Aplicar o conhecimento cotidiano dos habitantes tornou-se componente importante para promover a integração urbana das periferias
A gangue de Carlos Cruz foi atingida em cheio pela violência mexicana em 1999, quando um jovem ligado ao narcotráfico de sua periferia, ao norte da Cidade do México, foi morto em uma guerra de facções. Cruz era então um jovem dedicado a vários crimes, que ele mesmo enumera: “Tráfico de armas, falsificação de documentos, extorsão”.
A morte abalou profundamente os pandilleros. Cruz decidiu que era tempo de abandonar um estilo de vida que acabaria por vitimá-lo também. A mudança não foi simples em uma área com oferta deficiente de trabalho e formação. Mas o jovem se deu conta de que tinha um material com que podia trabalhar: o mundo do crime é tão organizado quanto o das atividades legais, emprega técnicas de administração eficazes e mobiliza saberes que o grupo de Cruz e outros na região já dominavam.
A virada consistiria em convencer chefes de gangues locais a aplicar seus conhecimentos à finalidade oposta: em vez da inserção pelo consumo que os jovens buscavam nas atividades criminosas, a inserção social, por meio de novas formações e a abertura de horizontes. Esta é a história do surgimento da ONG Cauce Ciudadano (Caminho da Cidadania), definida como uma “autoconstrução para a paz” e formada por pessoas que, como sublinha seu fundador, não tiveram estudos formais. Segundo Cruz, “não existem escolas para gente como nós”, porque “o sistema escolar para o qual nos convidam a voltar é o mesmo que nos expulsou”.
Hoje, a ONG atua em várias partes do México, é responsável por administrar escolas de formação e recebe apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), do Banco Interamericano de Desenvolvimento, da Comissão Europeia e de diversas empresas privadas. Carlos Cruz viaja o continente ensinando sua metodologia de atuação e, no ano passado, deu palestras na universidade americana de Stanford.
“O que vimos, desde adolescentes, era a violência nas ruas. Morávamos em bairros duros das periferias, onde aprendemos que a única forma de socializar era a violência”, diz Cruz. “Para nós, as únicas coisas que existiam eram as gangues, as cadeias e a polícia.” Uma coisa que a experiência no crime ensinou é que é preciso trabalhar naquilo que ele designa como “ambientes sociais”: ruas, escolas, prisões e outros. “É aí que planejamos, tanto em nível local como regional, a formação de lideranças, com pessoas já envolvidas nas gangues”, explica.
De dentro para fora
O caso mexicano ilustra o principal elemento de sucesso das iniciativas para melhorar a vida nas periferias e promover a integração urbana. Trata-se de aplicar saberes cotidianos dos habitantes, partir de demandas que eles mesmos expressam e atacar os problemas que há muito já identificaram.
O segundo ponto crucial é a conjugar diferentes experiências. Com essa filosofia, Cruz e outros empreendedores ligados à ONG Ashoka fundaram em 2004 a Escuela Latinoamericana para la Actoría Social Juvenil, que forma lideranças comunitárias voltadas para a aplicação desses saberes. “Articular as experiências reforça nossa capacidade de mobilização”, diz.
Os casos de duas cidades latino-americanas, Medellín e Rio de Janeiro, são uma demonstração inequívoca do que pode acontecer de diferente quando o ponto de partida para os projetos de intervenções urbanísticas é a própria comunidade, em comparação com projetos imaginados somente nas altas esferas da administração.
A partir de 1999, a segunda maior cidade da Colômbia, Medellín, passou por uma transformação radical. Conhecida até então pelo alto índice de homicídios, a cidade aos poucos se tornou mais famosa como exemplo basilar de integração urbana.
“A prefeitura estava aberta às demandas das comunidades, o que foi fundamental para orientar os projetos”, afirma o arquiteto Gustavo Restrepo, professor da Universidade Pontifícia Bolivariana de Medellín e autor de projetos de transformação da cidade. “Essa foi a chave: empoderar as populações. Isso diferencia Medellín de muitas cidades latino-americanas.”
O desenvolvimento urbano adquire poder, na medida em que expressa o desenvolvimento social e econômico das comunidades, explica Restrepo. “A participação das populações revela tanto as possibilidades de transformações físico-espaciais quanto as oportunidades econômicas que podem advir das reformas”, diz.
