofos, juristas e outros pesquisadores se reunirão em Claremont, na Califórnia americana, para discutir um dos maiores quebra-cabeças contemporâneos, se não o maior: o que seria e como poderíamos construir uma “civilização ecológica”? Entre os expositores da conferência
Seizing an Alternative (Agarrando uma Alternativa) estão arquitetos paisagísticos, agricultores ecológicos e representantes do governo chinês, alarmados com os índices de poluição no país.
A pergunta não é trivial. A civilização dificilmente se tornaria “ecológica” sem mexer nas raízes dos principais sistemas que a mantêm de pé: econômico, financeiro, jurídico, urbano, tecnológico. Essa dificuldade foi prevista em 1981, quando a consciência ecológica ainda engatinhava, pelo filósofo francês Gilbert Simondon. Em uma entrevista, perguntaram-lhe como avaliava o jovem movimento ambientalista. Ele manifestou simpatia, mas se mostrou preocupado com a possibilidade de que os ecologistas sucumbissem à tentação da tecnofobia. Para o filósofo, em vez de deplorar os malefícios do desenvolvimento tecnológico, o fundamental seria repensar o lugar do gesto e do objeto técnicos na existência humana.
Em 1958, Simondon lançara Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos (que terá sua primeira publicação no Brasil este ano, pela Editora Contraponto), em que denuncia o divórcio entre cultura e técnica nas sociedades modernas. Para o autor, desde a Revolução Industrial, a humanidade passou a ver suas produções não como parte inseparável de seu modo de estar no mundo, mas como um ser estranho, autônomo e fabuloso.
Por isso, desenvolveu uma relação alienada com suas próprias tecnologias, enxergando nelas apenas seu valor venal ou utilitário, e não seu valor intrínseco, como extensão da realidade humana e cristalização de gestos humanos. Daí emerge a assustadora mitologia em que autômatos e máquinas superpoderosas escravizam os humanos, vingando-se de quem até então não fora capaz de ver neles mais do que escravos.
Em outro texto, de 1959, o filósofo alertou que o verdadeiro progresso técnico é aquele que não incompatibiliza o que o humano “é” e o que ele produz. A técnica não deve ser vista como meio, nem mesmo para “aumentar o bem-estar”, mas como ato, manifestação da relação entre o humano e o ambiente. O humano estimula o mundo que o circunda e é estimulado de volta, em uma evolução conjunta que, se transformada em exploração ou, nos termos de Descartes, dominação do homem sobre a natureza, conduz ao desastre, para nós e para o mundo.
Pensar a habilidade técnica como ato que manifesta nosso vínculo com a natureza não é tarefa fácil. Até hoje, não percebemos com clareza como os sistemas em que vivemos são sempre desdobrados em dois, tocando de um lado a realidade humana e, do outro, o mundo natural. Ver no processo produtivo uma atividade que recolhe recursos naturais, gera um bem e cospe resíduos é uma ilusão, um entendimento deficiente do gesto técnico. Mas é exatamente assim que o descrevemos.
Em 1983, Simondon zomba da “tendência monástica” do movimento ambiental, mas também saúda seu poder de criar novas orientações para o futuro criativo da humanidade. O cerne da questão é repensar as determinações de nosso modo de estar no mundo. Hoje, como alertam os organizadores da conferência californiana, estamos obrigados a escolher entre relacionar esses sistemas de um modo predatório ou de um modo compatível: a técnica alienada ou a técnica que reflete ao agir.
Felizmente, há bons exemplos. Na agricultura, poderíamos começar citando o suíço Ernst Götsch, que transformou com seus conhecimentos agroecológicos uma região do Sul da Bahia cujas terras tinham se tornado improdutivas. O jornalista americano Michael Pollan relata, no livro O Dilema do Onívoro, o caso da fazenda Polyface, cuja produtividade sem agrotóxicos é invejável. A arquitetura oferece exemplos promissores, como na obra de Thom Mayne, inserindo seus projetos de maneira cada vez mais harmoniosa no entorno.
Mas o campo daquilo que temos de repensar é infindável, a começar pela obsolescência programada e suas variantes, que espalham lixo pelo planeta. Eis uma demonstração de técnica mal usada, escravizada, desumanizada: não é um ato com que o humano se realiza como ser social e natural. É a técnica, uma das faculdades humanas mais brilhantes, submetida a imperativos de consumo, venalidade e desperdício, que só a fazem definhar.
*Jornalista, doutorando no Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da FFLCH/USP (Diversitas). Professor convidado na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo