As tecnologias e a internet social tiraram o conforto do jornalismo. A prova viva está na cobertura dos eventos políticos e nos compartilhamentos na rede
Peço desculpas de antemão pela especificidade do texto desta edição, mas gostaria de dividir algumas percepções sobre um dos imbróglios teóricos que o campo acadêmico do jornalismo enfrenta. E como suas consequências podem ser observadas no dia a dia midiático, especialmente diante dos eventos políticos que dominam manchetes e compartilhamentos na rede nos últimos tempos.
O imbróglio citado é a convivência entre as práticas jornalísticas oriundas das teorias de gatekeeping e de gatewatching. A primeira é uma teoria do início da segunda metade do século XX que busca explicar, em resumo, como os fatos são transformados em notícia. Desenvolvida originalmente por David Manning White, considera o jornalista como o “guardião dos portões” (daí vem o nome). A função desse profissional seria selecionar, entre as notícias disponíveis, quais seriam publicadas. Tal seleção começa com a entrada da notícia no “sistema jornalismo”, passa pela produção propriamente dita, e chega até a publicação do que foi produzido.
O contexto do jornalista gatekeeper caracteriza-se por um ambiente de escassez, uma limitação espaço-temporal. Daí a necessidade de escolha. Porque não há espaço (na revista ou no jornal) ou tempo suficiente (na grade da rádio ou da TV) para que todas as notícias sejam publicadas. Na hora de decidir, ele se baseia nos critérios de “noticiabilidade”, um guia que legitima suas escolhas, sempre em busca da objetividade possível. Desse modo, no momento em que houver mais espaço e/ou tempo para mais notícias, a prática do gatekeeping poderá ficar em xeque.
Preciso dizer que estamos vivendo este momento? Pois é. O desenvolvimento tecnológico das últimas três décadas e principalmente a consolidação da internet social nos últimos dez anos bagunçaram o jornalismo de um jeito que até agora estamos tentando entender. Um dos caras que tentam dar uma explicação é um pesquisador australiano chamado Axel Bruns. Em 2003, ele sugeriu uma atualização da teoria do gatekeeping: o gatewatching. Como vocês devem ter notado ao notar a nomenclatura, a diferença entre as duas está na ação do jornalista diante dos portões. Enquanto a primeira guarda a entrada, decidindo o que passa e o que não, a segunda observa a passagem de tudo o que é publicado, destacando o que for mais relevante. A questão é redefinir o que é relevância – pois esse sempre foi um dos critérios de noticiabilidade. O que, no fundo, significa decidir o que é o jornalismo.
Se, por um lado, o fim do princípio da escassez abre espaço para que mais fatos venham a público, e sob uma variedade maior de pontos de vista, já que as possibilidades de publicação são potencialmente infinitas na rede, por outro pressiona os critérios de noticiabilidade, embaralhando um conhecimento comum sobre o que seria notícia. Há uma tendência de que o jornalismo seja mais plural e horizontal. Mas a realidade parece mostrar a verticalidade do jornalismo gatekeeper sendo pressionada por movimentos ainda incipientes de gatewatchers. Tal incipiência seria fruto não apenas da sua juventude, mas principalmente da ausência de estofo teórico que o sustente. O jornalismo gatewatcher ainda não se afirmou na área.
O que presenciamos, por enquanto, é uma convivência entre as duas práticas, que, aliás, às vezes pode se mostrar tensa. Ao revelar o que o gatekeeping não selecionou ou ao questionar o que foi selecionado, o gatewatching exerce uma forte crítica a um fazer jornalístico consolidado, expondo suas limitações, às vezes sua parcialidade, para dar conta de um cenário social complexo. Não é difícil notar tal movimento na relação entre a mídia tradicional e as diversas iniciativas alternativas que emergiram nos últimos anos.
Sem seus pilares ainda bem fixados, o gatewatching patina para se impor no campo jornalístico e na sociedade. Até porque a reportagem, aspecto nevrálgico da profissão, ainda é realizada, em geral, sob a lógica do gatekeeping. Talvez em razão disso, 12 anos depois de começar a esboçar o conceito, em 2011, Bruns sugeriu tornarmos essa convivência mais harmoniosa.
Isso se daria por meio de um equilíbrio entre a produção de conteúdo original e valioso, gerado segundo critérios de noticiabilidade amadurecidos durante anos de prática profissional, e a observação atenta aos diversos canais por onde jorram não só materiais semelhantes, mas também manifestações que podem contribuir para o debate público realizado pelo jornalismo. O gatewatching funcionaria como um complemento crítico ao gatekeeping.
Creio que este é um caminho que já está sendo percorrido pelo jornalismo. Mas precisamos de um pouco de paciência. Não podemos perder de vista que a velocidade da evolução tecnológica é muito maior que nossa capacidade de absorvê-la, e maior ainda em relação ao ritmo de reflexão teórica sobre suas implicações na vida social. Com o jornalismo é a mesma coisa.
* Jornalista e sócio-fundador do Farol Jornalismo