Na “evolução” do comércio tradicional, é possível consumir e compartilhar recursos sem perder as liberdades individuais nem sacrificar o estilo de vida
Colaborar, compartilhar ou co–operar não significa agir em prol do coletivo e abrir mão da própria individualidade. Periódicos de ciência, de psicologia social e de economia transbordam com artigos sobre a auto-organização das formigas, a “inteligência” de um enxame de abelhas e a cooperação de um cardume de peixes para se livrar de um predador maior.
Todos esses comportamentos, cada vez mais evidentes em teorias sociais, negócios e histórias pessoais, apontam para uma onda socioeconômica emergente, em que o ato de juntar e compartilhar está sendo reconhecido como forma atraente e valiosa de colaboração e comunidade. Segundo o livro O Que É Meu É Seu: Como o consumo colaborativo vai mudar o seu (o nosso) mundo [1], essa onda é o consumo colaborativo.
[1] De autoria de Rachel Botsman e Roo Rogers, foi publicado no Brasil pela Editora Bookman (Porto Alegre, 2011)
De acordo com os autores, o consumo colaborativo busca pôr em vigor um sistema em que as pessoas dividem recursos sem perder liberdades pessoais nem sacrificar seu estilo de vida – esta é a visão da cientista política da Universidade de Indiana Elinor Ostrom, a primeira mulher a receber um Nobel de Economia, em 2009. Além disso, esse consumo permite que as pessoas, além de perceber ganhos enormes do acesso a produtos e serviços em detrimento da propriedade, economizam dinheiro, espaço e tempo, divertem-se e geram benefícios ambientais significativos.
O resgate histórico apresentado na obra aponta o surgimento do termo “consumo conspícuo” (ou consumo ostentatório), trazido pela primeira vez em 1899 para descrever os novos ricos do século XIX, caracterizados por serem pessoas ansiosas para mostrar sua riqueza e seu poder social. Familiar à nossa era ou não, o excesso do consumo de massa começou na década de 1920 e explodiu em meados dos anos 1950, quando oficialmente estreou o hiperconsumismo e um dos nossos maiores desafios: lidar com o vício inebriante de definir uma parte tão grande de nossas vidas pela propriedade e pela interminável lista de coisas que temos de possuir.
Os autores acreditam que a transformação se dará em decorrência das pessoas em seus papéis de consumidores, à medida que deixem de se identificar com formas desequilibradas, centralizadas e controladas de consumismo e migrem para meios de compartilhamento, agregação, abertura e cooperação.
De acordo com o estudioso chileno Humberto Maturana [2], os seres humanos não são apenas animais políticos, mas, sobretudo, “animais cooperativos”. Para ele, a cooperação é central na maneira humana de viver, como uma característica da vida cotidiana fundamentada na confiança e no respeito mútuo.
[2] Autor de Emociones y Lenguaje en Educación y Política (Santiago: Hachette, 1990)
Nessa linha, os autores do livro defendem que nos encontramos em uma época otimista e decisiva de mudança, em pleno período de transição e recriação do nosso sistema de consumo, que vem sendo construído de maneira a atender às nossas necessidades humanas básicas de comunidade e de reconhecimento individual. Os caminhos para as transformações que nos tirem do transe de consumo em que vivemos nos últimos anos vêm acompanhados de um desejo de reviver formas negligenciadas de capital social e de encontrar um propósito e uma história autêntica por trás do que compramos, produzimos, fazemos e criamos. Para isso, o O Que É Meu É Seu enuncia três valores centrais da nova consciência de consumo: simplicidade, rastreabilidade e transparência, e participação ativa.
Para que novos hábitos, ideias e visões tenham sucesso, é necessária uma rede de relações e de plataformas de comunicação colaborativa que transformem princípios em comportamentos em uma escala global. As mudanças de que o livro trata, da perspectiva do ‘meu’ para o ‘nosso’, estão ocorrendo no momento em que há uma confluência desse desenvolvimento tecnológico (internet) e cultural.
Não há uma perspectiva clara para traçar o futuro exato do consumo colaborativo. O que se percebe são características marcantes e tendências que indicam como esse fenômeno está evoluindo. Observa-se também que tanto a sustentabilidade quanto a comunidade são partes inerentes e inseparáveis do processo de mudança em curso. No futuro, a maioria de nós terá os pés no ‘possuir’ e no ‘compartilhar’, assim como os negócios carregarão características híbridas, tanto do comércio tradicional como da economia colaborativa.
Cooperação, confiança e respeito mútuo parecem ser algumas das principais práticas necessárias à evolução humana, daqui para a frente.
Para isso, precisamos reaprendê-las, desenvolvendo o interesse pelo bem comum e o compromisso com o florescimento de uma comum-unidade humana real, exercitada e cultivada no cotidiano de nossas relações com-o-sumo do que é sustentável e possível para todos, sem exceção.
*Pesquisadora do Programa de Consumo e Produção Sustentáveis do GVces ** Cofundador do Projeto Cooperação – Comunidade de Serviços