Castigada desde o período colonial, a Mata Atlântica reinventa-se por meio da restauração florestal voltada para a oferta de recursos hídricos
Esta é a segunda de uma série de reportagens sobre restauração florestal, em parceria da Página22 com o projeto MapBiomas. Leia aqui a primeira, a terceira, a quarta e a quinta.
As imagens de satélite não deixam dúvidas. No pedaço mais a oeste do território paranaense, na fronteira com o Paraguai, o tom verde que contorna os meandros de um grande lago de 1,3 mil quilômetros quadrados tornou-se bem mais intenso e robusto, em relação ao que se via há 30 anos. O atual traçado encorpado retrata o esforço de reconstrução da paisagem natural em território já bastante alterado pelo agronegócio – um exercício que tende a avançar no País, em razão do cumprimento do Código Florestal e das metas decorrentes do combate à mudança climática, e tem na Mata Atlântica, o mais rico e populoso bioma brasileiro, uma peculiaridade vital: a conservação da água.
Em campo, constata-se de perto a realidade dos dados de satélites, processados pelo projeto MapBiomas [1] para o entendimento sobre as dinâmicas de uso da terra nas diferentes regiões do País. Estamos na margem da Represa de Itaipu, a principal usina hidrelétrica [2] brasileira, situada no Rio Paraná, em Foz do Iguaçu (PR), ponto central de uma iniciativa de restauração florestal que abrange 29 municípios e comprova que o desafio vai muito além do plantio de mudas em larga escala.
[1] Iniciativa do SEEG/Observatório do Clima que produzirá mapas anuais da cobertura do solo no Brasil, com dados desde 1985
[2] A Itaipu Binacional é a segunda maior geradora de energia hidrelétrica do mundo (2,3 bilhões de MWh), atrás da Usina Três Gargantas, na China. Fornece 15% da energia consumida no Brasil e 75% no Paraguai
De lado a lado nas estradas percebe-se o resultado de um trabalho de visão holística em silvicultura, integrado à mobilização de prefeituras e da sociedade civil, com planejamento baseado em microbacias hidrográficas [3]. “A estratégia a partir desses territórios permite recuperar nascentes e reflorestar a beira de rios de forma mais eficiente, respeitando o modo natural de como a paisagem está originalmente planejada para manter o equilíbrio ecológico”, explica Nelton Friedrich, diretor de coordenação e meio ambiente da Itaipu Binacional.
[3] A Bacia Hidrográfica do Rio Paraná III abrange 194 mil microbacias em 8 mil quilômetros quadrados, com 1 milhão de habitantes
No projeto “Cultivando Água Boa [4]”, foram plantados até o momento cerca de 20 milhões de árvores nativas da Mata Atlântica para a reposição de uma faixa de 1,4 mil quilômetros de mata ciliar [5], em parceria com municípios e produtores rurais, grande parte da agricultura familiar, dentro do princípio de que a responsabilidade deve ser compartilhada por todos. “Não se trata apenas de plantar, mas de quebrar paradigmas da educação formal, desenvolver valores éticos e compreender o contexto e o potencial da restauração”, ressalta o diretor. “Mais do que conquistar e acumular, é preciso cuidar.”
[4] O projeto instalou mais de 1,3 mil quilômetros de cercas para proteção de nascentes e plantou 3,5 milhões de mudas em propriedades rurais da região, sem contar as cultivadas na borda da represa, o que representa a captura 733 mil toneladas de carbono por ano
[5] Vegetação nativa da beira dos rios que regula a erosão e tem a função de proteger a água, assim como os cílios em relação aos olhos
Construída entre 1975 e 1982 durante o governo militar, Itaipu alagou uma extensa área onde existia floresta, fez desaparecer o belíssimo Salto de Sete Quedas e toda ação para compensar esses e outros impactos pode parecer pouca. Mas os olhares estão no futuro. Diante dos riscos da mudança climática, proteger a água pode ser garantia de sobrevida para o próprio negócio da geração hidrelétrica no longo prazo. Em paralelo, benefícios são gerados para toda a região, inclusive na geração de renda por pequenas atividades produtivas [6]. “Sem conflitos, estamos fazendo um resgate histórico frente os danos causados pelo modelo de desenvolvimento, principalmente o agrícola, que devastou o Paraná desde as décadas de 1960 e 1970”, diz Friedrich.
