Cabe ao governo brasileiro tomar medidas que aprimorem a eficiência energética, priorizem os transportes ferroviário e hidroviário e promovam a integração intermodal, com objetivo de descarbonizar a matriz e reduzir a dependência do petróleo
A crise no abastecimento de combustível que tomou conta do país nos últimos dias com a paralisação dos caminhoneiros evidencia como a completa dependência da gasolina e do óleo diesel, ambos produtos derivados do petróleo, é um mal a ser cortado pela raiz. A greve que deixou estados inteiros sem serviços essenciais como transporte público, alimentos e aviação, foi motivada pelo aumento nos preços dos combustíveis fósseis, e denuncia a urgência na transição para uma economia de baixo carbono.
A mudança de paradigma no sistema energético brasileiro é mandatória. Os mercados mundiais já sinalizaram, a ciência já comprovou e a sociedade tem cobrado. O governo precisa acordar para essa realidade, criando condições e políticas públicas de estímulo à geração de energia através de outras fontes, como eólica, solar e biomassa, bem como diversificar os transportes de cargas e pessoas, de modo a fazer com que a população deixe de ser refém da indústria fóssil.
Mas diferente de outras nações, que têm optado por rever suas matrizes energéticas e adotar padrões mais eficientes, com mudança de modais de transporte e consequente redução de emissões, as políticas públicas federais têm seguido recorrentemente o caminho do atraso.
Estima-se que somente os campos do pré-sal, altamente propagandeados e que têm sido colocados à venda em diversos leilões de alto escalão, contenham o equivalente a 176 bilhões de barris de petróleo bruto, o que significa 74,8 bilhões de toneladas de CO2 a mais a serem jogadas na atmosfera. Isso representa aumentar a dependência desse produto e ainda rifar 7% do total de gases que toda a humanidade ainda pode emitir caso queira cumprir a meta para manter o aquecimento global abaixo de 2°C, como propõe o Acordo de Paris.
Além da responsabilidade climática, as escolhas do governo também impactam os bolsos dos contribuintes. Nos últimos 30 dias, a Petrobras reajustou o preço da gasolina e do diesel nas refinarias nada menos do que 16 vezes. A gasolina teve uma alta de 20% e o diesel, 18%. Para o consumidor final, os preços médios subiram respectivamente 47% e 38,4%.
Seguindo uma lógica totalmente inversa, portanto, o governo brasileiro e a Petrobras, não satisfeitos em favorecer os investidores estrangeiros, que ganham com a livre flutuação dos preços do petróleo e derivados, em detrimento da população, ainda dão incentivos fiscais para que essas empresas bilionárias continuem explorando nossos recursos, aumentando ainda a nossa contribuição para a crise climática global.
Assim como no caso da MP 795/2017, que concedeu uma renúncia fiscal da ordem de R$1 trilhão para petroleiras estatais e multinacionais investirem no País, a negociação de Michel Temer com as lideranças do setor para tentar conter a crise neste momento, aumentando o subsídio fiscal ao óleo diesel, vai na contramão da necessidade de acabar com a dependência dos combustíveis fósseis, além de contrariar os compromissos de redução de emissões assumidos no acordo global do clima.
Ao adotar constantes políticas de desoneração do setor petroleiro, o governo tem gerado distorções tributárias, aumentando a carga de impostos para o contribuinte. O déficit público se agrava ainda mais, o que provoca redução do investimento em áreas prioritárias para o desenvolvimento do País, como educação, saúde, transporte e meio ambiente. Tais investimentos poderiam ser direcionados não só para programas de combate à pobreza como também para projetos de mitigação e adaptação à mudança climática.
Além de acabar com a exploração de combustíveis fósseis, os maiores responsáveis pelas alterações no clima, outro dos principais desafios do Brasil para reduzir as emissões nacionais é a descarbonização dos transportes. Como sempre atrasado, o Brasil é uma das poucas grandes economias do mundo a transportar suas cargas majoritariamente em caminhões, o que torna a mudança de modal outro debate urgente.
Em 2016, o setor foi responsável por 48% das emissões nacionais, o que corresponde a mais de 100 milhões de toneladas de CO2 equivalente, e essa curva é crescente. Metade dessas emissões é proveniente do transporte de passageiros e a outra metade é de transporte de cargas.
Só os caminhões emitem quase o dobro de gases-estufa da geração de eletricidade, com números muito superiores a toda a queima de combustível do setor industrial.
De toda a carga transportada no Brasil, 65% é pelo modal rodoviário. O ferroviário responde apenas por 15% e metade dele é transporte de minério. Há, portanto, muito pouca ferrovia destinada ao transporte de carga geral, que poderia competir com os caminhões, emitindo menos gases e preservando mais o ar das cidades.
Medidas que visem aprimorar a eficiência energética e a tecnologia veicular, assim como medidas de priorização de transporte ferroviário e hidroviário, com integração intermodal efetiva (tarifária, física, operacional e de governança), deveriam ser tomadas pelo governo brasileiro em uma tentativa de descarbonização da matriz energética como um todo. Mas, ao invés disso, cada vez mais se tem adotado soluções contraditórias e equivocadas.
O cenário de caos urbano, com filas quilométricas nos postos de gasolina, denuncia problemas estruturais de ordem pública, e a urgência de uma transição para uma economia de baixo carbono, com geração local e distribuída de energia por meio de fontes renováveis, socialmente justas e acessíveis para todos. Essa é a única e verdadeira solução para a crise econômica, energética e climática que vivenciamos hoje.
*Diretora da 350.org Brasil e América Latina, coordenadora nacional da Coalizão Não Fracking Brasil pelo Clima, Água e Vida (Coesus), mestre em Direito Internacional pela Universidade de Innsbruck, na Áustria, e em Resolução de Conflitos pela Universidade para a Paz das Nações Unidas na Costa Rica, especialista em Gestão de Projetos, Mudanças Climáticas e Sustentabilidade.