O atentado de Boston, em 2013, ilustra a perda do privilégio do jornalismo em conduzir a construção dos acontecimentos. Mas é preciso cuidado para não se levar somente pelo clamor popular
Gostaria de indicar a vocês um filme que traz à tona, no meu entender, um dos aspectos sociais mais complexos da atualidade: a construção dos acontecimentos em rede. Mas, para me fazer entender, terei de desenvolver um raciocínio que servirá como preâmbulo da dica.
Os acontecimentos não simplesmente acontecem. Os fenômenos de fato acontecem, é verdade, mas a nossa apropriação também os determina. É uma discussão, se quisermos, de cunho filosófico: os fenômenos em si são inapreensíveis. O que está ao nosso alcance são narrativas sobre os fenômenos. Em última análise, o que nos resta são versões. Alguém observa e conta o que viu para os que não viram. Este é um dos princípios fundamentais do jornalismo.
Ou seja, para eu viver coletivamente, é interessante possuir informações que possam subsidiar minhas decisões. Como é impossível ser testemunha de todos os acontecimentos capazes de fornecer esse tipo de subsídio, eu confio a alguém esta tarefa. É aí que entra o jornalismo e a sua responsabilidade social.
Embora seja mais antigo, foi durante os últimos 100 anos, aproximadamente, que o jornalismo se firmou como um dos mediadores mais legítimos da realidade social. Juntamente com outras grandes instituições, como o Estado e a Igreja, o jornalismo definia o que as pessoas deveriam saber. E mais: tinha um papel determinante na maneira como a realidade era construída.
Nos últimos tempos, o jornalismo está observando esse privilégio escapar por entre os dedos. A ascensão e a consolidação da internet social deram vozes a diversos outros atores que, se já participavam da tessitura da vida social, nunca haviam tido a possibilidade de fazer circular a sua própria narrativa dos fenômenos tal como é possível hoje.
O espectro de possibilidades desse cenário é gigantesco. Daí sua complexidade – e necessidade de problematização. O caso de Diamond Reynolds, a americana que transmitiu ao vivo, pelo Facebook, o seu parceiro se esvair em sangue após uma abordagem policial, é um dos exemplos mais recentes. Ela optou por transmitir a agonia do seu marido a ampará-lo porque queria que o mundo soubesse da sua versão, e não a da polícia, sobre o fato.
Reynolds quis dividir com o mundo a maneira como ela se apropriou do fenômeno, de maneira a ressaltar o racismo e a violência da polícia, aspectos nem sempre salientes nos discursos das instituições que sempre tiveram voz.
Interessante essa complexidade, não?
Ainda que se baseie em uma justificativa relevante (essencial, eu diria), a ação de Reynolds precisa ser problematizada. É interessante que pensemos sobre que consequências sociais esse tipo de transmissão pode acarretar. Porque, embora na maioria das vezes salutar, a participação de incontáveis novos atores no processo de construção da realidade por meio da narração de fenômenos é algo novo e que vem acontecendo muito rapidamente.
É preciso que, ao menos de vez em quando, alguém pare e pense um pouco.
É isso que faz o filme The Thread, documentário sobre a atividade no reddit, uma rede social muito popular nos EUA, depois das explosões na maratona de Boston, em abril de 2013. Talvez o leitor não saiba ou não se lembre, mas a cobertura da maratona de Boston foi um festival de erros cometidos tanto pela imprensa quanto por cidadãos que decidiram ajudar a polícia a encontrar os responsáveis trocando informações nos tópicos (as threads) do reddit.
O interessante do filme é a possibilidade de enxergar como se deu o processo de construção do acontecimento “atentados em Boston”, desde a explosão, em uma segunda-feira, até a captura de Dzhokhar Tsarnaev, na sexta seguinte. É possível perceber como os diversos atores conectados em rede – da imprensa ao cidadão anônimo acusando gente inocente no reddit, passando pela polícia – foram moldando a narrativa, muitas vezes por meio de um comportamento de manada.
O atentado de Boston talvez tenha sido o acontecimento mais representativo de um cenário que já vinha se desenvolvendo há anos: o privilégio em conduzir a construção dos acontecimentos sociais havia escapado das mãos do jornalismo. Não se trata de negar a importância do jornalismo na construção da realidade social, mas agora ele precisa ter a consciência de que há muita gente querendo contribuir nessa tarefa. Algumas vezes isso significa dar vazão para narrativas reprimidas, como a de Diamond Reynolds. Em outras palavras, significa chamar para si a responsabilidade de quem traz na bagagem um século de experiência narrando fatos sociais, e não agindo apenas a partir do clamor popular. O desafio é achar o meio-termo.