Não se trata só de geração de empregos, mas também das funções que os novos edifícios poderão exercer. “Percebemos que a população favorece transformações urbanas em que estão claros não só a melhoria de acesso, mas também como os edifícios vão exercer uma função econômica para o próprio local”, explica o arquiteto.
Foi assim que nos edifícios construídos para permitir a acessibilidade nos bairros, como o teleférico (metrocable), estabeleceram-se comércios locais, centros de formação e contabilidade, instalações de serviços públicos. Segundo o arquiteto, esses ambientes fortaleceram a economia local e o senso de comunidade.
Escuta surda
Medellín foi inspiração para iniciativas semelhantes em todo o continente, a começar pelo Rio. Para tornar-se sede das Olimpíadas de 2016, a cidade comprometeu-se com uma série de iniciativas de reforma urbana, incluindo a urbanização de favelas e o incremento dos transportes.
Hoje, porém, o quadro brasileiro é bem distinto do colombiano. A urbanização das comunidades estancou e, para piorar, depois de alguns anos com boas notícias na área de segurança pública, os cariocas voltaram a experimentar trocas de tiros diariamente.
“O poder público faz uma escuta surda das demandas da população”, diz o geógrafo Henrique Silveira, natural de Duque de Caxias e coordenador-executivo da ONG Casa Fluminense. “Um representante do gestor público aparece nas audiências, finge que escuta, mas fica por aí. Temos um grande déficit de transparência e participação real na condução das políticas públicas.”
Silveira dá como exemplo a construção da Linha 4 do Metrô, que liga a Zona Sul à Barra da Tijuca. A sociedade civil e o Ministério Público manifestaram-se contra o traçado proposto pelo governo. A população preferia outro trajeto, fiel ao projeto original da malha metroviária, mas foi ignorada pelo governo estadual.
A Casa Fluminense, fundada em 2013, procura pensar os problemas da Região Metropolitana do Rio de modo integrado, articulando movimentos sociais dedicados a áreas ou temas específicos, diz Silveira. “A Região Metropolitana do Rio não consegue se ver como área com 21 municípios. Os problemas são vistos da perspectiva da capital, ou de parte dela: a Zona Sul. Até os problemas das favelas são vistos em relação à Zona Sul.”
A desconexão entre os desejos da população e as ações dos governos, tanto municipal quanto estadual, não é um indicativo de que faltem à periferia da cidade vozes que reivindicam melhorias. Ao contrário, em diversos subúrbios e comunidades há fortes movimentos sociais. Segundo Silveira, uma meta da Casa Fluminense é ser o espaço em que esses movimentos se comuniquem e se articulem, para não ficarem isolados uns dos outros. “Muitas vezes, eles fazem trabalhos bem parecidos, mas poderiam se fortalecer e conseguir mais vitórias se agissem em conjunto”, afirma.
A entidade organiza periodicamente encontros para discutir a região metropolitana, os “Fóruns Rio”, sediados a cada vez em pontos diferentes da malha urbana. Um dos objetivos é conseguir que candidatos a eleições locais se comprometam com uma agenda de desenvolvimento integrada. No ano passado, diz Silveira, as mobilizações obtiveram o apoio de dois prefeitos e cinco vereadores que conseguiram se eleger.
Nem sempre o embate com a atuação surda do Estado resulta em derrota, diz Silveira, citando a Escola Municipal Friedenreich, no Maracanã. Ela seria demolida para a expansão do estacionamento do estádio, mas a mobilização da comunidade local a manteve de pé. “É preciso criar espaços reais de transformação do poder público, e precisamos entender que o poder público envolve o Estado e a sociedade. Se não, vira só poder estatal”, declara.
Metodologia
Algumas das vitórias mais significativas estão em detalhes que parecem insignificantes, como a saída suplementar de uma estação de trem. Na Zona Leste de São Paulo, o potencial da mobilização de moradores pelo bem comum pode ser atestado, justamente, na conquista de uma conexão entre a comunidade do Jardim Lapenna e uma estação da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). A Estação São Miguel ficou pronta em agosto de 2013, sem um acesso ao norte, onde está a comunidade do Jardim Lapenna. A pressão organizada dos moradores conseguiu que, em outubro do ano seguinte, uma nova passarela de acesso fosse inaugurada.