[6] Baseado na promoção do associativismo, assistência técnica e extensão rural, o projeto resultou em 103 arranjos produtivos, como a produção de mel de abelhas que povoam as matas recuperadas
O agricultor Arnaldo Gamba, dono de 682 hectares de soja e milho no município de Santa Terezinha de Itaipu (PR), se recorda: “Quando comprei a terra já com os cultivos, em 1985, os vizinhos queimavam floresta e nem sequer aproveitavam a madeira; era um fogo só”. Nos últimos anos, o fazendeiro deixou a mata se regenerar para a recuperação de seis nascentes e espécies como jacu e jaguatirica retornaram à propriedade. “Antes tínhamos gado até na beira do rio”, conta Gamba, ao mostrar, ali ao lado, a torre do abastecedor comunitário de água.
Na lógica do ganha-ganha, os municípios fornecem o sistema hídrico e, em troca, os produtores abrem mão de terras produtivas para a regeneração do ambiente natural ou para o plantio de árvores, formando conexões entre fragmentos florestais. Dessa forma, com apoio de viveiros locais e o de Itaipu, que produz 900 mil mudas por ano, foi construído um corredor verde de 37 quilômetros interligando reservas ambientais e áreas recuperadas ao Parque Nacional do Iguaçu, com seus 1,8 mil quilômetros quadrados de Mata Atlântica. O objetivo é proteger nascentes que drenam para a unidade de conservação e favorecer tanto o trânsito da fauna como a dispersão vegetal, por meio dos polinizadores. “Há um potencial muito maior para ampliar a junção dessas peças”, afirma Veridiana Costa, engenheira florestal responsável pelo projeto. Falta ainda plantar entre 8 milhões e 10 milhões de árvores para recobrir o total do passivo rural mapeado na região.
Modelos de parcerias para a restauração florestal se multiplicam no Sul do País. “Em decorrência do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e do debate sobre o Programa de Regularização Ambiental (PRA) [7], a procura por mudas cresceu muito por parte de produtores antes resistentes, mas a onda poderia ser maior se houvesse maior estímulo por políticas públicas”, enfatiza Miriam Prochnow, secretária-executiva do Diálogo Florestal, rede que agrupa empresas, organizações ambientalistas e movimentos sociais para ampliar a escala da conservação e da restauração de ambientes naturais. No Paraná e em Santa Catarina, uma área total equivalente a 320 campos de futebol recebeu mudas nativas do projeto Matas Legais [8], grande parte em terras de pequenos produtores que fornecem eucalipto para uma indústria de papel, a Klabin.
[7] Regulamentado pelo Decreto nº 8.235/2014, trata da regularização das Áreas de Preservação Permanente e de Reserva Legal mediante recuperação, recomposição, regeneração ou compensação
[8] Participam do projeto 931 produtores rurais paranaenses e catarinenses que recebem mudas e assistência técnica da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi)
O tema avançou na agenda climática global [9]. “Além disso, o atual cenário brasileiro, com leis e regras mais claras, é favorável a uma mudança de escala na reposição de florestas”, avalia Beto Mesquita, diretor de estratégia terrestre da Conservação Internacional e integrante do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica. A iniciativa, lançada há seis anos, tem meta de recobrir 15 milhões de hectares até 2050. Até o momento, foram alcançados apenas 60 mil hectares, o que indica o grau do desafio pela frente. A falta de capacitação dos viveiros, na visão de Mesquita, é uma barreira. Ferramentas técnicas foram desenvolvidas como suporte à empreitada e agora, diante do potencial de crescimento, está sendo criado um protocolo de monitoramento para as áreas de restauração – referência destinada a instituições, promotorias de meio ambiente e governos estaduais, como o do Espírito Santo, que se destaca na atividade.
