A emergência do substantivo “sustentabilidade” deve ser vista como a legitimação do primeiro valor, em milênios, a embutir a ideia de conflito/equidade intergeracional
Há exatos 250 anos, Jean-Jacques Rousseau elaborou um projeto de Constituição para a Córsega, respondendo ao pedido dos que lutavam para que sua libertação de Gênova fizesse da ilha uma nova nação, em vez de mera troca de tutela, como acabou por ocorrer com a anexação à França em 15 de maio de 1768. Nessa pérola do Iluminismo, um dos artigos previa que as florestas fossem manejadas de modo a que sua reprodução sempre igualasse o consumo.
Conduta tão sóbria na extração de madeira, para garantir durabilidade à sua oferta, foi ditada por práticas que Rousseau conhecera em seu berço nas montanhas da Suíça, onde já se seguia a regra básica do manual Sylvicultura Oeconomica, publicado na Saxônia, em 1713, pelo nobre Hanns Carl Von Carlowitz (1645-1714).
Esse pioneiro manual de silvicultura (ao menos no Ocidente) foi fortemente influenciado por reações à séria escassez de madeira que começara no século anterior, tanto na Inglaterra como na França. Principalmente as introduzidas pelo livro Sylva, apresentado em 1664 à Royal Society por John Evelyn, e pela Ordonnance para as florestas reais que Jean-Baptiste Colbert baixou em 1669. Não fossem os dois séculos de total isolamento a que se impôs o Japão, talvez Carlowitz também tivesse se beneficiado do edital do xogum de 1666, assim como de um dos principais tratados nipônicos de silvicultura: o Nögyö Zensho, publicado em 1697 por Miyazaki Antei.
Essas são as origens históricas do conceito de “Rendimento Máximo Sustentável” (MSY, na sigla em inglês), que depois também seria adotado por outras disciplinas tecnológicas. Particularmente pela engenharia de pesca, ao pretender calcular a quantidade de capturas que podem ser retiradas de uma unidade populacional sem que sua capacidade de regeneração seja colocada em risco.
Por influência indireta dessas comunidades epistêmicas mais diretamente voltadas para a exploração de recursos naturais renováveis, a mesma noção (nachhaltig, sustained yield, bon usage, wise use etc.) começou, há menos de meio século, a também ser aplicada à sociedade e ao seu desenvolvimento.
A primeira manifestação dessa transferência foi um ínfimo detalhe, mas que pode ter tido imensa influência subliminar. No fim do relatório The Limits to Growth, elaborado em 1972 para o Clube de Roma, surgem cinco linhas em que os autores (o casal Donella e Dennis Meadows, Jorgen Randers e William Behrens III) propõem duas diretivas essenciais para o “sistema mundial”: ser “sustentável sem brusco e incontrolável colapso” e “capaz de satisfazer as exigências materiais básicas de toda a sua população”.
Não pode ter sido outra a origem da ideia de desenvolvimento sustentável, que só começaria a impactar a opinião pública a partir de 1987, com o influente relatório Nosso Futuro Comum, embora já tivesse sido usada em outro importante relatório e por ao menos dois livros. Em 1977, a coletânea The Sustainable Society: Implications for Limited Growth fora editada por Dennis C. Pirages (Praeger). Em 1980, a estratégia mundial de conservação elaborada pela trinca IUCN/WWF/Pnuma teve por subtítulo Living resource conservation for sustainable development. E, em 1981, Lester Brown lançara o livro Building a Sustainable Society (Norton).
O leitor certamente deve estar se perguntando qual poderia ser o interesse cognitivo dessa verdadeira arqueologia do qualificativo “sustentável” ao longo de seus quatro séculos. E o motivo é bem simples: tão somente realçar duas de suas principais implicações.
Por um lado, enfatizar que sua utilidade sempre refletiu uma propensão a considerar os interesses das futuras gerações como merecedores do mesmo tipo de atenção que é dado aos interesses dos que pertencem às atuais. Não por outra razão a emergência do substantivo “sustentabilidade” deva ser vista como a legitimação de um novíssimo valor: o primeiro em milênios a embutir a ideia de conflito/equidade intergeracional.
