Mesmo sem acordo entre União Europeia e Mercosul, grande parte das melhores práticas sustentáveis vem sendo há muito induzida pelas exigências de importadores europeus
Os acordos de livre comércio da União Europeia com nações ou outros blocos regionais já são 54, dos quais 67% em plena aplicação e 20% ainda provisória. Entre os sete restantes – não efetivos – cinco nem chegaram a ser assinados, caso do mais recente, com o Mercosul. Só houve anúncio sobre sucesso das longuíssimas negociações, durante a cúpula do G20, em 28 de junho. Seguido, três dias depois, da divulgação de texto intitulado “The agreement in principle”, com o aviso “This is not a legal text”, por ainda estar dependente de transcrição.
Daí a necessidade de se conhecer esses “princípios” assumidos pelas partes antes de qualquer conjectura sobre as vastas incertezas dos processos que deverão levar à assinatura e às posteriores ratificações nacionais. Na impossibilidade de se discorrer sobre todos os 17 capítulos, que ocupam 17 páginas, vale a pena começar pelos dez parágrafos do capítulo 14º, voltado para a relação entre comércio e desenvolvimento sustentável. Uma espécie de “Dez Mandamentos” que merecem a atenção dos leitores desta revista (ver caixa abaixo, com tradução livre do autor).
Além de coerente com o teor da Agenda 2030 e seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), esse 14º capítulo contém até o célebre Princípio da Precaução, bem patente no segundo parágrafo, mesmo que sem referência explícita. Note-se também que o nono esboça um procedimento “específico” para o encaminhamento dos litígios.
Então, se vier a ser esse o conteúdo do acordo assinado, não parece haver motivo para grandes preocupações com a evolução das normas e padrões ambientais que ele poderá induzir nos sistemas produtivos dos quatro países do Mercosul. Afinal, boa parte dos avanços das políticas ambientais desses países pode ser creditado muito mais às mudanças de comportamento das empresas exportadoras do que às das mais voltadas ao mercado interno. Em outras palavras: mesmo sem acordo, grande parte das melhores práticas sustentáveis vem sendo há muito induzida pelas exigências de importadores europeus.
Ao mesmo tempo, parece inevitável que, ao longo dos primeiros anos de sua aplicação, aumente muito o número dos conflitos que exigirão o tal “procedimento específico de solução de controvérsias”. Será com certeza uma árdua fase de aprendizagem, cuja duração não pode ser prevista. Mas insuficiente para que provoque avaliação negativa do Acordo como fator de incentivo ao desenvolvimento sustentável dos quatro países do Mercosul. A não ser a certeza de que ajudará a reforçar a lamentável tendência de se privilegiar um perfil econômico agroexportador, em detrimento de reorientação estratégica focada em ciência e tecnologia. Uma atrofia que até já parece sina.
Riscos de impasse
Em tais circunstâncias, é aconselhável que se observe com cuidado os atuais debates parlamentares sobre a ratificação do Acordo Econômico e Comercial Global entre União Europeia e Canadá (Comprehensive Economic and Trade Agreement – CETA), provisoriamente em vigor desde 21 de setembro de 2017.
Parecem altos os riscos de impasse, pois, além dos grupos de esquerda habitualmente contrários ao livre-comércio, uma significativa parte da direita está se inclinando ao protecionismo, justificando-o como necessidade na defesa da soberania nacional. Parlamentares sob essa tentação – quase sempre muito ligados a sindicatos agrícolas controlados por pecuaristas de corte – estão dizendo que, como o mundo mudou, o livre-comércio não é comércio justo nem comércio equilibrado, especialmente para diversos segmentos do agro.
A outra séria ameaça à aplicação permanente do CETA está na exigência ambientalista de que ele contenha a possibilidade de “veto climático”. O que já engendrou a proposta de um novo “tribunal de arbitragem” como inédito instrumento judiciário capaz de proteger decisões ambientais dos Estados contra frequentes ataques empresariais. Seria uma espécie anteparo a iniciativas semelhantes às das multinacionais que contestaram o fechamento de centrais nucleares na Alemanha e a moratória do gás de xisto no Quebec. Uma garantia de que os Estados poderão impedi-las de criar sérios obstáculos à realização dos legítimos objetivos de suas políticas públicas.