[9] A mudança de uso da terra emitiu cerca de 30 bilhões de toneladas de carbono (51% do total nacional de emissões) entre 1990 e 2014, segundo o SEEG Brasil
No Programa Reflorestar, voltado para a conservação do solo e da água, o governo capixaba aumentou a cobertura de vegetação nativa de 12% para 16% do território, em quatro anos, e pretende atingir 18% até 2018. A iniciativa tem como pilar o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) [10], em que os produtores rurais recebem insumos e são remunerados por restaurar e conservar a floresta em pé em áreas de importância ecológica, como a Bacia do Rio Doce, atingida pela lama da mineradora Samarco.
[10] Cada produtor recebe até R$ 220 por hectare ao ano, além do apoio para insumos que podem totalizar R$ 8 mil por hectare. Foram cadastrados 1,5 mil proprietários, o que representa 6 mil hectares de restauração
O método prevê plantio de mudas, adoção de sistema que alia silvicultura e pastagem e enriquecimento de capoeira, a vegetação secundária composta por gramíneas e arbustos. Os recursos provêm do Fundágua, fundo estadual que hoje tem R$ 60 milhões de royalties do petróleo para investimento em floresta. “Trata-se de uma importante referência para o País atingir suas metas climáticas e avançar na economia verde”, destaca Rubens Benini, coordenador de articulações em restauração da The Nature Conservancy (TNC), instituição que dá apoio técnico à iniciativa.
No Rio de Janeiro, o governo estadual mapeou neste ano as áreas estratégicas para o desenvolvimento da economia florestal. Hoje apenas 0,4% do território fluminense está coberto por árvores plantadas. Na Bacia do Rio Guandu, responsável pelo abastecimento da capital, 600 hectares estão em restauração. Há, no entanto, a necessidade de se encontrar métodos mais baratos e eficientes. Não há uma receita única e pronta; tudo depende do tipo de paisagem e do grau de degradação. “É alta a complexidade e, para ter sucesso financeiro e ambiental, o trabalho deve estar integrado à produção agrícola”, adverte Ricardo Rodrigues, professor da Esalq (USP), em Piracicaba (SP). Para o pesquisador, “a Mata Atlântica, ocupada sem nenhum planejamento ambiental e agrícola, deve agora contar uma nova história”.
E tudo indica que a ideia já chegou ao setor empresarial há algum tempo. Em Itu (SP), a fabricante de bebidas Brasil Kirin escapou da recente crise hídrica após reflorestar mais de 300 hectares ao redor de seus mananciais, nos últimos oito anos. O plantio de mudas, de quase 100 espécies nativas, produzidas no viveiro mantido na área pela Fundação SOS Mata Atlântica, recuperou 19 nascentes, aumentando em 5% a oferta de água superficial e em 20% a subterrânea. Também naquele município, as fazendas Ingazinho, Jequitibá e Capoava substituíram a pecuária de baixa produtividade por 300 hectares de floresta para exploração econômica de espécies frutíferas, ornamentais e, principalmente, madeireiras – caso em que a taxa de retorno do investimento chega a 12%, quatro vezes mais que a antiga criação de gado. Em quatro anos, o projeto, sob a liderança da empresária e socióloga Neca Setubal, mudou a paisagem da região e agora parte da área está sendo loteada e estruturada como um inédito condomínio florestal, destinado a moradores que queiram utilizar a madeira com fins econômicos.
Os investimentos em plantios florestais tendem a aumentar, devido ao apelo da mudança climática e às perspectivas de retomada do mercado voluntário de carbono. Em Porto Seguro, no Sul da Bahia, a novidade está na iniciativa financiada com recursos da loteria oficial da Suécia para a recuperação de 20 hectares em área de pecuária e eucalipto, em parceria com uma ONG local, a Natureza Bela. Embora pequena, a ação se integra à retomada do plano de formar um corredor ecológico ligando dois parques nacionais históricos: o do Monte Pascoal e do Pau-Brasil. Assim, quem sabe, a região onde no século XVI os portugueses começaram a ocupar – e a devastar – o território conquistado poderá tornar-se conhecida menos pelo “descobrimento” e mais pelo “recobrimento” do Brasil.