Cada nova onda tecnológica traz a necessidade de repensar o modo de vida humano. Para o economista Otto Scharmer, o impacto será negativo ou positivo se reduz ou amplia nosso espectro de opções para agir e criar
POR DIEGO VIANA
Mesmo se tendemos a ver na tecnologia uma mera extensão do humano, ela é sempre muito mais – tanto a moderna, industrial ou digital quanto suas formas arcaicas. A pedra lascada pré-histórica faz mais que simplesmente estender a força da mão; o telescópio não apenas amplia o alcance do olho que quer ver estrelas; o motor a explosão transforma a realidade humana para além do mero transporte dos nossos corpos.
As técnicas transformam o próprio humano: o corpo, o cérebro, o comportamento, as sociedades. O filósofo francês Bernard Stiegler, em seu livro de 1994 La Technique et le Temps – La faute d’Épiméthée, (em tradução livre, A Técnica e o Tempo – A falha de Epimeteu), recorre à “lógica do suplemento” para mostrar que a técnica é algo sem o qual o humano não pode ser explicado: é um suplemento que define aquilo mesmo que parece apenas suplementar.
Daí o recurso ao mito grego de Epimeteu, o titã que distribuiu as capacidades entre os animais, mas se esqueceu do ser humano. Seu irmão Prometeu viu-se obrigado a roubar o fogo e o saber técnico dos deuses, para entregá-los ao recém-criado animal indefeso e nu. O humano é aquele animal que, sem o recurso constante às técnicas, não tem como sobreviver.
É por isso que cada nova onda tecnológica traz consigo a necessidade de repensar o modo de vida dos humanos. “A verdadeira essência da tecnologia está em liberar nossa capacidade de criar”, afirma o economista alemão Otto Scharmer, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), em entrevista por telefone à Página22. “É isso que define se o impacto de uma tecnologia vai ser negativo ou positivo: se reduz ou amplia nosso espectro de opções para agir e criar”, completa.
Em seu laboratório do MIT , Scharmer e sua equipe desenvolvem técnicas de empreendedorismo social, voltadas para a criação de uma tecnologia que não se constitui em aparelhos, dispositivos e engenhocas, mas, na definição do economista, “é uma caixa de ferramentas metodológica que permite aos grupos ampliar sua capacidade de colaborar e criar em conjunto”.
CONSCIÊNCIA PLENA
Seria um engano associar diretamente a tecnologia a um vasto maquinário: também são do campo da técnica os exercícios, as disciplinas, as instituições. Uma das recomendações de Scharmer consiste em exercícios diários de mindfulness (consciência plena), “capazes de alterar a estrutura epigenética do cérebro”. São exercícios que exigem silêncio e trabalham a concentração, à maneira da meditação oriental e de diversas formas de oração do misticismo ocidental. “Cada cultura criou sua variante da mindfulness”, diz Scharmer. “É uma ferramenta para cultivar o indivíduo e sua condição interior, que é usada em diversas áreas, como saúde, educação, e nas empresas.”
A passagem desses exercícios individuais para algo semelhante no plano coletivo é, segundo Scharmer, “o ponto central de toda [sua] pesquisa”. “É nesse nível que desenvolvemos tecnologias sociais. São jornadas de aprendizado, buscando olhar para o sistema em que estamos inseridos pelos olhos de outra pessoa envolvida”, afirma. “São práticas de construir sentidos, para encontrar novas formas de visualizar as dinâmicas mais profundas de uma situação.”
Mesmo aceitando que todas as técnicas modificam o modo como o humano está no mundo, resta a pergunta sobre as tecnologias modernas: elas introduzem um novo patamar de transformação dos corpos, cérebros e sociedades? As mídias digitais, por exemplo, têm um poder transformador mais profundo que a prensa de Gutenberg (1398-1468), o rádio ou a televisão?
A neurocientista britânica Susan Greenfield, autora do livro Mind Change (Mudança Mental, em tradução livre), acredita que sim. Autores da primeira metade do século XX, como Walter Benjamin e Theodor Adorno, discutem o vínculo entre governos autoritários do período e a disseminação dos aparelhos de rádio nas casas, facilitando a difusão de mensagens políticas superficiais e simplistas.
O historiador da mídia Jean-Noël Jeanneney atribui as agitações políticas que conduziram à Revolução Francesa em parte ao barateamento das prensas, permitindo a inúmeros grupos políticos publicar panfletos contra o Antigo Regime. Marshall McLuhan vê na perda do Egito, origem dos papiros usados pela administração pública, uma das causas da derrocada do Império Romano.