No mínimo uma coisa parece certa: vai ser tudo bem mais complicado no caso do Mercosul, não apenas por ser um bloco de quatro países bem periféricos do Sul em vez de uma média potência do Norte. Também porque os conflitos objetivos que ferem sérios interesses de segmentos ancorados na economia primária certamente serão muito mais numerosos, frequentes e acirrados.
- Este capítulo sobre ‘Comércio e Desenvolvimento Sustentável’ (TSD) faz jus aos mais altos padrões para capítulos em outros acordos modernos, como aqueles com o México ou o Japão. A base é a premissa de que o aumento do comércio não deve ocorrer às custas do meio ambiente ou das condições de trabalho. Ao contrário, deve promover o desenvolvimento sustentável.
- As Partes concordam que não devem baixar os padrões trabalhistas ou ambientais para atrair comércio e investimento. Também concordam que o acordo comercial não deve restringir seu direito de regulamentar em questões ambientais ou trabalhistas, inclusive em situações onde a informação científica não é conclusiva.
- As Partes se comprometem a respeitar as Convenções da Organização Internacional do Trabalho sobre: trabalho forçado; não discriminação no trabalho; trabalho infantil; liberdade de associação e direito à negociação coletiva. Além disso, há compromissos em saúde, segurança e inspeção do trabalho.
- Ambas as Partes também concordam em respeitar os acordos ambientais multilaterais que assinaram, como a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (CITES) e em trabalhar juntos na sua implementação. Em um artigo específico sobre mudança climática, eles concordaram em se comprometer com uma linguagem forte para efetivamente implementar o Acordo de Paris e cooperar na interface comércio-mudança climática.
- Compromissos estão incluídos no combate ao desmatamento. Iniciativas do setor privado fortalecem esses compromissos, por exemplo, não buscar carne de fazendas em áreas recentemente desmatadas. O capítulo sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável inclui compromissos relacionados ao manejo sustentável das florestas, bem como à conduta responsável dos negócios. Ele protege iniciativas relevantes sobre agricultura sustentável, incluindo ações do setor privado da UE sobre cadeias de fornecimento de desmatamento zero e iniciativas lideradas por produtores, como a moratória da soja no Brasil para limitar a expansão das plantações de soja em áreas florestais.
- As Partes também se comprometem a promover a responsabilidade social corporativa / conduta empresarial responsável, de acordo com as diretrizes internacionais, como a da OCDE ou a ONU (Princípios Orientadores de Negócios e Direitos Humanos da ONU).
- O capítulo também inclui artigos temáticos sobre aspectos relacionados ao comércio de recursos naturais, como biodiversidade, florestas e pesca, incluindo o combate à extração ilegal de madeira e a pesca ilegal, não regulamentada e não registrada (IUU).
- O acordo enumera uma série de áreas de potencial cooperação com vista a garantir que o comércio apoie a agenda de sustentabilidade, incluindo as cadeias de fornecimento com desmatamento zero.
- O capítulo está sujeito a um procedimento específico de solução de controvérsias, no qual uma queixa sobre não conformidade é considerada primeiramente em consultas formais aos governos. Se a situação não for resolvida, um painel independente de especialistas pode ser solicitado para examinar o assunto e fazer recomendações. O relatório e as recomendações devem ser tornados públicos para que possam ser acompanhados pelas partes interessadas, bem como pelos funcionários das Partes.
- Neste capítulo, os dois lados expressaram seu compromisso de buscar suas relações comerciais de uma forma que contribua para o desenvolvimento sustentável e se baseie em seus compromissos multilaterais nas áreas de trabalho e meio ambiente. Os mecanismos de consulta à sociedade civil incorporados no acordo complementarão essas disposições, proporcionando uma oportunidade para moldar a implementação do capítulo e do acordo.
*Professor sênior de sustentabilidade na USP (IEE), é autor de O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra (Ed. 34, 2019) e mantém dois sites: www.zeeli.pro.br e www.sustentaculos.pro.br