Embora as estatísticas deem uma noção objetiva sobre a dimensão da disparidade social, esta só pode ser compreendida em uma experiência vivida
Como demógrafo, trabalhei certo período na Fundação Seade, estudando as mais diversas estatísticas relacionadas a desigualdades urbanas. Como se sabe, podemos falar desse tema em termos de renda, condições residenciais, educacionais e de oportunidades, ou ainda por recortes distintos segundo etnia, gênero e acesso a serviços públicos. Mas foi o percurso diário à fundação, então localizada no coração da Cracolândia, em São Paulo, que talvez me tenha dado uma noção mais profunda sobre o significado dessa expressão.
Próximo à Estação da Luz, esse local já era então o território dos “noias”, como são chamados os usuários de crack que circulam livremente pelo espaço. Em geral, são seres quase etéreos, meio desorientados, sujos e desnutridos. Uns nos abordam pedindo algum trocado, enquanto a maioria segue desconexa, não raro arrastando um cobertor velho. Como encará-los?
Às vezes, saía para almoçar na Sala São Paulo, um espaço restaurado e agradável do Centro, protegido por seguranças, onde nós, “os normais”, podemos comer com tranquilidade. Porém, o caminho mais curto entre o Seade e a Sala São Paulo passava pela Rua do Triunfo – uma ironia que dá nome a um conjunto de fracassos urbanos: prédios invadidos, lojas de computadores usados, oficinas mecânicas um pouco suspeitas, lixo. Mesmo na hora do almoço, só me arriscava a andar pela Rua do Triunfo em grupo.
Para além dos noias – talvez o espectro social mais extremo de nossas assimetrias –, são muitos os viventes urbanos que escolhemos não ver: a moça drogada, caída na calçada no sol do meio dia; o mendigo acampado sob a marquise da agência bancária; o velho que vasculha o lixo buscando algo para revender e ter o que comer.
Como é dormir diariamente em um quarto de 8 metros quadrados, mofado e sem ventilação, em uma favela? Como se sente uma mãe quando o filho vai para uma escola que ela sabe de qualidade duvidosa, onde o professor falta com frequência e para onde o filho segue, passando por um caminho inseguro?
Vivi grande parte da minha carreira produzindo e divulgando estatísticas. Com esse recurso, eu e tantos outros buscamos mostrar que, no Brasil, os 10% mais ricos detêm mais de 50% da renda total; quase metade dos brasileiros não tem coleta de esgoto; e ainda, em São Paulo, se contam cerca de 1 milhão de favelados e mais de 600 mil analfabetos adultos. Hoje, percebo que nos faltavam informações fundamentais: Como é viver essa vida? Como os que a vivem enxergam o mundo?
De fato, embora as estatísticas nos deem uma noção objetiva sobre a dimensão das desigualdades, a Cracolândia ou as diversas favelas e periferias urbanas que tenho percorrido me levaram a entender que a desigualdade social só pode ser compreendida em uma experiência vivida. Lembro frequentemente de um texto memorável de Jane Jacobs, uma urbanista que – ao escrever sobre Nova York – chamou atenção para a importância da interação entre os cidadãos no espaço urbano, sem o que uma cidade não existe de verdade (“The importance of the sidewalk“).
Só podemos nos reconhecer como conviventes em uma mesma cidade ao interagir uns com os outros no espaço público. Precisamos entender que o mendigo esbravejando do outro lado da rua, o menino da periferia com dificuldades na escola, a família que vive na casa de 20 metros quadrados na favela, sem piso ou banheiro completo, e eu compartilhamos um destino comum.
Sei que, no plano individual, temos poucas oportunidades de mudar tudo isso. Mas sei também que a cidade errada, incompleta, confusa e injusta é a minha cidade. Por isso, é preciso olhar para ela, pensar sobre ela, e agir.
*Demógrafo e doutor em Ciências Sociais, é sócio da Din4mo, empresa voltada para o desenvolvimento de negócios com impacto social positivo