TELAS E MENTES
Nenhum desses autores menciona mudanças na estrutura do cérebro – eles não dispunham das ferramentas necessárias. Mas Greenfield diz que certamente essas mudanças ocorreram. “Uma das coisas mais fascinantes sobre o cérebro é sua extrema plasticidade. Ele se adapta a tudo e muito rapidamente, o que o torna ao mesmo tempo tão poderoso e tão frágil”, afirma a cientista.
Ainda assim, as mídias digitais envolvem uma transformação mais radical: pela primeira vez a vida como um todo é modificada pelos aparelhos, que as crianças usam desde pequenas e que passamos o dia todo manuseando. Os modos de interação se transformam, bem como os tipos de relacionamento, as atividades cotidianas, a formação da memória e das ideias.
Na imprensa britânica, Greenfield é representada como uma “disseminadora de medo”, por sua pesquisa sobre a associação entre o uso continuado de tecnologias digitais e formas leves de autismo. Greenfield responde que sua intenção não é amedrontar, mas lançar o alerta, sobretudo para se contrapor ao otimismo tecnológico excessivo. Ela compara seus esforços aos primeiros ativistas da ecologia, nos anos 1970.
No Brasil, o estudo dos efeitos da tecnologia sobre o comportamento tem sido conduzido por entidades como o Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas. Segundo o psiquiatra Daniel Spritzer, membro do grupo, a dependência de tecnologias é um fenômeno parecido com outras formas de vício, como o álcool e os jogos de azar.
Uma particularidade interessante é que, no caso da tecnologia, não é possível tratar o problema com a abstinência absoluta. “Não só é impossível, hoje, deixar alguém completamente sem usar tecnologia, isso pode até ser pior para o paciente”, afirma.
Para além da dependência, Spritzer cita fenômenos como o cyberbullying e a exposição de menores a sites pornográficos como exemplos do descompasso entre as possibilidades da tecnologia e o controle que temos sobre ela. Afinal, o bullying “tradicional” acontece entre pessoas que se conhecem e exige uma presença física; na internet, alguém pode ser perseguido por pessoas do mundo todo e anonimamente. “E nem adianta mudar de escola ou de cidade”, acrescenta.
Já o acesso fácil à pornografia, diz Spritzer, “acaba influenciando o jeito como as pessoas se relacionam afetivamente, tendo relacionamentos mais superficiais e estereotipados, baseados na repetição de modelos”. Mas o psiquiatra assinala também que o problema não está só na internet e é potencializado em um país como o Brasil, com deficiências no ensino, na proteção social e na segurança pública. “Não dá para sugerir que alguém saia da rede social e vá brincar na rua. Quem pode brincar na rua hoje em dia?”, lamenta.
HORIZONTALIDADE E PODER
Se os alertas contra efeitos nefastos das tecnologias às vezes soam apocalípticos, a descrição de seus potenciais tem um toque utópico. Segundo o administrador Gabriel Aleixo, do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio), o universo da cultura digital envolve um variado movimento de horizontalização das estruturas de ação e comando. Mas, diante desse empuxo emancipatório, ergue-se a contra-tendência da captura por governos (como no caso da espionagem exposta por Edward Snowden) e corporações, como as que formam o acróstico G.A.F.A.: Google, Apple, Facebook, Amazon. Otimista, Aleixo crava: a horizontalidade vencerá, ainda que tarde.
Aleixo é pesquisador da bitcoin, a mais conhecida das criptomoedas [1], cuja pedra de toque é a automatização do processo de criação monetária, tornando-a independente tanto dos governos quanto do sistema financeiro. Essa característica anti-establishment atrai usuários heterogêneos: dos chamados anarcocapitalistas até a esquerda radical.
[1] Criptomoedas são unidades de código que, verificadas por toda a rede para evitar duplo pagamento e transacionadas por softwares específicos, servem como meios de pagamento entre internautas quase anônimos
“Essas pessoas concordam que tem algo errado. O poder de emissão do dinheiro está muito concentrado”, diz Aleixo. “O design dessas tecnologias dificulta o controle central. Elas são distribuídas. Mas a disputa entre o potencial emancipatório e o esforço de controle das forças hegemônicas é constante. É um grande pêndulo.”
Há outras tentativas de horizontalizar a economia e a política através das tecnologias digitais. A recente disputa entre taxistas e motoristas do aplicativo Uber, em várias cidades do mundo, é um exemplo. Ainda assim, o Uber e aplicativos semelhantes são criticados por substituírem uma forma de controle hierárquico por outra: trata-se de uma empresa que lucra com o trabalho dos motoristas, sem que eles tenham garantias em caso de acidente ou doença. “No final, o que vai prevalecer é algo ainda mais descentralizado que o Uber, como por exemplo o La’Zooz [2], de Israel”, estima Aleixo.