Por outro, deixar bem claro que as raízes de tão recente mutação remontam ao Iluminismo, fenômeno de tão grande alcance histórico que o físico quântico de Oxford David Deutsch pode ter razão em vê-lo como a principal virada na evolução da humanidade. Prova dos nove da incoerência do penúltimo capítulo de seu livro The Beginning of Infinity, no qual apela para meras ambivalências semânticas do verbo “sustentar” com o propósito de desqualificar o que talvez possa ter sido o maior avanço ético de nossa época.[:en]A emergência do substantivo “sustentabilidade” deve ser vista como a legitimação do primeiro valor, em milênios, a embutir a ideia de conflito/equidade intergeracional
Há exatos 250 anos, Jean-Jacques Rousseau elaborou um projeto de Constituição para a Córsega, respondendo ao pedido dos que lutavam para que sua libertação de Gênova fizesse da ilha uma nova nação, em vez de mera troca de tutela, como acabou por ocorrer com a anexação à França em 15 de maio de 1768. Nessa pérola do Iluminismo, um dos artigos previa que as florestas fossem manejadas de modo a que sua reprodução sempre igualasse o consumo.
Conduta tão sóbria na extração de madeira, para garantir durabilidade à sua oferta, foi ditada por práticas que Rousseau conhecera em seu berço nas montanhas da Suíça, onde já se seguia a regra básica do manual Sylvicultura Oeconomica, publicado na Saxônia, em 1713, pelo nobre Hanns Carl Von Carlowitz (1645-1714).
Esse pioneiro manual de silvicultura (ao menos no Ocidente) foi fortemente influenciado por reações à séria escassez de madeira que começara no século anterior, tanto na Inglaterra como na França. Principalmente as introduzidas pelo livro Sylva, apresentado em 1664 à Royal Society por John Evelyn, e pela Ordonnance para as florestas reais que Jean-Baptiste Colbert baixou em 1669. Não fossem os dois séculos de total isolamento a que se impôs o Japão, talvez Carlowitz também tivesse se beneficiado do edital do xogum de 1666, assim como de um dos principais tratados nipônicos de silvicultura: o Nögyö Zensho, publicado em 1697 por Miyazaki Antei.
Essas são as origens históricas do conceito de “Rendimento Máximo Sustentável” (MSY, na sigla em inglês), que depois também seria adotado por outras disciplinas tecnológicas. Particularmente pela engenharia de pesca, ao pretender calcular a quantidade de capturas que podem ser retiradas de uma unidade populacional sem que sua capacidade de regeneração seja colocada em risco.
Por influência indireta dessas comunidades epistêmicas mais diretamente voltadas para a exploração de recursos naturais renováveis, a mesma noção (nachhaltig, sustained yield, bon usage, wise use etc.) começou, há menos de meio século, a também ser aplicada à sociedade e ao seu desenvolvimento.
A primeira manifestação dessa transferência foi um ínfimo detalhe, mas que pode ter tido imensa influência subliminar. No fim do relatório The Limits to Growth, elaborado em 1972 para o Clube de Roma, surgem cinco linhas em que os autores (o casal Donella e Dennis Meadows, Jorgen Randers e William Behrens III) propõem duas diretivas essenciais para o “sistema mundial”: ser “sustentável sem brusco e incontrolável colapso” e “capaz de satisfazer as exigências materiais básicas de toda a sua população”.
Não pode ter sido outra a origem da ideia de desenvolvimento sustentável, que só começaria a impactar a opinião pública a partir de 1987, com o influente relatório Nosso Futuro Comum, embora já tivesse sido usada em outro importante relatório e por ao menos dois livros. Em 1977, a coletânea The Sustainable Society: Implications for Limited Growth fora editada por Dennis C. Pirages (Praeger). Em 1980, a estratégia mundial de conservação elaborada pela trinca IUCN/WWF/Pnuma teve por subtítulo Living resource conservation for sustainable development. E, em 1981, Lester Brown lançara o livro Building a Sustainable Society (Norton).
O leitor certamente deve estar se perguntando qual poderia ser o interesse cognitivo dessa verdadeira arqueologia do qualificativo “sustentável” ao longo de seus quatro séculos. E o motivo é bem simples: tão somente realçar duas de suas principais implicações.
Por um lado, enfatizar que sua utilidade sempre refletiu uma propensão a considerar os interesses das futuras gerações como merecedores do mesmo tipo de atenção que é dado aos interesses dos que pertencem às atuais. Não por outra razão a emergência do substantivo “sustentabilidade” deva ser vista como a legitimação de um novíssimo valor: o primeiro em milênios a embutir a ideia de conflito/equidade intergeracional.
Por outro, deixar bem claro que as raízes de tão recente mutação remontam ao Iluminismo, fenômeno de tão grande alcance histórico que o físico quântico de Oxford David Deutsch pode ter razão em vê-lo como a principal virada na evolução da humanidade. Prova dos nove da incoerência do penúltimo capítulo de seu livro The Beginning of Infinity, no qual apela para meras ambivalências semânticas do verbo “sustentar” com o propósito de desqualificar o que talvez possa ter sido o maior avanço ético de nossa época.