O Jardim Lapenna faz parte da área de atuação da Fundação Tide Setubal, que se ocupa de mobilização social e formação de lideranças em São Miguel Paulista. “A comunidade fica à beira da linha do trem. Quando fizeram a Estação São Miguel, planejaram a saída só do lado mais rico. Esse foi um exemplo de como fortalecer o caminho de reivindicação de causas coletivas”, relata a psicóloga Paula Galeano, superintendente da Fundação.
Os saberes locais e as demandas dos próprios moradores exercem um papel crucial na filosofia da Fundação, como no método do Cauce Ciudadano. Segundo Galeano, o trabalho realizado em São Miguel ao longo de dez anos levou à sistematização da metodologia, baseada em quatro pressupostos. São eles o “fazer com”, a “escuta”, o “diálogo” e o “vínculo”.
“Fazer com” expressa um trabalho em que todos constroem as diretrizes do que precisa ser feito. A “escuta” diz respeito à descoberta das demandas, dos potenciais e dos saberes já presentes no território. Já o “diálogo” consiste em buscar articulações institucionais, estreitando laços com associações de bairro, igrejas, subprefeitura, escolas e outras entidades. O “vínculo” ensina que é necessário estar presente nos territórios para produzir laços que efetivamente deem frutos.
“Esses princípios permitem que sejamos reconhecidos como um agente articulador de diversas ações, nas quais a comunidade se envolve e produz junto”, afirma Galeano. “Depois de dez anos, fizemos um estudo dos indicadores de São Miguel Paulista, nas áreas em que atuamos, e a região melhorou mais do que as vizinhas.”
Ferramentas
Ouvir as reivindicações dos moradores é apenas um dos desafios. Outro é encontrar os instrumentos para que as populações possam exercer seu poder de pressão. Este é o terceiro elemento que aumenta as chances de produzir mudanças positivas: ao tratar com o poder público, a principal ferramenta – mas também a mais difícil de obter – é a informação.
“O maior problema da relação com o Estado é que a informação é muito restrita. Então as pessoas não conseguem nem avaliar se uma política é boa para elas”, afirma o jurista Sergio Leitão, diretor de relacionamento com a sociedade do Instituto Escolhas, que se dedica a “colocar em números as questões que afetam a vida das pessoas”.
“Quanto Custa Morar Longe” é um dos projetos em curso no instituto. Sua fórmula vai ao cerne do problema das periferias. Segundo Leitão, programas de habitação no Brasil têm o vício de empurrar as pessoas para longe, em razão do preço da terra. Não se aventou a possibilidade de que um cálculo mais amplo, envolvendo custos de transporte, energia, saneamento e serviços públicos como escolas, segurança e postos de saúde, demonstrasse ser mais barato oferecer habitação mais próxima.
Morando em condições precárias e com a perspectiva da casa própria, uma família que recebe um apartamento pelo programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, aceita sem pestanejar. Para Leitão, se tivessem acesso a informações mais precisas sobre o local para onde vão ser levadas, essas famílias talvez pensassem de outro modo.
“A ideia é que, quando a prefeitura oferecer uma casa, a pessoa possa rebater com números”, diz Leitão, enumerando: “Aqui não tem saneamento, vou ter de tirar meus filhos de uma escola com boa nota no Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] e colocar em outra com péssima nota, não vou conseguir trabalho, porque o empregador não vai querer pagar o vale-transporte…”
O projeto consiste em produzir um banco de dados com os custos comparados da vida em diferentes periferias. Esses dados ficarão abertos para consulta, principalmente movimentos de moradia que se confrontam diretamente com o poder público.
A mobilização de baixo para cima, a articulação dos movimentos e o acesso à informação são os pontos em comum às iniciativas bem-sucedidas em redesenhar a relação entre a sociedade civil e o Estado nas periferias.
Nas palavras de Paula Galeano, essas preocupações orientam os próximos passos da Fundação Tide Setubal: “Se queremos trabalhar com as periferias para que elas se desenvolvam e se queremos que o poder público tenha um olhar de investimento mais estruturado e contínuo para essas regiões, é preciso se articular com os movimentos mais ativos e avançar na causa da transparência dos dados públicos”, afirma.