[2] O diferencial do LA’ZOOZ é o uso de tecnologias peer-to-peer, que independem de uma organização centralizada, como é a empresa que controla o Uber.
Para levar a cabo o potencial emancipatório dos dispositivos técnicos modernos, será preciso entender como funcionam e o que pode ser feito com eles. O exemplo de Aleixo é o aplicativo Waze, que torna o trânsito mais eficiente, porque os usuários compartilham os dados sobre o fluxo da cidade, graças ao serviço de geolocalização.
Mas a dependência de dispositivos tecnológicos como este, exemplar daquilo que é conhecido como smart cities [3], também cria fragilidades: um hacker que manipule o sistema do Waze pode causar um engarrafamento gigantesco. “Não se trata de ter um aplicativo desses funcionando, mas vários. Isso também é horizontalidade e torna o sistema menos frágil”, diz o pesquisador.
[3] Smart cities designam o princípio de aplicar tecnologias da informação ao ambiente urbano. Ao recolher grandes volumes de dados sobre o funcionamento de uma cidade é possível administrá-la com mais eficiência
ARTE E GESTO
Os algoritmos que comandam o mundo digital – e a sociedade digitalizada – são criticados também por ser um modo de determinação de atividades e escolhas que antes cabiam ao humano (mais em Farol).
Na filosofia da técnica de Gilbert Simondon, autor de Du Mode D’Existence des Objets Techniques (Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos, a ser publicado no Brasil este ano), um ponto de ancoragem da humanidade com sua atividade técnica é a radical indeterminação da vida humana. A criação de objetos técnicos introduz mediações que organizam pontualmente a atividade das pessoas. Entendida assim, a técnica é maleável e evolui de acordo com as possibilidades que o humano vai criando para si próprio.
Mas o que acontece quando a tecnologia é usada para estreitar essa mesma indeterminação? Essa pergunta é aberta por fenômenos como o do algoritmo usado pelo Facebook ou pelo Spotify para escolher o que será mostrado na linha do tempo de cada usuário. Baseado em comportamentos passados, esses algoritmos supõem o que agradará ao usuário daí por diante. “Receber informações que desmentem o que acreditamos é indispensável para qualquer forma de criatividade”, diz Scharmer. “E é isso que não está acontecendo.”
A ambiguidade da tecnologia aparece também no exemplo, citado por Aleixo, do robô que serve chope com perfeição – ao gosto do cliente. O robô pode ser visto como máquina que tira o emprego de alguém ou dispositivo que liberta uma pessoa do trabalho mal pago e cansativo.
Há ainda outra maneira de encarar a novidade: servir um copo de cerveja não é só um ato mecânico, mas um gesto físico e fisiológico, uma técnica com um componente de arte: com efeito, a palavra técnica, em sua origem grega, está vinculada à arte, como sublinha Scharmer. Abdicando de inscrever no próprio corpo a arte e a técnica de um gesto, o humano corre o risco de tornar-se o apêndice do robô que deveria ser seu ajudante.
Um exemplo mais claro está em algoritmos que compõem música, jogam xadrez e inventam receitas. A música, estrutura em que ressoam campos harmônicos matematicamente calculáveis, é também herança de um povo ou criação de um artista genial. Em cada equação dessas, um dos lados nunca é redutível ao outro.
A tecnologia exige humildade, diz o pensador francês Paul Virilio. Esse é o sentido de sua afirmação segundo a qual inventar o navio é também inventar o naufrágio. Não se trata de condenar o navio porque ele trouxe consigo o naufrágio, mas de evitar a ingenuidade oposta de ver nessas invenções a panaceia que a humanidade esperava para ser livre e feliz.
Assim, se a técnica da era industrial, incluindo tecnologias sociais como o moderno sistema financeiro, tem grande responsabilidade pelo desastre climático em curso, não se pode esquecer que o combate ao aquecimento global também deve levar em consideração a mesma faculdade inventiva e criativa – em suma, técnica – que está no cerne da humanidade. A esse respeito, Scharmer cita o poeta Hölderlin, que diz: “Ali onde está o perigo também está a salvação”.
O que é o jogo de xadrez para o computador? Uma sequência de código e de comandos. E para o humano? Um exercício, um passatempo. A receita, para o computador, é uma combinação de qualidades químicas. Para o humano, é um objeto cultural e um prazer