“Não tinha índio naquele tempo”, diz o fazendeiro ao documentarista e indigenista Vincent Carelli, sobre o tempo em que era criança. Os índios, em luta por suas terras de origem, são vistos como um entrave por um poder econômico que quer nos fazer crer que os que aqui sempre estiveram, na verdade, nunca estiveram. Junto a isso estão os anos de políticas omissas que mantém a invisibilidade da questão indígena. Carelli, em Martírio (2016), sabe bem dessa relação de poder e toma partido. E, ao apresentar a realidade de um genocídio dos povos Guarani-Kaiowá, nos provoca a também tomar partido.
“Mais do que criar, filmar é ‘estar com’, de corpo e alma… Tomar deliberadamente partido por acreditar que nada é imutável” é a frase do cineasta Rithy Panh que está no final de Martírio. O documentário é arte, mas também ferramenta para a mudança. Em 2012, o Facebook ganhou vários membros de uma mesma família: “Guarani-Kaiowá”. A manifestação foi em apoio à carta que a comunidade indígena escreveu para a Justiça e o Governo Brasileiro na iminência de seu despejo. Carelli, ao falar com a comunidade em um acampamento, entra em quadro, relembra o acontecimento e finaliza: “Então, essa comunicação de vocês com a gente, gente do povo, gente que não resolve, mas se a gente for muitos, a gente vai ajudar vocês a pressionar”.
“[…] nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.” Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil
O filme é resultado de filmagens que iniciaram em 1988 quando começam os primeiros movimentos de retomada dos territórios Guarani-Kaiowá e do retorno de Carelli 25 anos depois, com a morte e desaparecimento do corpo do cacique Nísio Gomes. São encontrados e reencontrados personagens que ganham voz, falas diversas que se conectam à sua resistência e ao seu sofrimento. Tantos indígenas que contam sobre despejos e dos parentes mortos a bala ou atropelados por jagunços. A sua resistência não é escolha, mas questão de sobrevivência. Em certo ponto do filme, uma das lideranças brada:
“Não temos dinheiro. Não temos nada para oferecer ao fazendeiro. Mas temos coragem suficiente para derramar o sangue que corre em nossas veias por essas terras. Até que essa terra seja nossa.”
As imagens das grandes plantações de soja sem fim, dos silos, dos tratores são opressivas em contraposição aos pequenos acampamentos que resistem na beira de estradas. As cercas e porteiras estão sempre no entorno dos acampamentos indígenas, demarcando que ali há dono e que não são eles. A relação do índio com a terra tem um sentido espiritual, diferente do sentido de propriedade dos fazendeiros. A terra não é sua propriedade, pois, como diz o antropólogo Viveiros de Campos, “são eles que pertencem à terra e não o contrário”.
Uma coleção de trechos de áudios provenientes da mídia noticiam “invasões” indígenas, reintegração de posse e queima de plantação. O documentário tem a pretensão de contar uma outra narrativa que não seja a de quem detém o poder e, portanto, se utiliza imagens de arquivos e documentos para recontar a história desde a Guerra do Paraguai até os tempos atuais. Carelli identifica, na história, permanências da violência sofrida pelos Guarani-Kaiowá e da sua invisibilidade.
A trajetória passa pela tomada das terras para cultivo de mate em que os índios eram empregados como mão-de-obra, pelo projeto humanitário da Comissão Rondon e da “emancipação” da ditadura que objetivavam o afastamento do índio de seus costumes e sua incorporação como mão-de-obra. Passa também pelas prisões para índios da época da ditadura, das demarcações dos oito pequenos territórios pelo Serviço de Proteção dos Índios (SPI) no começo do século XX — territórios esses que continuam até hoje e que, lotados, registram altas taxas de suicídio — e por ataque de direitos na época da Constituinte de 1988 e no governo Dilma.
“O Estado brasileiro e seus ideólogos sempre apostaram que os índios iriam desaparecer, e quanto mais rapidamente melhor […] era sim preciso de qualquer jeito desindianizá-los, transformá-los em “trabalhadores nacionais”. Cristianizá-los, “vesti-los” […], proibir-lhes as línguas que falam ou falavam, os costumes que os definiam para si mesmos, submetê-los a um regime de trabalho, polícia e administração. Mas, acima de tudo, cortar a relação deles com a terra.“ Eduardo Viveiros de Campos
O sofrimento dos diversos acampamentos reforça o cinismo dos discursos de fazendeiros e de políticos da bancada ruralista. São discursos belicosos (“Só por cima do meu cadáver”) e que ao mesmo tempo tentam inverter a lógica da opressão. “Nós não queremos medalhas pelo PIB, não queremos subir no pódio pelo PIB, nós só queremos paz”, discursa Kátia Abreu. Mas o corte seco para o título do filme nos deixa em dúvida: que paz é essa que é o martírio de um povo?
O índio luta por seus direitos, mas sua categorização é perigosa porque causa a preocupante homogeneização que esconde uma diversidade enorme de povos e culturas, veja o estereótipo do índio sempre nu que vive completamente isolado de tudo. Em Corumbiara (2009), primeiro longa-metragem de Vincent Carelli, o contato com duas tribos isoladas revela que, em um pequeno território, há a convivência de idiomas diferentes, a relação conflituosa entre as duas e até o relacionamento de amor entre membros das tribos. Já Martírio mostra uma cultura que vive e resiste apesar dos ataques que sofre por tanto tempo. E nesse sentido, uma das potências dos filmes de Carelli é a representação próxima, humanizada e plural das comunidades indígenas. Pois, afinal, o “índio” não existe.