Por Ricardo Abramovay*
Relatório conclui que não é sensato o esforço de reduzir os impactos do modelo linear atual de produção têxtil – extrair, transformar, usar e descartar. O sistema tem de ser regenerativo por meio do design e isso envolve transformações radicais
A mensagem contida na Nova Economia dos Têxteis (relatório lançado no Fórum Econômico Mundial de 2018 pela Fundação Ellen McArthur em evento do qual participou a estilista Stella McCartney) traz promissora novidade com relação ao que o mundo corporativo vem fazendo no tema. Em vez de sugerir corretivos localizados aos quais se chegaria gradualmente, o relatório preconiza a mudança para um “sistema inteiramente novo que não pode ser alcançado por meio meramente de mudanças incrementais”. E o passo decisivo para a emergência deste novo sistema é o reconhecimento de que é preciso interromper a lógica de se vender cada vez mais roupa.
Nos últimos 15 anos, dobrou a quantidade de roupa vendida no mundo. Mas o número de vezes que se usa uma roupa caiu 36% neste período. Na China, a queda foi de 70%. E, nos Estados Unidos, a quantidade de vezes que se usa uma roupa é um quarto da média mundial. Estas constatações já seriam graves se viessem apenas de um conjunto de ONGs ou de trabalhos acadêmicos. O notável é que a Nova Economia dos Têxteis tem como financiadores e apoiadores a Fundação C&A, a multinacional sueca H&M (uma das estrelas da fast fashion, que opera em 62 países, com 4,5 mil lojas, empregando 132 mil pessoas), a Nike e a Sustainable Apparel Coalition (da qual fazem parte empresas como Adidas e Benetton).
O padrão até aqui consagrado na esmagadora maioria das empresas e dos setores é o de aumentar as vendas, fazendo o possível para reduzir ao mínimo os impactos socioambientais da expansão. Claro que é muito melhor fazer este esforço do que não se preocupar com o tema. Mas esta lógica de lenta transformação é incompatível com a magnitude dos problemas criados pelo crescimento econômico e com a urgência de enfrentá-los antes que se atinjam patamares irreversíveis. E é justamente com tal lógica que o relatório da Fundação Ellen McArthur rompe. Esta ruptura se traduz tanto em seu diagnóstico como em suas propostas.
Mais da metade da oferta de roupas sob o modelo fast fashion é descartada em menos de um ano. Os consumidores jogam fora, só em roupas (que frequentemente são usadas menos de dez vezes), um total de US$ 460 bilhões por ano. Reciclagem? Menos de 1% do material usado para produzir roupa acaba em novas roupas. A reciclagem para finalidades variadas chega no máximo a 13% do total descartado.
As emissões de gases de efeito estufa resultantes da produção de roupa equivale a tudo que emitem os transportes aéreos e marítimos. Vinte por cento da poluição industrial da água no mundo vem do tingimento e do tratamento de têxteis. Além disso, meio milhão de toneladas de microfibras plásticas desprendidas durante a lavagem de tecidos como poliéster, nylon ou acrílico acabam anualmente nos oceanos.
Ao ritmo de crescimento atual, a produção triplicaria até 2050 e nada menos que um quarto do orçamento carbono necessário a que a temperatura global média se mantenha abaixo de 2 graus seria gasto na produção têxtil. A conclusão do relatório é que não é sensato o esforço de reduzir os impactos do modelo linear atual (extrair, transformar, usar e descartar). A produção têxtil tem de ser regenerativa por design e isso envolve quatro transformações radicais.
Em primeiro lugar, o desenho dos produtos não pode conter substâncias que em sua produção e em seu uso sejam nocivos ao meio ambiente e à saúde humana – e isso em todas as etapas da cadeia produtiva. A segunda mudança consiste em “transformar a maneira como as roupas são desenhadas, vendidas e usadas” para que elas passem a ser consideradas como bens duráveis e não como produtos descartáveis. Trocas e aluguel de roupas podem tornar-se negócios prósperos e a durabilidade tem que se tornar um valor propagandeado pelas próprias indústrias.
O terceiro ponto é melhorar a reciclagem para que o setor possa capturar o valor dos materiais dos produtos não mais utilizados. Isso exige mudança nos modelos de negócios e melhorias tecnológicas nos vários tipos de reciclagem. Por fim o relatório preconiza que as matérias-primas (cujo uso deve ser reduzido em função deste novo modelo) venham de fontes renováveis.
Não há qualquer garantia de que o pequeno (mas expressivo) grupo empresarial reunido no apoio a estas propostas consiga alterar os rumos do setor têxtil global. O importante é a inspiração que o trabalho da Fundação Ellen McArthur oferece. Este mesmo raciocínio tem que se ampliar para o setor agroalimentar, para os transportes – em suma, para toda a produção social. Produzir cada vez mais sob o pretexto de que há necessidades a serem preenchidas não passa de cortina de fumaça sob a qual se esconde um modelo destrutivo e com o qual não podemos mais conviver.
Leia mais sobre sustentabilidade na cadeia da moda nesta edição.
*Professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP, autor de Muito Além da Economia Verde e coautor de Lixo Zero: Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade Mais Próspera.